O pesquisador social Jessé Souza ainda não entendeu por que Moro não caiu
Como nenhum fato isolado se explica por si
só, é necessário articular conscientemente a cadeia entre as causas para
entender o “desvio” da realidade
por Jessé
Souza no Mídia Ninja – Sociedade
e Luta Popular pela Democracia Brasileira
Imagem: Marcelo Fernandes / @fernandesgraphics / via Design Ativista
O
escândalo da “Vaza Jato”, provocado pelo The Intercept e pela extraordinária
coragem de Glenn Greenwald, desmascarou a hipocrisia do jeito brasileiro de
fazer política que já vem acontecendo há mais de cem anos. A Lava Jato não é,
afinal, uma história de cinco anos que começa em 2014 com o “escândalo da
Petrobras”, mas sim uma história que vem desde 1930, quando Getúlio toma da
“elite do atraso” o poder de Estado. Foi aí que se construiu a ideia
estapafúrdia de que a “corrupção só da política”, usando o conceito de
patrimonialismo como contrabando, é a raiz de todos os problemas brasileiros. A
construção dessa ideia ridícula como suposta explicação central para os
problemas brasileiros “coincide” com a ascensão de Vargas ao poder político
contra as elites do dinheiro. Como a elite do dinheiro tem que “moralizar” sua
rapina, desde então seus inimigos são perseguidos e sistematicamente depostos
do poder com falsas acusações de irregularidade pelo uso supostamente
“patrimonialista” e corrupto do Estado e da política.
Como nenhum fato isolado se
explica por si só, é necessário articular conscientemente a
cadeia entre as causas. Toda exploração econômica tem que se servir de um
“álibi”, ou seja, de um recurso simbólico que torne o fato da exploração
invisível enquanto tal, para poder ser exercida de modo que os próprios
explorados a considerem aceitável ou inevitável. O caso brasileiro é, no
entanto, um caso limite. Alguma forma de distorção
da realidade está sempre presente em todos os casos de sociabilidade humana
conhecidos na história. No caso do nosso país, como o escândalo da “Vaza Jato”
mostra tão bem, a capa de moralidade (justiceiros) não é mera distorção da
realidade vivida. Aqui, tal realidade é “invertida” e posta de cabeça para
baixo, o que explica o caráter patológico e neurótico para quem vive a conjuntura
política atual.
Afinal, a
descoberta irrefutável de uma quadrilha funcionando dentro do aparelho de
Estado, usando os cargos públicos não apenas para enriquecimento e vantagens
pessoais, mas também como uma forma
despudorada de manipular a opinião pública e minar todos os pressupostos da
democracia com fins partidários, não levou – ainda – sequer à perda dos
cargos nem à prisão dos responsáveis (o pesquisador social Jessé Souza ainda não entendeu por que
Moro não caiu). A lei parece não se aplicar aos desmandos de
Moro e sua quadrilha, muito menos para as fontes de renda misteriosas da
família Bolsonaro. Será que é porque esse pessoal assegura, por outro lado, o
saque do Estado e das riquezas nacionais pela elite endinheirada? Quem ainda
possuir dois neurônios intactos saberá responder.
Mas, e
como fica a necessidade de se criar uma capa de moralidade e de falseamento da
realidade para legitimar os desmandos? A
Lava Jato funcionou como articulação explícita para a “corrupção real”, a
da apropriação por agentes privados de empresas públicas a preço de banana, o
mesmo que, aliás, aconteceu recentemente com a BR Distribuidora, pelos bancos
que tiveram uma reunião secreta com Fux e Deltan. Ao que parecia, a questão era
que o PT não podia ser alçado ao poder para não melar os “bons negócios”.
Então, com uma corrupção tão descarada como essa, como ninguém dos “camisas
amarelas” vai às ruas para pedir que a honestidade volte?
Ora, só
pode ser porque a maior parte dos
“camisas amarelas” nunca esteve de fato interessada em combater a corrupção.
O que, de resto, apenas comprova a tese do falso moralismo do “combate à
corrupção”, visto que só vale para partidos populares. A dificuldade geral,
especialmente para a elite e a classe
média, é a perda do único “álibi” existente para mascarar seu ódio e desprezo
pela população negra e mais humilde sob a forma da falsa criminalização dos
seus representantes. É a compreensão intuitiva disso, o que explica também
as idas e vindas de órgãos da elite, como a Veja e a Rede Globo, na cobertura
do caso. Eles precisam manter um vínculo com a realidade, agora desmascarada,
sob o risco de perder qualquer legitimidade, até para a parte mais esclarecida
do próprio público. Por outro lado, estão envolvidos até o pescoço na
manipulação desse mesmo público. O jogo havia sido controlado de cima pela
elite e sua imprensa venal. Moro e Deltan foram apenas os “laranjas”, os
pequenos oportunistas que ficam com as sobras do negócio grande. Tudo indica que a parte mais esclarecida da
classe média já desceu do barco. Reinaldo Azevedo e outros arrependidos
falam para esse público.
É
Bolsonaro e sua base de poder infensa a argumentos racionais que permite a
continuidade da farsa. O seu público
não precisa de legitimação porque seu protesto
radicalizado está vincado em sentimentos irracionais como ressentimento, inveja
social e preconceitos racial e de classe. Inveja e ressentimento contra os
de cima, o que explica os ataques à arte, à cultura e ao conhecimento em geral.
Também a vingança, há muito esperada, contra séculos de desprezo dos “doutores”
contra os remediados entre os pobres, a base real de Bolsonaro, muitos dos
quais são brancos e, por isso, se acham no direito “racial” de um futuro melhor
do que de fato possuem. Contra os de baixo, por sua vez, a raiva se volta para
os negros e mestiços pobres que tiveram a ousadia de ascender socialmente no
período recente e de chegar ainda mais perto deles. É difícil saber o que causa
mais revolta nestes 20% da população brasileira que são a base real da força de
Bolsonaro: a raiva contra os de cima ou contra os de baixo. Esse é seu público
cativo, os 20% que sempre apostaram nele mesmo antes da “fakeada”.
O
discurso contra as elites mostra o sequestro do tema da luta de classes pela
direita, já que a esquerda foi covarde e incapaz de qualquer protagonismo nessa
área.
Para esse
pessoal, a democracia não é mais do
que uma palavra odiada, afinal ela nunca lhes serviu para nada. Ela só parece vantajosa para os já
privilegiados e para a população negra e humilde que ascendeu com o PT. Por
causa disso, Bolsonaro lhes parece o “vingador” perfeito. O discurso contra as
elites, utilizado para a arregimentação dos “bolsominions” para o último dia 26
de maio, mostra o sequestro do tema da luta de classes pela direita, já que a
esquerda foi covarde e incapaz de qualquer protagonismo nessa área. Por outro
lado, a única política pública informal
efetiva do bolsonarismo é armar milícias e polícias para a chacina
indiscriminada dos negros, índios e pobres, o que alimenta seu desprezo e o de
seu público pelos mais frágeis. Da mesma forma que a distância em relação à
“cultura” os inferioriza, a violência aberta contra os mais frágeis os torna
“aparentemente” poderosos. A destruição da cultura e do conhecimento satisfaz
sua inveja. A destruição dos fragilizados
satisfaz seu desprezo e seu medo deles. É tudo aparência para mentes doentias,
mas a aparência pode ser tudo para quem não tem mais nada.
Essa
“minoria barulhenta” pressente que o momento da vingança chegou. Ela se tornou
abertamente fascista porque é ela que diz: não importa se é ou não verdade o
que diz a “Vaza Jato”. O que importa é o que é “necessário” para se sentir
melhor do que se é. São pessoas em boa parte frustradas na vida privada, que usam a política como forma de dar sentido a
uma vida vazia e sem direção. O “bolsominion” típico é um pobre remediado,
na maioria um “lixo branco” sem cultura e sem grandes esperanças na vida, que,
de repente, pode se ver como protagonista de alguma coisa. Ao se definir como conservador e de direita, se sente como alguém que
“protesta”, um pequeno herói, supostamente contra as tendências de seu tempo,
que ao se identificar com o tirano que “tira onda” de poderoso, se sente
igualmente poderoso. Como é incapaz de compreender uma realidade complexa,
refugia-se em bravatas estereotipadas e finge conhecer muito do que nada
conhece.
Para
essas pessoas, Moro é, hoje, tanto seu herói quanto Bolsonaro. Os “likes” de
Moro desceram a escala social, embora ele não tenha a menor ideia disso.
Acredita-se onipotente. Como sua valia para Bolsonaro era ser uma ponte com a classe
média estabelecida pseudomoralista, toda a sua base de apoio mudou ou está
mudando. Os 20% de supostos “empoderados” barulhentos é a única sustentação
real do atual arranjo de poder. Bolsonaro, por sua vez, também depende de Moro.
Afinal, a mentira da Lava Jato se alongou
na própria mentira. Sem a Lava Jato não existiria Bolsonaro. Os dois são
carne da mesma carne e sangue do mesmo sangue. A solução não é simples para
ninguém neste jogo. Ver a “casa cair” é o que o “bolsominion” mais quer.
Enquanto isso, a elite mais saqueadora
quer a grana fácil das grandes mamatas e sequer se dá conta do perigo.
Bolsonaro institucionaliza o roubo pequeno e miliciano do botijão de gás sem
bandeira. Esses são, hoje em dia, os apoios efetivos da Lava Jato. Os 80%
restantes observam bestializados um mundo que não mais compreendem.
*Texto
publicado originalmente em www.jessesouza.com.br
http://midianinja.org/editorninja/jesse-souza-por-que-moro-ainda-nao-caiu/