Projeto de lei pretende mensurar a riqueza gerada
pelas atividades não remuneradas e dar visibilidade a um trabalho feito
essencialmente por mulheres
Trabalho doméstico não remunerado vale 11% do PIB no Brasil
por Dimalice Nunes para Carta Capital – Sociedade e a Verdadeira Contribuição das Mulheres na
Renda Brasileira
Agência Senado
Enquanto homens usam 10 horas semanais em atividades domésticas, mulheres gastam pelo menos o dobro
A proposta de reforma da Previdência estabelece 62 anos
como idade mínima para que mulheres possam
se aposentar e 65 anos para os homens. Apesar da diferença, especialistas em
gênero e participação da mulher no mundo do trabalho afirmam que o cálculo
exclui as horas diárias que mulheres trabalham a mais que os homens e
colabora para invisibilizar ainda mais o trabalho doméstico não
remunerado.
A chamada “economia do cuidado” é o
conjunto de atividades não remuneradas, geralmente exercidas por mulheres, como
a limpeza da casa, preparação de alimentos e o cuidados com crianças, idosos e
doentes da família. Um pacote que vale 11% do PIB atual segundo os cálculos da
pesquisadora Hildete Pereira de Melo, professora de economia da
Universidade Federal Fluminense (UFF) e vice-presidente da Associação
Brasileira de Estudos do Trabalho (Abet). Em valores, foram cerca de 634,3
bilhões de reais em 2015, último dado disponível.
A pesquisadora iniciou seus estudos
sobre invisibilidade da mulher no mercado de trabalho em 1978 e, desde 2001,
ela e sua equipe utilizam os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) para calcular quanto vale o trabalho doméstico não
remunerado. Contabilizar o valor dos afazeres domésticos no PIB do Brasil só se
tornou possível a partir de 2001, quando o IBGE introduziu na Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (PNAD) a pergunta referente ao número de
horas despendido pela população para executar essas atividades.
A conta, no entanto, ainda está aquém
da realidade. Os dados do IBGE são a base dos cálculos de Melo, mas eles
colocam numa mesma cesta um série de trabalhos que, quando remunerados, têm
valores diferentes, como limpeza, cozinha ou o cuidado com idosos – tudo é
classificado de forma genérica como “afazeres domésticos”.
Para calcular a participação
dessas atividades no conjunto das riquezas do País, os pesquisadores usam a
média da remuneração das empregadas domésticas, que é diferente da renda de uma
babá ou cuidadora de idosos, por exemplo.
É essa falta de dados mais precisos
sobre o uso do tempo não remunerado que distorce o dado brasileiro em relação
ao de outros países. Apenas na América Latina mais de 10 países já dimensionam
o valor das atividades domésticas não-remuneradas no PIB. A média fica na casa
dos 20%: 24,2% do PIB no México; 20,4% na Colômbia; 18,8% na Guatemala e
15,2% no Equador.
Da residência para o calculo do valor
verdadeiro do PIB
Segundo a deputada federal Ana
Perugini (PT-SP), 82% dessas atividades são realizadas por mulheres, mesmo num
cenário em que 40% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres de acordo com dados
do IBGE, uma evidente jornada dupla. Ainda segundo o
instituto, homens dedicam cerca de 10 horas semanais às atividades não
remuneradas, enquanto as mulheres dedicam pelo menos o dobro desse tempo. E
mais: 40 milhões de mulheres têm como atividade única o trabalho não
remunerado.
“Quando se trata de reforma da Previdência, dar visibilidade ao
papel da mulher é mostrar que esse trabalho precisa ser reconhecido como
riqueza”, afirma a deputada Ana Perugini. “Não há como ele ser reconhecido
sem se estabelecer um valor. Só mensuramos a economia produtiva e não a
reprodutiva. É comum dizer que o valor de um país está em seu povo, então
precisamos saber de tudo que ele produz”, define.
Mensurar e atribui valor ao trabalho
doméstico não remunerado é bandeira, inclusive, da ONU Mulheres. Segundo
documento do órgão, o trabalho de cuidado não remunerado e o trabalho
doméstico suprem carências em matéria de serviços públicos e infraestrutura.
Eles formam uma carga e uma barreira injustas para a igualdade de participação
no mercado de trabalho e na igualdade de remuneração.
A visibilidade das atividades
realizadas dentro de casa é o foco da proposta, como defende Ana Perugini.
Hildete Melo, da UFF, reforça a ideia. A pesquisadora conta que já chegou a ser
abordada por donas de casa que se sentiram valorizadas quando souberam que seu
trabalho tem um valor efetivo.
“São 40 milhões de mulheres que
trabalham exclusivamente em casa. Pensa na insatisfação que isso gera dentro de
como o mundo do trabalho se organiza”, questiona. “Reproduzir a vida” – e não
só falando na reprodução de fato, mas também do cuidado necessário para que
outras pessoas gerem riqueza material – “é importante. Nós fazemos o que os
homens fazem, mas eles não fazem tudo o que fazemos”, afirma Melo.
Visibilidade é a palavra chave. É por
isso isso que calcular o valor das atividades domésticas tem muito mais a ver
com divisão sexual do trabalho do que com as Contas Nacionais, aquelas que calculam o
PIB do país. “A não valoração decorre da discriminação sofrida pelas mulheres,
a quem foi delegada a execução dessas atividades. A teoria econômica não
fala nada sobre a economia reprodutiva, é tudo sempre pelo viés mercantil, só
se trata do que se vende. Mas não se cria uma criança, se cuida de um idoso ou
doente para vender”, ressalta Melo.
A professora explica que as Contas
Nacionais medem, por conceito, todas as operações socialmente organizadas para
a obtenção de bens e serviços, sejam eles transacionados ou não no mercado, a
partir de fatores de produção obtidos no mercado.
Isso inclui toda a produção para
consumo próprio da agricultura e a produção por conta própria de bens de
capital fixo imobilizados pelo próprio produtor, a casa em que se mora, por
exemplo. Inclui também os serviços domésticos remunerados. “No caso do trabalho
doméstico, quando exercido por terceiros, o valor desse serviço não mercantil equivale
ao valor de sua remuneração, mas quando exercido por alguém da própria família
ele não é computado nas contas nacionais”, esclarece.
O valor capturado ao se medir o
trabalho doméstico não entraria de fato no PIB, ou seja, não inflaria o
indicador. O projeto de lei, que segue recomendações internacionais e
experiências já colocadas em prática em outros países, propõe a criação da
chamada “conta satélite” específica para o trabalho doméstico não remunerado
que funciona de forma paralela às Contas Nacionais, sem alterar seus
resultados, mas fornecendo subsídios para quantificar a contribuição real do
trabalho doméstico não remunerado.
A professora Hildete Melo explica que
alguns países têm sua conta satélite restrita ao trabalho não remunerado em
casa, outros ampliam esta contabilidade incorporando toda a produção realizada
no interior dos domicílios incluindo, por exemplo, atividades de costura ou de
preparo de alimentos “para fora”, a chamada conta satélite da produção
domiciliar. “O fundamental é que a conta satélite expressa de forma realista
essa economia não remunerada. O IBGE já tem as ferramentas para fazer esse
cálculo. O que falta é verba para detalhar em quais atividades específicas as
horas dos ‘afazeres domésticos’ são usadas e fazer a conta”, diz.
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