“Que quer dizer que o outro, por pensar diferente, merece morrer. E a
classe média, que sempre odiou o pobre, agora está se sentindo mais à vontade
para expressar, explicitar esse ódio”
“Parte da imprensa e setores da alta classe média deram um tiro no pé.
Se isso terminará num banho de sangue, numa tribalização da sociedade ou numa
tomada de consciência, ninguém sabe dizer. Mas que será problemático, será”
por Juliana Sayuri
*, no The Intercept Brasil –
Sociedade e Luta de Classes Brasileira
“Duas coisas salvariam o Brasil: interpretação de texto e consciência de classe.”
A frase é
de um meme das eleições, mas funciona para resumir o pensamento do sociólogo
Jessé Souza, professor titular da Universidade Federal do ABC, em seu novo
livro, A Classe Média no Espelho (Estação Brasil, 2018), que chega às livrarias
na próxima semana.
Na obra,
Souza analisa os movimentos da classe média brasileira nos últimos anos –
especialmente aquela que, segundo sua expressão, se mostrou “dócil e
manipulável” ao ir às ruas contra a corrupção política e, mais tarde, engrossou
as fileiras de apoio a Jair Bolsonaro. “Um tiro no pé”, descreve.
Para o
sociólogo, faltou à classe média entender as causas reais da crise econômica.
Por não compreender a lógica do capitalismo financeiro e erroneamente se
imaginar como parte integrante da elite, a classe média abriu mão do pacto
democrático para abraçar a ideia de que a corrupção do estado é a fonte de
todos os males no Brasil – e não o assalto “legalizado” promovido por bancos e
grandes corporações. “O vínculo orgânico entre empobrecimento e corrupção
política é uma mentira. É óbvio que a corrupção política é recriminável, mas
não foi ela que deixou a população mais pobre. Esta é a grande questão que
ficou fora do quadro. E era o que importava nas eleições”, afirma.
Ex-presidente
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, entre 2015 e 2016, e autor
de títulos como A Ralé Brasileira (2009), A Tolice da Inteligência
Brasileira (2015), A Radiografia do Golpe (2016) e A Elite do
Atraso (2017), Souza vem criticando duramente a imprensa e os intelectuais
alinhados à elite econômica que, a seu ver, “imbecilizaram” a sociedade. Nesta
entrevista ao Intercept, o autor martela: “O país inteiro foi feito de
imbecil. Não há melhor palavra”.
Você
inicia A Classe Média no Espelho com uma parábola sobre verdade e
mentira. Em tempos de discussões sobre pós-verdade, fake news e agora “disputa
de narrativas”, qual foi o peso da confusão entre verdade e mentira na ascensão
de Bolsonaro?
A elite
econômica expropria a maior parte da população em seu benefício, e isso só
acontece a partir de uma mentira socialmente aceita, isto é, uma visão
distorcida sobre o funcionamento da sociedade. É como dizer: o mundo é assim,
ponto. A mentira legitima os interesses da opressão econômica e da dominação
moral. E uma das mentiras é “querer é poder”: se você fracassa, a culpa é só
sua – e não de um sistema injusto e explorador. Se você não compreende as
causas de sua miséria econômica no capitalismo, você está condenado a atribuir
seu fracasso pessoal a você mesmo ou, como foi feito, a políticos corruptos.
Assim, uma dominação econômica de uma classe só se sustenta ao longo do tempo
se é moralizada.
Obviamente,
a única forma de combater a mentira social é com a prática da verdade, a arma
dos frágeis. É disso que trata a parábola, e que vale para o atual contexto: as
pessoas são historicamente acostumadas a ouvir a mentira, pois a verdade muitas
vezes pode ser bastante incômoda.
Apesar de
esforços (de parte da imprensa, intelectuais e movimentos sociais) para
esclarecer fatos nas eleições, como a ideia de que o presidente eleito é
antissistema e anticorrupção acabou vingando?
Desde que
o Brasil é Brasil, e principalmente a partir de 2013 de modo mais insidioso e
perverso, a elite econômica conseguiu consolidar, junto a seus intelectuais e
sua imprensa, a ideia de que o empobrecimento da população teria sido causado
apenas pela corrupção política, o que é uma mentira.
‘A esquerda foi singularmente
incapaz e burra nessas eleições.’
A
imprensa e a Lava Jato criminalizaram a Petrobras, deixando-a pronta para
vendê-la a preço de banana. O estado deixou de ganhar royalties, o pessoal
perdeu emprego. A Lava Jato prendeu meia dúzia e deixou invisível o saque real
trilionário de uma elite proprietária e uma alta classe média, que inclusive
empobrece a massa da classe média. O foco na corrupção política invisibilizou a
continuidade dos juros extorsivos embutidos nos preços, da estarrecedora
exploração do rentismo e da corrupção legalizada dos donos do mercado. A boca
de fumo da corrupção está no Banco Central, que assalta legalizadamente a
população. Mas as classes exploradas economicamente acreditaram na balela:
ficamos mais pobres por conta do roubo de políticos. É óbvio que a corrupção
política é recriminável, mas não foi ela que deixou a população mais pobre.
Esta é a grande questão que ficou fora do quadro. E era o que importava nas
eleições.
A esquerda
foi singularmente incapaz e burra nessas eleições. Tanto Haddad quanto Ciro
Gomes elogiaram a Lava Jato, o bode expiatório da corrupção política. Na minha
visão, o país inteiro foi feito de imbecil, não há melhor palavra. Poderia
dizer “falsa consciência” e agir contra os próprios interesses, mas, na
linguagem do senso comum, isso é simplesmente ser “imbecil”. Dentro da própria
esquerda, ninguém problematizou o rentismo, ninguém questionou: nós todos
pagamos juros que vão para o bolso de quem? Esse assalto econômico não é visto
como corrupção, como o engano de meia dúzia sobre 200 milhões de brasileiros. O
principal dispositivo do poder é se tornar invisível. E o poder econômico é
ainda mais invisível.
Qual é a
sua definição de classe média?
Souza foi presidente do Ipea até
2016 – saiu com o impeachment de Dilma Rousseff. Foto: Gabi Di Bella/The
Intercept Brasil
Classe social não é definida pela renda. Renda é um resultado, considerando a
vida adulta. Mas é preciso pensar que diabo acontece na infância e na
adolescência de alguém, que faz com que um ganhe mil vezes mais do que o outro?
Esta é a questão, que implica a reprodução de privilégios, positivos e
negativos. O privilégio da elite econômica é econômico, a propriedade.
O
privilégio da classe média, que corresponde a 20% da população brasileira, é
principalmente o acesso a capital cultural, isto é, conhecimento, cursos de
línguas, universidades etc. Isso explica, por exemplo, a raiva de parte da
classe média ao ver pobre entrando na universidade, que era seu “bunker” que
garantiria salários melhores, mas também reconhecimento e prestígio.
Você
diferencia “alta” (equivalente aos segmentos superiores da classe A) e “massa”
da classe média (as chamadas classes A e B). Seguindo esse paralelo, onde
estaria a dita classe C?
[A classe
C] foi uma bobagem da propaganda do PT. No Brasil, temos quatro grandes
classes: uma ínfima elite econômica proprietária, uma classe média de 20%, uma
classe trabalhadora majoritariamente precária e uma classe marginalizada que
está fora do mercado competitivo. O PT ajudou os marginalizados subirem à
classe dos trabalhadores, o que é histórico e extremamente importante. Por
miopia política, isso foi interpretado por marketing malfeito como “chegar à
classe média”, o que também é uma mentira. E é preciso saber a verdade: seria
preciso montar um projeto político de longo prazo e dizer “um dia” vamos chegar
a uma sociedade de classe média real. Dizer que renda média é classe média é
uma idiotice. Renda média de um país pobre equivale à renda da classe
trabalhadora, que é precária.
Se há uma
vocação vira-lata da alta classe média, “que considera melhor tudo o que vem de
fora”, segundo sua expressão no livro, os alertas de diversos veículos da
imprensa internacional, como The Economist, The New York Times e Le Monde, não
deveriam ter pesado nas eleições?
Classe
não é definida por critérios econômicos. As pessoas procuram se distinguir umas
das outras – e se sentir melhores do que as outras. A classe média é moderna,
nasce com o capitalismo e começa a ficar realmente importante com o capitalismo
industrial. E se cria uma alta classe média, que representa interesses da
elite: o CEO de um banco, por exemplo, não é um banqueiro. O primeiro é alta
classe média, o segundo é elite.
Mas o CEO
tem a ilusão de se considerar parte da elite e, portanto, defende interesses de
seus patrões. E assim molda uma distinção diante das outras classes, a partir
do alto consumo de bens importados, por exemplo. Ele quer se sentir um pouco
europeu, um pouco americano, dentro de seu próprio país. Só que a alta classe
média é muito conservadora e faz qualquer negócio para manter seus privilégios.
Ela não tem sensibilidade em relação ao restante da sociedade, portando-se como
uma elite estranha ao próprio país.
‘O que antes era ódio ao escravo,
agora é ódio ao pobre. E parte da classe média tem muito medo de descer à
condição de pobre.’
Há ainda
divisões dentro da alta classe média: uma fração da indústria mais
“democrática”, digamos, que depende e se importa com um mercado interno
pujante; e uma fração predominante do agronegócio e mercado financeiro, voltada
para o mercado externo, que fica rica independentemente se o país vai bem ou
vai mal. Temos, afinal, uma elite de herança escravocrata que pensa a curto
prazo: quero o meu agora, não me importa projeto de futuro. Isso amesquinha o
país como um todo.
Se antes
o escravo era submetido a trabalho desqualificado, agora a maior parte da
população brasileira faz trabalho semiqualificado ou desqualificado. E é
excluída das benesses do mundo moderno. O que antes era ódio ao escravo, agora
é ódio ao pobre. E parte da classe média tem muito medo de descer à condição de
pobre. Afinal, classe não é só um cálculo econômico, mas um cálculo moral de
distinção social.
No livro,
você projetou que muitos se voltariam “ao voto de protesto desesperado e
irracional” de apoio a Bolsonaro. Passadas as eleições, pensa a vitória como
“voto de protesto”? Ou de uma busca genuína por mudança?
O que
está acontecendo hoje faz parte de um processo de luta de classes. Um processo
que se estende desde 1930. O que foi que a elite fez? A elite montou, a partir
da imprensa e das universidades, o domínio simbólico, moldando a visão de mundo
da classe média. Agora, para a alta classe média, esse discurso é racional e
pautado pelo interesse econômico: estou ganhando mais. Mas, para a massa da
classe média, é irracional: para pensar que está ganhando algo, uma recompensa
moral, a massa da classe média protestou e se portou como “ah, sou moralmente
superior do que as classes populares, estou escandalizada porque me incomoda e
combato a corrupção política”. Foi explorada.
Mas a
ideia de que o empobrecimento ou o risco de empobrecimento estaria ligado
organicamente à corrupção…
Corrupção
política. Desculpe interromper, mas veja que, sem querer, você equalizou
corrupção e corrupção política.
Sim,
corrupção política. Você diria que a construção desse discurso escapou ao
controle de quem o construiu – parte da imprensa, como indica no livro? Se a
população brasileira fosse tão “manipulável” por uma imprensa a favor de
interesses da elite econômica, como compreender críticas tresloucadas que
atribuem à Folha de S.Paulo a alcunha Foice, de referência comunista, e
o bordão “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo” capturado por militantes de
direita a partir de 2013?
Quando se
começa uma coisa, só se sabe como ela começa, mas não sabe como termina. Nossa
imprensa é venal, desde o início comprada pelo mercado. Nunca tivemos uma rede
pública [de comunicação] como existe na Europa – e às vezes alguns até
confundem TV pública com TV estatal. Nunca tivemos uma imprensa confrontando o
poder de forma plural.
A
imprensa atacou o governo, pois a presidenta, um pouco estabanadamente, atacou
o juro, o lucro dessa elite, a partir de 2012. Isso foi usado contra o governo
eleito e que era tudo menos corrupto – a presidenta não roubou um lápis que
seja. Mas o ataque midiático se voltou a todos os consensos morais de uma
democracia. Não é a letra legal de uma Constituição que dá sangue à democracia,
mas os consensos morais: não se pode expurgar a presunção de inocência, banalizar
vazamentos ilegais, banalizar desrespeito de direitos fundamentais. Isso é a
base de uma democracia.
‘A imprensa toda foi muito burra.
Ela pisoteou a democracia, e agora vai ter uma vida muito difícil.’
A
imprensa ajudou a fazer terra arrasada disso e, depois, veio a eleição de
Bolsonaro como uma espécie de vingança das classes médias e parte das classes
populares contra esse estado retratado como corrupto. Se você ataca a
democracia como um todo, obviamente você ataca a liberdade de expressão. Tecnicamente,
a imprensa toda foi muito burra. Entenda-se: burrice é pensar a curto prazo,
seja para o bem seja para o mal; inteligência é pensar a longo prazo, seja para
o bem seja para o mal. Ela pisoteou a democracia, e agora vai ter uma vida
muito difícil. Parte da imprensa e setores da alta classe média deram um tiro
no pé. Se isso terminará num banho de sangue, numa tribalização da sociedade ou
numa tomada de consciência, ninguém sabe dizer. Mas que será problemático,
será.
Nos
últimos tempos, o caráter fascista ou não das ideias representadas por
Bolsonaro foi muito discutido. Você teme que a expressão “fascismo” se desgaste
tal qual “populismo”, que a palavra se torne um coringa para desqualificar
adversários?
Não. O
principal mecanismo do fascismo é a desumanização, o não reconhecimento do
outro. Na minha opinião, obviamente há elementos fascistas nas ideias do
presidente eleito: apologia da tortura, assassinato de adversário político etc.
Historicamente foi assim que o fascismo se expandiu no entre-guerras: pega a
raiva e o ressentimento da classe média e do povo e joga num bode expiatório
socialmente aceitável. Logo, estamos num contexto de neofascismo, junto a uma
dominação do capitalismo financeiro: na economia, invisibiliza, deixa opacos
elementos econômicos; na política, provoca desmobilização popular.
Nos
Estados Unidos de Donald Trump e no Brasil de Bolsonaro, o capitalismo
financeiro quebra e destrói relações sociais e vida associativa, provocando
desorientação e isolamento do indivíduo. E, novamente, é dito a ele que o
fracasso é culpa dele – e não de um sistema injusto. É uma estrutura fascista,
sim, de novo tipo. Que está se internacionalizando e que vive do mesmo tipo de
desrespeito e desumanização que fazia o fascismo anterior. Que quer dizer que o
outro, por pensar diferente, merece morrer. E a classe média, que sempre odiou
o pobre, agora está se sentindo mais à vontade para expressar, explicitar esse
ódio. No fim, o ódio é exatamente o que o fascismo produz.
Você usou
muito a palavra “golpe” para tratar do impeachment de Dilma Rousseff. Pensa que
a palavra foi desgastada?
Não. Foi
um golpe de novo tipo, articulado por uma situação econômica. O dado econômico
é incrível, porque é sempre o mais invisível. A causa de tudo foi a tentativa
de se apropriar do orçamento público e do mercado interno via juros. Foi um
golpe parlamentar, mas qual é a independência que esse parlamento tem? Um
parlamento de baixíssimo nível, eleito com dinheiro de bancos e grandes
corporações. No ano anterior [ao impeachment], a presidenta tinha feito um
enorme esforço para diminuir os juros e usado os bancos públicos para isso. De
uma hora para outra, empresas deixaram de investir, e a imprensa inteira passou
a atacá-la.
Mas,
veja, a elite se apropria do que é público mediante parcerias público-privadas
– um exemplo, como as estradas. Entretanto, foi ensinada a imbecilidade de que
o Brasil é corrupto por causa da herança de Portugal, uma mentira legitimada
com prestígio científico nas universidades. Um povo ladrão por conta da herança
portuguesa e, agora, ladrão dentro do estado. Sendo que o estado é a esfera que
se pode contrapor a um mercado desregulado.
Dias
antes do segundo turno, universidades se tornaram alvo de diversas ações
de fiscalização – e justamente faixas contra o fascismo foram censuradas. Dias
depois do segundo turno, investidas do Escola Sem Partido avançaram com a
convocatória de denúncias contra docentes “doutrinadores”. Ainda há pensamento
crítico e resistência nesses espaços?
Como você
mantém uma população inteira precarizada? Você pega a escola, um elemento de
classificação e acesso a conhecimento que está relegado à classe média. O
privilégio positivo específico da classe média é este: estímulo para estudo,
domínio de línguas, capacidade de concentração. Você chega aos cinco anos na
escola particular como um vencedor, pois é aparelhado psicológica e moralmente:
espera bons salários e prestígio. O pobre já é tratado como um perdedor, num
abandono secular e cumulativo. Depois, você vê a classe média culpando a classe
pobre, dizendo que ela é preguiçosa e indolente – e que o mérito do seu sucesso
é só seu. Assim, a sociedade brasileira sacramentou dois caminhos: um, da
felicidade; outro, do fracasso.
‘Nenhum povo pode ser senhor do
seu próprio destino sem conhecimento. E conhecimento deve ser compreensível.’
Agora,
quais são os dois pilares do desenvolvimento de um país? Indústria e educação.
Só que a educação está toda montada dentro de um contexto elitista. É Paulo
Freire, pensamento crítico e educação libertadora para a classe média; e trevas
para a classe trabalhadora. É loucura dizer que essa estrutura de educação
classista é de esquerda. E apenas tende a transformar e sacralizar esse caminho
perverso que monta a opressão de classes entre nós: duas educações, duas
classes, dois tipos de indivíduo.
Você
declarou, certa vez, que o “que provoca efetiva dor de cotovelo nos meus
detratores é o fato de ter conseguido, com muito esforço, expor questões
complexas de modo simples e compreensível para a maioria das pessoas”. No seu
novo livro, a atenção à acessibilidade da linguagem também está presente. Para
quem você escreve?
Não quero
falar para seis pessoas. Nisso está embutida uma crítica ao próprio saber
acadêmico. Passei minha vida juntando capital acadêmico, acumulando trabalho.
Penso que estou usando um capital acadêmico de vanguarda com uma linguagem
acessível. Nenhum povo pode ser senhor do seu próprio destino sem conhecimento.
E conhecimento deve ser compreensível.
Tenho
tentado fazer um esforço enorme de dizer coisas complexas que, com boa vontade
e interesse, qualquer pessoa possa compreender. Não é por falta de conhecimento
prévio e formação acadêmica que a pessoa não vai entender o livro. É por falta
de coragem. A gente não nasce sabendo, é preciso aprender: aprender é um ato de
coragem. A ciência pode ser libertadora; o conhecimento, empoderador. Imagina
se o povo brasileiro compreende que está sendo enganado?
Sociólogo diz que autocrítica em
relação à sua própria posição o levou a uma ‘epifania’.Foto Gabi Di Bella/The
Intercept Brasil
No campo da linguagem, destacaram-se autores de direita como Olavo de Carvalho, tido inclusive como intelectual vencedor dessa eleição. Como ele conseguiu arregimentar tantos adeptos?
A
sociedade brasileira está em uma esquina em que uma série de aprendizados são
necessários. Algumas pessoas estão começando a compreender o tamanho da fera
que está a um metro de nós. Algumas pessoas que estavam muito acomodadas no seu
mundinho. E, agora, ou a gente reformula esse comportamento, ou nós todos, como
país, vamos perder. Esta questão está muito presente agora. Principalmente
entre a esquerda colonizada por uma linguagem que só beneficiou a direita.
Você chegou
a ser chamado de ‘Olavo de Carvalho da esquerda’. O que pensa da comparação?
A Elite
do atraso teve muita repercussão, muito além do que eu imaginava. Retornos
de pessoas simples, o público que eu gostaria de atingir, me comoveram muito. A
escola de samba Paraíso do Tuituti usou elementos; o presidente Lula leu o
livro na prisão. Efetivamente, penso que pude fazer, pela primeira vez, uma
interpretação crítica da sociedade brasileira de fio a pavio. Sei que é
ambicioso dizer isso, e fico à disposição para quem queira contrapor meus
argumentos. [O que propus no livro] compromete toda uma tradição de
pensamento, de direita e de esquerda. O núcleo dessa tradição, esse liberalismo
chique, aceita a ideia de corrupção política. O que fiz foi articular uma visão
crítica, com encadeamento explícito dessas ideias. O novo livro A classe
média no espelho é uma continuidade. Trago uma visão mais sofisticada e
crítica do que a tradição intelectual brasileira. Estudei todas as classes anos
a fio, dediquei uma vida inteira a isso. Logo, interpreto esse tipo de
interpelação como inveja.
Por fim,
professor, o livro propõe posicionar a classe média brasileira diante do
espelho e revelar suas concepções do mundo. Enquanto integrante da classe
média, como você afirma no livro, como você se vê diante do espelho?
No fundo,
minha atividade é intelectual. E o intelectual, para criticar e inclusive para
se autocriticar, precisa conhecer. Eu também tinha esse academicismo antes.
Achava que meu público se limitava a uma dezena de pessoas que poderia
compreender o que eu estava dizendo, como se “só eu e mais alguns aqui eleitos
entendemos como o mundo funciona”. É isso, afinal, que as classes procuram: se
distinguir uns dos outros. Isso move o ser humano tanto quanto dinheiro.
Embora eu
tenha vindo de estratos mais baixos da classe média, como professor
universitário pertenço à massa da classe média. E me questionei: numa sociedade
perversa como a nossa, que peso a massa da classe média tem sobre a pobreza dos
pobres?
Foi uma
epifania quando compreendi que alguns, pensando que estavam à esquerda, estavam
montando de uma forma ideológica o poder de meia dúzia de proprietários. Você
cria uma distância em relação a você mesmo, uma auto-compreensão. A partir da
crítica da minha própria posição e dos pressupostos que ela envolve legitimando
uma lógica, tentei a começar uma autocrítica e uma crítica da própria sociedade
que tinha me marcado essa visão de mundo.
https://theintercept.com/2018/11/18/jesse-souza-entrevista/