Como o Brasil passou de uma
situação de ciclo virtuoso, com o estado atuando na economia através de
políticas de aumento do salário mínimo e ampliação de benefícios sociais, para
um ciclo contrário, de recessão econômica, perda de direitos e renda, com
aumento da desigualdade e pobreza
Vista suas galochas, o brejo está logo ali!
por Tiago Macambira no Jornalistas Livres Sociedade e Golpe Quebra os Brasil
Manifestação contra as reformas trabalhistas e
previdenciária. Brasília, 24 de maio de 2017.
Foto: Tiago Macambira |
Em
entrevista aos Jornalistas Livres o pesquisador Emilio Chernavsky, autor da
tese de doutorado pela USP “No mundo da fantasia: uma investigação sobre o
irrealismo na ciência econômica e suas causas”, conta um pouco da recente
história econômica no Brasil e faz um alerta em relação à contra-reforma
trabalhista que está em tramitação no Senado:
“Individualmente,
para cada unidade produtiva, reduzir o custo de salários pode ser interessante.
Mas se todos fizerem isso, cai a demanda da economia e não vai ter mais para
quem vender.”
O
pesquisador ainda elucida como o país passou de uma situação de ciclo virtuoso,
em que o Estado interveio positivamente na economia através de políticas de
aumento do salário mínimo e ampliação de benefícios sociais, por exemplo; para
um ciclo contrário, de recessão econômica, com perda de direitos e renda,
aumento da desigualdade e pobreza.
Achávamos
que canções como “Brejo da Cruz” de Chico Buarque, que aborda a miséria, a
exclusão, o sofrimento, a fome de crianças e a total ausência do Estado nas
periferias mais pobres do Brasil, fosse ficar no plano da arte e da história.
Jamais pensaríamos que os meninos desassistidos dos Brejos da Cruz espalhados
pelo Brasil fossem novamente perder o mínimo de dignidade conquistada nos
últimos 13 anos.
O menino
da canção “Brejo da Cruz”, de Chico Buarque (1984), escapou da fome, da
pobreza, foi à escola, cresceu, andou de avião, teve um filho. Agora este pai
jardineiro, na tentativa de proteger o futuro do filho e aflito com sua
lembrança sombria do brejo de sua infância de fome, encontra-se com a cruz na
frente do brejo do Congresso Nacional. Virou Jesus. E ninguém pergunta de onde
essa gente vem. (leia a letra da canção no final da entrevista)
Jornalistas Livres (JL): De
onde surgiu essa pauta da reforma trabalhista? Por que a reforma trabalhista
enviada ao congresso era mais enxuta e só depois foi ampliada com emendas
oriundas da CNI (Fiesp), CNT e FEBRABAN? Foi uma janela de oportunidade dentro
do golpe? Ou o golpe foi pra isso mesmo?
Emilio
Chernavsky (EC): Foi a
janela de oportunidade para realizar o “sonho de consumo” das federações
patronais.
Nos
últimos anos (desde 2003), o mercado de trabalho foi ficando cada vez mais
apertado; os patrões perderam um poder de barganha para o trabalhador de uma
forma que ele nunca tinha tido dentro dessas regras (Constituição de 1988),
principalmente de 2005 até 2014.
JL: Por quê?
EC: Você tem uma dinâmica virtuosa
em que o aumento do salário mínimo, regulado por lei, conduz à expansão da
renda no mercado de trabalho e também fora dele, via transferências da
previdência. Isso aumentou a demanda interna na economia que, ao aumentar a
procura por trabalho, diminuiu o desemprego. Com desemprego menor, o
trabalhador tem condições de exigir salários maiores, que lhe permitem consumir
mais, realimentando o ciclo de expansão da demanda. Esse ciclo virtuoso interno
foi ainda ajudado por outro, de origem externa, o chamado boom das commodities que,
ao aumentar seus preços e volumes, permitiu a entrada da moeda estrangeira
(como o dólar), necessária para pagar as importações que também cresciam e, ao
aumentar a oferta, ajudavam a controlar os preços no país.
Além da
mudança das regras de aumento do salário mínimo, os governos do PT tomaram
outras medidas que ajudaram a aumentar a renda do trabalhador e as
transferências da previdência. São importantes nesse sentido, por exemplo, o
esforço da formalização com a criação do MEI (micro empreendedor individual), e
a facilitação no reconhecimento de direitos com mudanças regulamentares e a
expansão de agências do INSS. Ou seja, ao mesmo tempo em que se aumentava o
valor dos benefícios com a elevação do salário mínimo, aumentava-se também o
número de pessoas com direito aos benefícios; dando impulso à demanda interna
na economia.
JL: Trocando em miúdos, esse
dinheiro fruto do contínuo aumento do salário mínimo e das transferências
previdenciárias vai ser gasto direta e indiretamente com o pequeno comércio
(padaria, mercado, cabeleireiro, restaurante, loja de sapato, confeitaria,
bicicletaria, pequenas fábricas e empresas de serviços)?
EC: Isso! Comércios, serviços… que
acabam tendo que contratar mais gente. Inclusive a indústria que atende ao
mercado nacional cresceu muito naqueles anos. As pessoas começaram a comer
mais, comprar geladeiras pra guardar alimentos, máquina de lavar, carro…
JL: Aí então você entra
naquele famoso ciclo virtuoso…
EC: E com dois motores iniciais: a
demanda externa e as políticas de expansão dos benefícios sociais e de aumento
do salário mínimo. Por conta disso, o desemprego caiu e o salário aumentou
ininterruptamente de 2003 (início do governo Lula) até o fim de 2014. Então, o
que aconteceu? Os trabalhadores com mais poder de barganha podiam sair de um
emprego ruim e mudar para um melhor, caso as condições de trabalho e o próprio
salário não melhorassem. Essa situação foi favorecendo o lado do trabalhador e,
com o crescimento da economia, também dos empresários até 2010 – 2011 – e
alguns setores até 2014.
Além
disso, os jovens começaram a entrar cada vez mais tarde no mercado de trabalho,
a estudar mais, a querer melhores salários; tivemos também uma mudança
demográfica e as mulheres passaram a ter filhos um pouco mais tarde e com isso
não mais se submetiam a qualquer trabalho.
Com esse
aumento relativo do poder de barganha dos empregados e o consequente aumento do
salário, as margem de lucro foram encolhendo desde 2010 / 2011, ainda que o
lucro tenha em muitos casos se mantido alto. Com a queda, o empresário,
principalmente do setor de serviços em que o custo da mão de obra impacta mais
na redução de seus lucros, vai querer ver salários menores…
JL: Suponha que eu seja um
pequeno empresário… Em um primeiro momento, reduzir os salários vai-me fazer
bem, mas, num segundo momento, isso fará bem para a economia de modo geral?
EC:
Individualmente, pra cada unidade produtiva, reduzir o custo dos salários pode
ser interessante. Mas se todos fizerem isso, cairá a demanda da economia e não haverá
para quem vender. E com a redução dos custos de salários, com a reforma
trabalhista e a redução das aposentadorias, prevista pela reforma
previdenciária, a queda da demanda vai se aprofundar ainda mais.
JL: Logo, efetuar essas
reformas é dar um tiro no próprio pé….
EC:
Apoiar reformas draconianas nessas áreas em um momento em que o mercado de
trabalho se encontra deprimido é um tiro no pé, já que vai reduzir a renda de
muitos entre os próprios apoiadores. Os empresários tiveram anos de ouro e
muitos ganharam muito dinheiro ao mesmo tempo em que muitas empresas foram
criadas. E muitos, especialmente parte daquele novo pequeno empresariado que
não tinha vivido longos tempos ruins como tivemos no passado, considerava que
essa situação seria permanente. Ao perceberem que não é, e nos últimos anos
verem seus lucros cair, a única solução que lhes ocorreu foi a que pareceu
fazer sentido do ponto de vista individual. Daí apoio a essas medidas.
JL: Se o trabalhador e o
empresário (pequeno e médio) perdem com essa reforma, a quem ela interessa
afinal?
EC:
Parte das empresas vai quebrar, mas de alguma forma vão continuar a existir
empresas prestando serviços e produzindo. E as que ficarem, sobreviverão a
custos menores e com taxas de lucro maiores.
JL: E com isso vai aumentar a
importância econômica dos oligopólios?
EC:
Você tem sim uma forte tendência à concentração dos
mercados em muitos setores e, quando se reduz seu tamanho, que é o que tende a
acontecer em muitos casos, os mercados tendem a se oligopolizar.
JL: E o que ocorrerá em
relação à formalização do mercado de trabalho?
EC:
Provavelmente, haverá uma formalização em determinados setores, mas o próprio
trabalho formal tende a se precarizar, já que as reformas trabalhistas são em
sua essência precarizantes, facilitando as demissões e reduzindo a remuneração.
JL: É como se precarizasse as
relações de trabalho da classe C sem ainda ter formalizado as relações das
classes D e E.
EC:
É uma boa analogia.
JL: E todas essas alterações
propostas farão o emprego aumentar? Com essas novas flexibilizações de horários
de serviços, o empresário vai poder contratar mais?
EC:
Vai poder, mas dificilmente o fará. Com o fim da hora extra (ou banco de horas
individual) e com essa situação de crise, o trabalhador vai trabalhar o quanto
ele conseguir. Dessa forma o empregador não vai precisar, num primeiro momento,
contratar novos empregados para responder a um hipotético aumento da demanda.
JL: Como fica a segurança
jurídica nas relações trabalhistas? Não tende a diminuir?
EC: Nosso sistema jurídico é
custoso e gera incerteza. O sistema tributário é muito confuso, regressivo e
também incerto, pois dá muita discricionariedade à fiscalização. A crítica
liberal que aponta nossa excessiva burocracia é verdadeira. Isso é custo. E
tendo todos esses custos, uma indústria mais velha, redução da escala produtiva
e com a logística um tanto problemática não iremos concorrer, por exemplo, com
a China, ainda que os custos trabalhistas cheguem a ser o mesmos que os
praticados naquele país. Em resumo é isso: vai haver diminuição do mercado
interno, aumento da pobreza e aquele pequeno empresário que defende essa
precarização do trabalho vai dançar. E as contas públicas vão piorar muito,
pois a arrecadação vai continuar caindo ou ficará estagnada..
E além
disso tudo teremos uma situação inédita no país, em que a próxima geração que
entrará no mercado de trabalho terá uma situação muito mais difícil que seus
irmãos ou amigos mais velhos que, por exemplo, obtiveram bolsas de estudo para
entrar na universidade, participaram de programas de habitação, não tiveram que
entrar tão cedo no mercado de trabalho etc.
Música Brejo
da Cruz de Chico
Buarque
A novidade
Que tem no Brejo da Cruz
É a criançada
Se alimentar de luz
Alucinados
Meninos ficando azuis
E desencarnando
Lá no Brejo da Cruz
Eletrizados
Cruzam os céus do Brasil
Na rodoviária
Assumem formas mil
Uns vendem fumo
Tem uns que viram Jesus
Muito sanfoneiro
Cego tocando blues
Uns têm saudade
E dançam maracatus
Uns atiram pedra
Outros passeiam nus
Mas há milhões desses seres
Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta
De onde essa gente vem
São jardineiros
Guardas-noturnos, casais
São passageiros
Bombeiros e babás
Já nem se lembram
Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças
E que comiam luz
São faxineiros
Balançam nas construções
São bilheteiras
Baleiros e garçons
Já nem se lembram
Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças
E que comiam luz
A novidade
Que tem no Brejo da Cruz
É a criançada
Se alimentar de luz
Alucinados
Meninos ficando azuis
E desencarnando
Lá no Brejo da Cruz
Eletrizados
Cruzam os céus do Brasil
Na rodoviária
Assumem formas mil
Uns vendem fumo
Tem uns que viram Jesus
Muito sanfoneiro
Cego tocando blues
Uns têm saudade
E dançam maracatus
Uns atiram pedra
Outros passeiam nus
Mas há milhões desses seres
Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta
De onde essa gente vem
São jardineiros
Guardas-noturnos, casais
São passageiros
Bombeiros e babás
Já nem se lembram
Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças
E que comiam luz
São faxineiros
Balançam nas construções
São bilheteiras
Baleiros e garçons
Já nem se lembram
Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças
E que comiam luz
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