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A criança de uma família com recursos pode até ter seus desejos atendidos, mas
nunca ficará feliz
por THAIS PAIVA
para Carta Escola - Sociedade e Influência da Propaganda em crianças
Elas participam das decisões de compra da família, passam, em média, 5 horas e 22 minutos diários em frente à televisão – tempo estimado pelo IBGE, em vários casos é superior ao despendido em período escolar no
Brasil ou no convívio com os pais. São elas que algumas vezes apresentam aos familiares
novos produtos e os informam sobre o que está ou não na moda. Em outras
palavras, as crianças são um importante e rentável alvo para os anúncios
publicitários e outros tipos de comunicação tipo propaganda.
O fato pode ser constatado pela quantidade de personagens de desenhos e
filmes infantojuvenis que estampam marcas de roupas, brinquedos, materiais
escolares e produtos alimentícios. A mensagem dos comerciais é invariavelmente
a mesma: as crianças mais felizes e populares são aquelas que possuem
determinado item. E, claro, os pais, aqueles que presenteiam seus filhos
com esses personagens.
Pauta constante nas casas e escolas, a discussão acerca da publicidade e
do consumismo infantil ganhou novo fôlego em março de 2014 com a aprovação da
Resolução nº 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente,
o Conanda, órgão vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República. O texto passou a classificar como abusivas todas as formas de
publicidade dirigida às crianças e adolescentes.
Combinada ao artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor, que prevê como
abusiva e ilegal a publicidade que se aproveite da deficiência de julgamento e
experiência da criança, a resolução tem força para proibir a veiculação desse
tipo de propaganda. Segundo o documento, estão banidas quaisquer comunicações
mercadológicas com intenção de persuadir esse público ao consumo,
utilizando-se, entre outros, de uso de linguagem infantil, efeitos especiais,
excesso de cores, trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de
criança e participação de celebridades e personagens com apelo ao público
infantil.
A resolução, porém, não está sendo respeitada pela Associação Brasileira
de Anunciantes (ABA), a Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap)
e outras entidades ligadas ao ramo publicitário, que declararam que “reconhecem
o Poder Legislativo, exercido pelo Congresso Nacional, como o único foro com
legitimidade constitucional para legislar sobre publicidade comercial” e que “a
autorregulamentação exercida pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação
Publicitária (Conar) é o melhor e mais eficiente caminho para o controle de
práticas abusivas em matéria de publicidade comercial”.
“A resolução do Conanda não é lei e não pode infringir a Constituição
Federal, por isso, entendemos que não tem aplicação legal”, diz Paulo Gomes de
Oliveira Filho, assessor jurídico da Abap. “A resolução estabelece que pelo
simples fato de ser direcionada ao público infantil já é uma propaganda
abusiva, não importa que o conteúdo não o seja, o que é um absurdo.” Para o
advogado, a publicidade é um ponto infinitamente pequeno dentro da orientação
da criança. “Não dá para colocar a propaganda como a caixa de Pandora,
responsável por todos males do mundo, pela obesidade infantil, por exemplo. São
os pais que sabem se devem ou não levar o filho ao fast-food e se ele pode
comer um ou dois sanduíches”, diz.
Para Diego Medeiros, defensor público do estado de São Paulo e
representante da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e
Defensores Públicos da Infância e da Juventude no Conanda, a Resolução nº 163
soma esforços ao Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) para maior compromisso e responsabilidade da sociedade em
relação ao tema. “Os operadores de direito devem ficar atentos para que a
aplicação harmônica desses três instrumentos normativos seja pauta no cenário
político brasileiro. A resolução traz respaldos e princípios definidos dentro
do ECA e deve repercutir de forma administrativa ou até mesmo judicial, no
sentido de fazer os publicitários se responsabilizarem por condutas
consideradas abusivas”, diz.
A aprovação do documento foi festejada pelo Instituto Alana, organização
sem fins lucrativos de assistência social, educacional e cultural para
crianças, que vem lutando a favor da proibição desde 2006. “A criança não tem
desenvolvimento cognitivo para compreender a intenção persuasiva das mensagens
publicitárias, o que é real e o que não é. Logo, não existe relação de
igualdade entre anunciantes e público infantil.
Com a proibição, elas serão poupadas desse apelo consumista, dessa
inversão de valores onde para ser alguém na vida ela precisa ter tal coisa”,
diz Isabella Henriques, diretora do instituto. A responsabilidade de cuidado
das crianças, defende Isabella, não é exclusivamente da família, mas também da
sociedade e do Estado. “Os pais têm sua responsabilidade, sem dúvida, mas eles
não têm como lutar contra essa avalanche de anúncios publicitários sozinhos,
que entram em casa por diversos veículos de comunicação e instituições. Cabe ao
poder público fazer uma regulação e às empresas respeitar essas normas”,
aponta.
Em resposta à postura das empresas, o Instituto Alana encaminhou em maio
uma denúncia à Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça.
Segundo nota da organização, as campanhas publicitárias continuam falando
diretamente com as crianças. Boa parte das trilhas sonoras, linguagem e
personagens utilizados ainda têm conotação voltada diretamente ao público
infantil. A Senacon comprometeu-se em analisar o caso.
Infância e a exposição ao consumo
Ao contrário do que alegam as entidades publicitárias, a propaganda tem
um impacto direto e nocivo na vida e desenvolvimento dos pequenos. É o que
retrata o documentário Criança, a Alma do Negócio (2008), dirigido por Estela
Renner (de Muito Além do Peso). Sob um olhar crítico, o filme revela como as
marcas manipulam o desejo e a fantasia infantis, a fim de transformá-los em
consumidores mirins. Em uma das cenas, a psicóloga Roberta Carneiro mostra para
um grupo de crianças um cartão com a imagem de um avestruz. Nenhuma criança
consegue dizer o nome do animal. Mas o cenário é bastante diferente quando os
cartões trazem os logotipos de empresas de telefonia. As respostas são instantâneas,
estão na ponta da língua.
Para a psicóloga norte-americana Susan Linn, diretora da Campanha por
Uma Infância Sem Comerciais (CCFC) e autora do livro Crianças do Consumo: A
infância roubada, a publicidade e o marketing podem ser apontados como um fator
constitutivo dos problemas que as crianças enfrentam hoje. “Não são a única
causa, é importante destacar. Mas são um fator da obesidade infantil, dos
distúrbios alimentares, da sexualização precoce das meninas, da violência
juvenil, do estresse familiar e um fator importantíssimo na aquisição de
valores materialistas, a falsa noção de que marcas ou as coisas que compramos
nos farão felizes”, disse durante o II Fórum Internacional Criança e Consumo,
promovido pelo Instituto Alana.
Além disso, a publicidade dirigida ao público infantil vale-se da falta
de autonomia e maturidade da criança para vender seus produtos, dizem os
especialistas. “O adulto tem capacidade de escolher, de discernir se aquela
propaganda é fantasiosa ou real. A criança, não. Quando uma propaganda diz que
sem aquele produto ela não será feliz, para ela aquela mensagem traduz um
fato”, diz Júlio Pompeu, professor de Ética do Centro de Ciências Jurídicas e
Econômicas da Universidade Federal do Espírito Santo. Essa diferença entre
realidade e ficção só é construída mais tarde. “Basta ver uma criança brincando
com uma caixa de papelão como se fosse um carrinho. Se você chuta a caixa, ela
chora não porque você chutou o papelão, mas porque chutou o carrinho”, diz.
Pompeu ressalta ainda que a publicidade infantil não está circunscrita à
propaganda de brinquedos e outros itens do universo da criança. “Na família, muitas vezes quem fica mais
tempo em casa vendo tevê são as crianças. Os anunciantes sabem que é com elas
que precisam conversar. Então colocam na propaganda de celular uma criança
falando para elas se identificarem, usam a criança para atingir o adulto.” A
ideologia consumista presente na publicidade estimula também a precocidade,
tratando as crianças como “miniadultos”, pois quanto mais cedo se tornarem
consumidores, melhor. “Erotiza-se a criança, principalmente as meninas. Há um
discurso machista muito presente que qualifica a mulher quanto à sua beleza. A
menina legal é a princesa. Aquela que é bonita e não a que é competente”, diz o
professor.
A promessa de felicidade impacta não apenas o indivíduo, mas a
sociedade como um todo. Segundo Isabella, a criança de uma família com recursos
pode até ter seus desejos atendidos, mas nunca ficará feliz. “O mercado não
quer o cliente satisfeito, e sim querendo sempre mais”, diz. Por outro lado, a
criança que não tem tantas condições vai continuar nutrindo o desejo da posse,
se sentindo inferior aos demais. “Isso pode influir em uma passagem para o
campo da violência. Pesquisas já mostram que um dos fatores que levam crianças
e adolescentes a se envolverem em roubos, furtos ou tráfico de drogas é o
desejo de ter produtos que possam levá-los a ter status social”, aponta
Isabella.
A distinção entre os gêneros masculino e feminino, é outro ponto
exacerbado pela publicidade, diz Amana Mattos, professora de Psicologia da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisadora na área de Infância,
Juventude e Gênero. “Hoje você encontra fralda descartável para meninos e para
meninas, pois assim se criam necessidades específicas, novos nichos de consumo.
Se antes você comprava uma bola para ser compartilhada entre um casal de
filhos, hoje você tem de comprar duas, porque tem bola de menino e de menina.
Isso também acontece em relação às idades: criam-se subdivisões, fases, dentro
da infância e com isso novas possibilidades de venda”, conta.
Entretanto, Amana ressalta que a proibição da publicidade dirigida ao
público infantojuvenil, por si só, não resolve o problema. “A questão central
é: que valores estão sendo passados para as crianças? Proibir não resolve o
problema que é o consumo naturalizado em nossa sociedade”, diz. Para a
professora, é papel da escola e dos pais discutirem sobre a questão. “É
importante construir uma capacidade crítica nas crianças e adolescentes.
Mostrar como a publicidade cria vontades, necessidades inventadas, totalmente
desconectadas com o nosso cotidiano.”
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