- É difícil para Sanders se tornar o candidato democrata. Mas o fenômeno 'Bernie' deve ser compreendido dentro de uma situação que começou a ser formar há quatro anos por Occupy Wall Street e "a mudança de conversa" que esse movimento gerou.
Por Susana Draper e Vicente Rubio-Pueyo (*) - Sociedade e Eleições nos EUA (fonte no final do texto)

Quando Sanders lançou sua candidatura para as primárias democratas, em maio de 2015, a proposta foi recebida com paternalismo (quando não diretamente indiferença) pela imprensa. Meses mais tarde, Sanders pode vender em Iowa e New Hampshire, primeiros estados a realizarem suas primárias. Como Sanders poderia ter aberto este desafio sem precedentes, até então impensável, a Hillary Clinton e à máquina do Partido Democrata? Além dos méritos incontestáveis de sua campanha e de um caminho honesto e consistente, a situação deve ser entendida como a possibilidade de uma articulação de fragmentos e trajetórias históricas. como nos têm mostrado a série de momentos cruciais na última década, desde Occupy Wall Street.
Através de suas referências explícitas ao New Deal de Roosevelt , o "socialismo democrático" de Sanders é basicamente a reintrodução de termos como "justiça econômica" e "redistribuição da riqueza", ausentes durante décadas no discurso público americano. Em outras palavras, a recuperação de um estado de bem-estar, principalmente na saúde, na educação e em direito do trabalho. O que é interessante aqui não é apenas sobre as propostas específicas de Sanders, mas a forma como estão ligadas à paisagem social e política nos últimos anos. Assim, a reconstrução do sistema de saúde pública reflete a insatisfação com o “Obamacare”. A proposta de um ensino gratuito nas universidades públicas confronta o problema da bolha da dívida estudantil astronômica que o Occupy colocou em debate. Aumento do salário mínimo para US$ 15/hora refere-se à campanha "Fight for 15" e a onda de novas sindicalizações em setores tradicionalmente mal organizados, como as cadeias de trabalhadores "fast food" ou corporações como Walmart.
Ao contrário de Obama, a campanha de Sanders não é centrada em um candidato carismático, mas neste programa e na invocação de uma "revolução democrática" consistente, em primeiro lugar, na rejeição frontal de "Super PACS" ( sistemas empresariais de financiamento eleitoral) mediante uma campanha financiada por mais de três milhões de doações individuais (contribuição média de US$ 30) . Ao ficar fora do processo em que Wall Street, seus bilionários e empresas investem bilhões nos candidatos para controlar o sistema de decisões políticas, Sanders explicita de forma direta como a política é dirigida a partir do sistema financeiro e os interesses econômicos de 1%.
Com uma grande surpresa para o establisment, ele conseguiu que sua campanha fosse 100% financiada pelos eleitores que apóiam suas idéias e programa, mostrando que é possível uma campanha sem "super Pac" ou milionários. "Estamos fazendo história", afirmou seu gerente de campanha Jeff Weaver. Este gesto básico tão incomum está no centro de sua plataforma: a separaração entre vida política e o instrumento financeiro que a mantém cooptada. O eixo é a distinção, feita pela Ocupe Wall Street, entre os 99% e acumulação de riqueza no 1%. Com isso, surgiu uma espécie de redefinição da política que contraria o discurso de mera gestão e administração; Sanders insiste em uma "revolução democrática" capaz de imaginar um outro futuro.
É o único candidato que pôs em seu discurso a questão da redistribuição de riqueza e justiça econômica, que nos Estados Unidos é inseparável de uma justiça racial e de um sério desmantelamento do racismo sistêmico. Assim, a invocação de uma "revolução democrática" implica num horizonte mais profundo de articulação transversal de alguns aspectos fundamentais da cultura política americana, como a gestão tecnocrática e a demografia de mercado de serviços. Compõe uma espécie de reeducação política, e isto é criticado pela campanha de Hillary e toda a máquina midiática. Estas críticas mostram a natureza profundamente apolítica da tecnocracia, e atacam Sanders por não cumprir as suas "promessas". Na outra ponta, ele apela a uma mobilização popular como condição para a realização destes objetivos, que não são promessas e sim propostas que ampliam o debate político; tanto que a própria Clinton foi forçada a adaptar-se e mostrar a sua versão mais progressista.
Será extraordinariamente difícil para Sanders tornar-se o candidato democrata. Entretanto, o fenômeno Bernie deve ser entendido dentro de uma abertura feita há quatro anos pelo Occupy e a "mudança a conversa" que o movimento produziu por questões que foram pautadas tais como a desigualdade econômica, e uma manifesta distância do establishment político. De acordo com a indicação de vários estudos, devido à falta de perspectivas de emprego, dívida e insegurança, o ambiente cultural e ideológica da chamada "geração do milênio" aponta para um claro abandono dos temores herdados do macarthismo, dando lugar a pontos de vista políticos muito mais aberto. Além de Iowa e New Hampshire, e além da eleição de novembro, podemos estar frente a uma mudança tectônica muito mais profunda na sociedade americana, e continuará a ter efeitos nos próximos anos. Talvez, quem sabe, o despertar de um gigante adormecido.
*Susana Draper é professora da Universidade de Princeton e Vicente Rubio-Pueyo é professor da Universidade de Fordham
Do Site Diagonal
Tradução: Paco Robles, especial para o site Portal Vermelho
Fonte: http://www.vermelho.org.br/noticia/275773-9