Pouca oferta de alimentos in
natura e ações da indústria fazem das periferias alvo fácil de produtos
ultraprocessados que podem causar danos a saúde
por Larissa Gould no Brasil de Fato – Sociedade e Luta
Popular por Alimentos Saudáveis
Coletivos levam alimentos
saudáveis às periferias de SP / Juliano Vieira
“A gente
aprendeu o que era um deserto alimentar e aquilo ficou na minha cabeça ‘nossa
eu não acredito que eu moro nesse lugar, não acredito que minha comunidade vive
a maior parte da vida em um posto de saúde por conta da alimentação’” conta
Thiago Vinicius, cofundador da Agência Solano Trindade e do Armazém
Organicamente, primeiro ponto de venda de orgânicos da periferia
de São Paulo. O armazém fica na região do Campo Limpo, zona sul.
Para a
Organização Mundial da Saúde, regiões nas quais as pessoas precisam andar mais
de 400 metros para encontrar alimentos in natura – obtidos diretamente de
plantas ou animais sem que tenham sofrido alteração depois de deixarem a
natureza, como folhas, legumes, ovo e leite – são considerados Desertos
Alimentares.
“Deserto
alimentar é um conceito que foi colocado nos EUA há mais de 10 anos, quando
começaram a perceber que áreas de baixo nível econômico ou segregadas
racialmente tinham poucos lugares para compra de alimentos ditos saudáveis
e chegaram a hipótese que isso estaria determinando a escolha das pessoas: se
eu não tenho onde comprar talvez eu não faça as melhores escolhas”, explica Ana
Clara Duran, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Alimentação na
Universidade Estadual de Campinas Unicamp.
O consumo
de alimentos de má qualidade como refrigerantes, biscoitos recheados e
salgadinhos, os chamados ultraprocessados, pode levar a quadros de
subnutrição – que nem sempre está associada à fome ou à falta de comida. Uma
pessoa pode se alimentar com frequência, e até estar acima do peso, e isso não
significa que ela estará bem alimentada.
“As
pessoas aqui têm que andar mais de 500 metros da sua casa para encontrar um
alimento in natura. Imagina, você ter que andar 500 metros pra encontrar uma
alface, um cheiro verde? Este andar desmobiliza as pessoas”, conta Thiago
Vinícius.
A
recomendação da Organização Mundial da Saúde é a ingestão diária der 400 gramas
de frutas e hortaliças.
“A gente
vive em um território em que tem pessoas que morrem de fome e pessoas que estão
todo dia no fastfood. Porque nunca teve fastfood aqui, e agora a gente tá
vivendo uma explosão de fastfood”, afirma Vinícius.
Pântanos Alimentares ou
Competição na Venda de Alimentos
Mais
recentemente um novo conceito tem sido levado em consideração, principalmente
para a realidade brasileira: os pântanos alimentares, áreas em que há competição
entre os alimentos in natura e os processados e todos os níveis.
“Esses
locais de baixa renda têm lugares onde comprar comida, só que em menos
quantidade”, afirma a pesquisadora Duran.
mas não
são apenas a distância geográfica e a baixa renda que determinam a escolha do
produto a ser consumido: a falta de informação, a publicidade e a correria da
vida cotidiana também contribuem.
“O tempo
das pessoas hoje está muito escasso. Acaba entrando essa questão do trabalho da
exploração do trabalho e o que você vai comer em casa” pontua Thiago
Vinícius.
De acordo
com uma pesquisa realizada pelo Datafolha em 2017, somente 40% dos brasileiros
consomem frutas e hortaliças todo dia. A pesquisa ainda mostra que a região
Sudeste e pessoas com maior escolaridade e das classes A e B (acima de 10
salários mínimos) são os que mais consomem.
Esse é um
padrão que vêm se repetindo. Em 2008, uma pesquisa realizada pela Cepea –
Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Esalq/USP, mostrou que
pessoas com rendimento mensal de até dois salários mínimos consumiam 15,3 Kg de
frutas em um ano; já entre os com renda superior a 15 salários mínimos, o
consumo era de 59,2 Kg.
Indústria e marketing na
Indústria
Tereza
Campello, titular da pasta do Desenvolvimento Social e Combate à Fome durante
os governos Dilma Rousseff (PT), fala sobre o papel das grandes indústrias
alimentícias e da publicidade ligada a elas.
“Em
geral, as pessoas costumam achar que o território é um território de baixa
renda e por isso não interessa a determinadas redes de supermercados irem pra
ele. Só que tá indo pra lá uma alimentação de baixíssima qualidade”. E
completa “A indústria se aproveita da falta de informação para vender o que tem
de pior, de menos sustentável, que é o alimento ultraprocessado, cheio de sal,
cheio de açúcar, cheio de gordura”.
O
marketing muitas vezes tem responsabilidade central na escolha por tais
alimentos – mesmo quando a pessoa tem à mão comida saudável e barata, como
arroz e feijão.
“As
pessoas de menor escolaridade estão menos protegidas desta publicidade, elas
têm menos acesso à informação e acabam muitas vezes, mesmo tendo uma restrição
orçamentária, priorizando, por exemplo, uma bebida láctea cheia de açúcar e
corantes, que nem iogurte é, ao invés de comprar leite in natura ou fazer o
iogurte em casa”,afirma Ana Clara Duran.
“Quem vai
no supermercado vê: onde estão os produtos mais chamativos e de pior qualidade?
Justamente naquelas prateleiras que as crianças têm acesso”, lembra Tereza
Campello.
Distribuição Industrial
A
indústria de ultraprocessados também tem a seu favor a distribuição para
os pequenos comércios nos bairros. A facilidade de armazenagem desses produtos
e benesses que as empresas disponibilizam aos bares e mercadinhos de
localidades mais afastadas, ajudam a explicar o consumo elevado.
“As
grandes distribuidoras de bebidas estão em todos os lugares. Eles têm uma
política de suprir a geladeira, o que, às vezes, é um limitante do mercadinho
de bairro. Eles não podem manter muito alimento fresco por que não têm
refrigerador para mantê-los. Aí você vê a geladeira da Coca-Cola, da Ambev”,
elucida Duran.
O estudo Mapeamento dos Desertos
Alimentares no Brasil,
elaborado pelo Ministério do Desenvolvimento Social em 2018, mostra
que 89% dos estabelecimentos de venda de alimentos em 2016 eram de
pequeno porte.
“A gente
já vê o lobby aí, e isso vai trabalhando o imaginário na cabeça das pessoas que
elas precisam comer só aquilo”, comenta Thiago Vinícius.
Periferia e Alimentos Orgânicos
Inaugurado
há dois anos na Zona Sul de São Paulo, o Armazém Organicamente investiu na
agricultura familiar mais de R$ 20 mil, de acordo com Thiago Vinicius. Por
semana, o empreendimento vende entre R$ 500 e R$ 1.000. “A gente funciona
quinta, sexta e sábado, perto do terminal, em um horário que o morador para
aqui, compra e já vai pra casa”.
A
cozinheira Cleonice, conhecida por Tia Nice, comanda um outro projeto da Agência
Solano Trindade, a Cozinha Criativa, no qual ela aproveita os alimentos
que não são vendidos no Armazém.
“Reaproveitamento
alimentar. Pra venda já não é legal, mas pra gente… Pra suco, para salada, para
feijoada vegana, para tudo isso ainda funciona. Agora, para venda ela já não
funciona, aí a gente reaproveita”.
Esse não
é o único projeto que Tia Nice e a Cozinha Criativa participam. Mensalmente,
ocorre na zona oeste da capital paulista a Feira Agroecológica e Cultural
de Mulheres no Butantã. “A gente tem uma reunião uma vez por mês que a gente
faz uma semana antes da feira, para ver a onde a gente vai pegar os orgânicos.
Aí chega até a feira domingo de manhã tudo fresquinho”, conta.
A Feira é
coorganizada pela Associação Nacional Reggae, pelo NESOL e pela Incubadora
Tecnológica de Cooperativas Populares da USP (ITCP/USP). Ela faz parte da Rede
de Economia Solidária e Feminista (RESF).
Tem
aceitação do público? Tia Nice garante que sim. “A feijoada vegetariana todo
mundo já espera ela uma semana antes. Muito bem aceita”.
Alternativas para Distribuição de
Alimentos
As
iniciativa têm atraído também empresários do setor de alimentação, como
Fernando Saraiva, dono do buffet Chef Orgânico na região do Campo Limpo,
que passou a se abastecer no Armazém Organicamente.
Antes,
ele gastava três horas parar comprar orgânicos na Água Branca,
zona oeste de São Paulo. “A minha empresa é aqui no Campo Limpo e eu moro
no Campo Limpo, então, pra mim facilitou bastante tendo esse ponto de orgânico
com preço mais competitivo”.
Para além
da qualidade dos alimentos, Saraiva destaca a função social do Armazém
Organicamente: “A maioria dos fornecedores vem de agricultura familiar e de
cooperativas. É um ponto de divulgação e de conscientização” conclui.
Políticas públicas para Orgânicos
O Direito
Humano à Alimentação Adequada é assegurado pelo artigo 25 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) e pela
Emenda Constitucional nº 64 no artigo 6º da Constituição brasileira.
“Se a indústria não vai fazer isso, ela mesmo se autorregular, a quem caberia garantir que essa situação mudasse? ao Estado. O Estado tem que passar a regular a produção, a distribuição e a venda de alimentos, em especial aquilo que é vendido para a população de baixa renda” defende Tereza Campello.
“Se a indústria não vai fazer isso, ela mesmo se autorregular, a quem caberia garantir que essa situação mudasse? ao Estado. O Estado tem que passar a regular a produção, a distribuição e a venda de alimentos, em especial aquilo que é vendido para a população de baixa renda” defende Tereza Campello.
O Brasil
vive um desmonte do setor desde o golpe de 2016, que derrubou a presidenta
Dilma Rousseff (PT), e que se aprofunda com a atual gestão de Jair Bolsonaro
(PSL).
“Houve
muitos desmontes nos últimos meses, o Pronaf (Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar) diminuiu a praticamente zero o
aporte de dinheiro para crédito da agricultura familiar. O investimento em
outra política muito importante, o Programa de Aquisição de Alimentos, já vem
caindo nos últimos três anos e praticamente está inexistente hoje. Essa
política ajudava a produção de agricultores familiares a chegar às escolas
e instituições públicas”, lembra Duran
A
pesquisadora ressalta ainda os ataques ao Programa Nacional de Alimentação
Escolar e as idas e vindas do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (Consea), extinto por Bolsonaro em janeiro e recriado em
maio após muita pressão.
Saídas para Alimentos Orgânicos
A exemplo
da reinstauração do Consea, as mobilizações populares e institucionais têm
conseguido avanços no Brasil e no mundo.
Duran
destaca a importância de se criar “políticas que façam com que nossas escolhas
sejam mais saudáveis”, como as de tributação, por exemplo, que aumentem o preço
desses ultraprocessados em relação ou alimentos in natura e minimamente
processados.
“Há
algumas experiências fora do Brasil, no México, nos Estados Unidos, na
Inglaterra, África do Sul, que tributaram bebida açucarada, refrigerantes por
exemplo, e bastou aumentar o imposto desses produtos que caiu o consumo”.
A
restrição da publicidade é outro caminho, limitando, por exemplo, o uso
de imagens lúdicas nas embalagens. “O Chile implementou essa política
há alguns anos. O cereal matinal que a gente come e que tem o Tigre na frente,
lá a embalagem não tem um tigre na frente. Até bolachas recheadas, lá não vai ter
o personagem infantil”.
Também se
discute melhorar a informação nutricional nos rótulos doa alimentos.
“A Anvisa
está discutindo agora atualizar a rotulagem nutricional de forma a colocar
mensagens na frente, avisos [com as mensagens] alto em açúcar, alto em
sódio, alto em gordura saturada”, diz.
Outro bom
exemplo brasileiro vem do estado de Minas Gerais, que acabou de implementar uma
lei que restringe a venda de diferentes ultraprocessados nas escolas, tanto
públicas, quanto particulares, lembra Duran.
Tereza
Campello no entanto ressalta: “A população tem que voltar a se organizar por
esse tema, que não é só fome, mas alimento saudável e sustentável”.
Edição: João Paulo Soares (Brasil de Fato) e Mazinho (Mangue do Cachoeira)
https://www.brasildefato.com.br//2019/09/21/coletivos-levam-comida-saudavel-a-desertos-alimentares-em-sp/