Alunas no desfile de 7 de Setembro em Araranguá (SC), em 1975
Por Cinthia Rodrigues - reportagem especial
Formação de professores em escala, fortalecimento da educação privada,
segmentação de currículos e até mesmo a arquitetura prisional dos
prédios. Tais práticas e características da educação brasileira às quais
nos habituamos dizem muito sobre o regime militar imposto durante mais
de duas décadas ao País e a seus cidadãos. Outros resquícios do
cinquentenário golpe são mais escusos, porém não menos nocivos. A
dificuldade que as escolas encontram em lidar com a aprendizagem de
forma democrática, a intolerância à diversidade e a falta de referências
mais experientes seriam também decorrência da formação repressiva. “O
controle político e ideológico permanece nas mentes e nos corpos”,
resume Aparecida Neri de Souza, professora da Faculdade de Educação da
Unicamp com pós-doutorado em Sociologia do Trabalho Docente.
Segundo Aparecida, a escola foi um dos principais motores do projeto
desenvolvimentista do regime. Para aumentar a produção industrial, a
infraestrutura e o consumo, era necessário ter mais “mão de obra
qualificada”. Logo, foram construídas escolas da forma mais barata,
cresceu o número de matriculados por sala e de horas de trabalho dos
professores e incentivou-se a criação de instituições particulares.
Ao mesmo tempo, houve uma reforma curricular que visava à formatação
ideológica. Saíram as aulas de Filosofia e entraram as de Educação Moral
e Cívica (EMC), ministradas a crianças, adolescentes e adultos em todos
os níveis de ensino. Física e Química foram simplificadas em “Ciências”
e História e Geografia, em “Ciências Sociais”.
A quebra no projeto educacional que estava em curso no Brasil pode ser
notada pelos nomes dos líderes de então que passaram a ser perseguidos.
Entre os educadores estavam Anísio Teixeira – encontrado morto, sem
sinal de queda, no fosso de um elevador – e Paulo Freire e Darcy
Ribeiro, exilados. “Perdi muitos amigos nessa época. Os melhores”,
lembra o formador de professores Luciano Lima Castro, torturado enquanto
cursava a Faculdade de Matemática da Universidade de São Paulo (leia o
depoimento na pág. 23).
“Os responsáveis pelo golpe eram bons estrategistas. Eles tiraram de
cena as maiores cabeças e iam controlando de cima para baixo. Quando se
chegou às salas de aula das escolas comuns, não foi preciso fazer muito.
Nós já estávamos sem rumo”, analisa Castro. “Tínhamos, no início dos
anos 1960, um debate efervescente alimentado por grandes pensadores. Uma
conjuntura que nunca mais tivemos, tamanha foi a eficácia dos
ditadores”, lamenta. Castro começou a dar aulas em 1969 e conta que
desde o início teve consciência de que não fazia pelos alunos o mesmo
que havia sido feito por ele como estudante poucos anos antes: “Minha
primeira atuação política era dar uma boa aula e eu não conseguia. Não
se aprendia na faculdade e todas as referências tinham sido
liquidadas”.
Além da perseguição direta, os cursos superiores de formação de
professores passaram a ter currículo obrigatório, em vez do caráter
multidisciplinar que impera nos países democráticos. Todo o Ensino
Superior foi reformulado em 1968 e o Ensino Médio em 1971, ambos com o
conteúdo de Humanas reduzido. Quem já era formado também teve o trabalho
limitado pela censura com relação a textos considerados “subversivos”.
Para o sociólogo Emir Sader, as aulas passaram a ser mais pobres, a
função da escola foi achatada para a preparação ao mercado de trabalho, e
a do professor passou a ser de mero instrutor. “O conjunto das medidas
teve um efeito devastador sobre o papel da educação na socialização dos
jovens”, diz.
Na análise dele, foi a partir desse momento que a classe média migrou
para instituições particulares e a educação passou a ser vista como
investimento. O setor privado recebeu incentivos e o público foi
sucateado até chegar à escola que conhecemos. “A interferência do regime
resultou na falta de qualidade, de formação docente e de métodos de
ensino e na deterioração das condições materiais.”
Além do Ato Institucional Número 5, que impôs a censura em 1968,
professores e alunos sofreram repressões específicas. A União Nacional
dos Estudantes foi extinta e teve sua sede queimada. O Decreto 477, de
1969, dirigido a professores e estudantes, tratava como infração
disciplinar o uso de “material subversivo”, assim como a participação em
“passeatas” ou o uso da escola para “praticar ato contrário à moral ou à
ordem pública”. Quase 30 anos após a redemocratização, boa parte dos
educadores ainda teme represálias por ações como essas. E com alguma
razão.
Mudança lenta
A ditadura acabou oficialmente em 1985 e uma nova Constituição veio em
1988, mas a Lei de Diretrizes e Bases para a Educação só foi mudada em
1996. Outros resquícios perduraram por ainda mais tempo. Em São Paulo, a
Lei da Mordaça – como ficou conhecido o dispositivo que impedia
servidores públicos de darem declarações que envolvam o governo – só
caiu em 2009. Ainda assim, até hoje o governo usa outros instrumentos
normativos para condicionar entrevistas a autorizações prévias.
“Não se apaga o passado nem se faz tábula rasa”, afirma Aparecida Neri.
Para ela, os docentes trazem marcas da educação controlada que tiveram,
assim como toda a sociedade. “O lento processo de reconstrução vale
para as pessoas. Um exemplo atual é a reação da opinião pública às
manifestações de rua que começaram no ano passado. A maioria só quer
enquadrar os jovens. Poucos estão abertos ao diálogo.”
Na escola, ela vê uma “verdadeira luta” dos educadores para romper com a
verticalização hierárquica e a segmentação das aulas, mas diz que as
iniciativas ainda não encontram respaldo no sistema educacional. “Os
professores se constroem por semelhanças e diferenças. A nova geração
rejeita o autoritarismo e, na ansiedade de se opor, acaba sendo
deslegitimada pelo aluno como alguém que não ensina. A gente tem um bom
conflito atualmente, que é decorrente da tentativa de ruptura.”
Parte da dificuldade em mudar está em reconhecer o que foi o golpe de
1964. Segundo o historiador Carlos Fico, embora a pesquisa sobre o
período seja crescente e haja bibliografia paradidática disponível, os
livros didáticos tratam o assunto de forma simplificadora, como algo
feito exclusivamente pelo Exército, com início, meio e fim. “Essa é uma
leitura romântica que acontece com frequência após períodos traumáticos
porque é delicado falar com a criança e o adolescente sobre algo de que
participaram muitos dos adultos e instituições ainda presentes”,
comenta.
Para sair do óbvio, Fico diz que é necessário enfrentar a complexidade
da questão. Explicar a participação da imprensa, da Igreja e de parcela
da sociedade na derrubada do presidente João Goulart seria um passo. “A
maioria dos professores, por falta de repertório e apoio didático,
reproduz a história de bandidos e mocinhos que lhes ensinaram a contar.”
Antes do golpe, houve uma crescente campanha a favor dos militares. Em
19 de março, sob o comando da Igreja Católica, 500 mil pessoas tomaram
as ruas em São Paulo na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que
protestava contra o presidente João Goulart. Às vésperas da sua
derrubada, o jornal O Globo publicou editoriais em que chamava o quadro à
época de “democracia suicida”.
Em 31 de março, a Folha de S.Paulo criticava a contenção a ações
militares. “Aquilo que os inimigos externos nunca conseguiram começa a
ser alcançado por elementos que atuam internamente, dentro do próprio
País. Deve-se reconhecer, hoje, que a Marinha como força organizada não
existe mais. E há um trabalho pertinaz para fazer a mesma coisa com os
outros ramos das Forças Armadas.”
A falta de menção a fatores importantes como esses faz o golpe parecer
longe da realidade. “É como se todos tivéssemos lutado contra os loucos,
mas por algum tempo houve grande apoio”, ressalta Fico. Cabe à escola
deixar de refletir o período para ajudar a refletir sobre ele.
Expressões da arquitetura
Extensos corredores com salas dos dois lados, acesso a visitantes
apenas pela área da administração, espaços de convívio reduzidos, salas
fechadas. Cada vez que alguém entra em uma escola assim encontra aí
outro legado do regime militar.
Até o início do século XX, os espaços escolares tinham fachada
monumental, janelas verticais, jardins e pátios
internos. Mesmo as
construções modernas e de ângulos retos dos anos 1950 e primeira metade
dos anos 1960 mantinham áreas livres e
salas ventiladas. Por economia
para
expansão e alinhamento à ideologia
de formação individualizada,
isso tudo
foi considerado supérfluo.
“Dois projetos escolares disputavam o cenário mundial nessa época. Um,
chamado escola nova, era de espaços abertos e servia à flexibilização do
currículo; o outro, batizado de polivalente ou econômico, aproveitava
todo o espaço e isolava cada sala. A ditadura escolheu o segundo”,
afirma a arquiteta Rita de Cássia Gonçalves, autora de mestrado e
doutorado sobre o tema.
Nos anos 1970, até o acabamento foi modificado. Telhados clássicos e
janelas largas que garantiam conforto térmico cederam lugar a “terraços
planos” e espaço mínimo de envidraçamento. Os campos de futebol foram
substituídos por quadras de cimento e perdeu-se o espaço e a comunicação
entre os blocos de salas de aula. A ordem era priorizar construções
simples e que pudessem ser expandidas.
“A decadência física das escolas atualmente é decorrente da economia”,
explica Rita de Cássia, em sua tese para a Faculdade de Educação da
Universidade de Santa Catarina (UFSC). Para ela, as mudanças
acompanharam as transformações de currículo e método.
Por conta dessa concepção – e das grades cada vez mais comuns nas
décadas seguintes para evitar furtos –, veio a comparação feita no senso
comum com presídios. “Herdamos uma escola considerada um espaço para
vigiar o sujeito”, afirma.