Jesse Bragg, diretor de comunicação da organização Corporate
Accountability [Responsabilidade Corporativa], comentou: “De certa forma, sou
bastante grato à Shell pela honestidade com relação a algo que os ativistas vêm
dizendo há muito tempo: que as próprias empresas responsáveis pela crise estão
na mesa de negociações redigindo as pretensas soluções para nos tirar dela.”
por Kate Aronoff*
no The Intercept Brasil – Sociedade
e Dúvidas no Acordo de Paris
Um posto
de gasolina da Shell em Louisville, Kentucky, em 20 de julho de 2016. Foto:
Luke Sharrett/Bloomberg via Getty Images
Segundo
um alto executivo da Royal Dutch Shell, a petrolífera teria ajudado a redigir o
acordo climático de Paris.
A
empresa, porém, é também a nona maior emissora mundial de gases do efeito estufa.
O
executivo David Hone, consultor-chefe de mudanças climáticas da Shell, fez seus
comentários na conferência internacional sobre mudanças climáticas, a COP 24,
na última sexta-feira. Hone falou com sinceridade sobre o tamanho da influência
que sua empresa teve na redação do Acordo de Paris, por meio de seu envolvimento
com a Associação Internacional de Comércio de Emissões, a Ieta.
O Acordo
é a peça central da conferência na Polônia, que encerrou no dia 14 de dezembro
de 2018, onde os delegados estão tentaram elaborar um regulamento para sua
implementação. A Ieta é uma organização de lobby corporativo que tem entre seus
associados empresas produtoras de combustíveis fósseis, e que defende “soluções
climáticas de mercado” até mesmo nas discussões sobre clima na ONU.
A julgar
pelo que ele conta, esse envolvimento foi incrivelmente bem-sucedido.
“Conduzimos por quatro anos um processo para que a necessidade do comércio de
unidades de carbono fosse parte do Acordo de Paris. Podemos ficar com parte do
mérito pela simples inclusão do Artigo 6 [do Acordo de Paris]”, disse Hone em
um evento paralelo do Ieta no centro de conferências de Katowice, na Polônia.
“Nós elaboramos uma proposta inicial. Muitos elementos dessa proposta inicial
constam do Acordo de Paris. Depois preparamos uma outra proposta para o
regulamento, e percebemos que alguns elementos apareceram no texto.”
Jesse
Bragg, diretor de comunicação da organização Corporate Accountability
[Responsabilidade Corporativa], comentou: “De certa forma, sou bastante grato à
Shell pela honestidade com relação a algo que os ativistas vêm dizendo há muito
tempo: que as próprias empresas responsáveis pela crise estão na mesa de
negociações redigindo as pretensas soluções para nos tirar dela.”
Pelas
regras da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, apenas
agentes estatais podem negociar oficialmente sobre o texto dos acordos
climáticos, incluindo o Acordo de Paris. Sindicatos, organizações de sociedade
civil e empresas podem ser observadores do processo.
Hone
acrescentou que vem “conversando com algumas delegações” e que “a posição [da
União Europeia] não é muito diferente do ponto de vista da Shell”.
O Artigo
6, o
dispositivo pelo qual a Shell quer levar crédito, destaca os mercados de
carbono como uma das principais formas pelas quais as empresas de petróleo e
outros grandes poluidores poderiam conter suas emissões, permitindo-lhe
adquirir créditos pela redução de emissões em outros locais em vez de
reduzi-las diretamente. Esses sistemas estão cercados de controvérsias e,
essencialmente, não contribuem em nada para reduzir os impactos locais da
extração.
O Artigo
6 trata da mitigação, e do que agentes governamentais e não governamentais
farão para mitigar as emissões, de acordo com a “Contribuição Nacionalmente
Determinada” de cada país. A maior parte do artigo dispõe sobre os chamados
mecanismos de mercado – sistemas de comércio de emissões – que permitem a
cooperação internacional. Apenas uma parte do artigo diz respeito a mecanismos
fora de mercado, que permanecem indefinidos.
Então por
que a Shell está tão envolvida com os mecanismos de mercado?
Num mundo
ideal para a Shell e outros produtores de combustíveis fósseis, esses seriam os
únicos mecanismos governamentais de mitigação em discussão. “O melhor para um
sistema ‘cap-and-trade’ (sistema pelo qual as empresas podem comprar e vender
permissões para emitir gases além do limite estabelecido em lei) é que não
existam políticas concorrentes (…) Se você realmente quer que funcione da forma
mais eficiente possível”, disse Hone depois da sessão, referindo-se aos
sistemas de comércio de emissões em geral. “Mas suspeito que esteja sendo um
pouco idealista.”
Essa
opinião é coerente com os posicionamentos que a Shell e as demais empresas de
petróleo adotaram em relação aos mecanismos de precificação do carbono, que
várias delas enxergam como um veículo para afastar outras restrições (por
exemplo, as regulações) sobre suas operações. Um representante da BP me contou no mês passado que a
principal razão pela qual a empresa gastou 13 milhões de dólares para derrubar
uma taxa sobre carbono no estado de Washington foi que ela “não prevaleceria
sobre outras regulações locais e estaduais sobre o tema”, numa lógica
semelhante à adotada na proposta do Climate Leadership Council [Conselho de
Liderança Climática, uma organização de viés conservador e empresarial] para um
tributo sobre carbono nos EUA.
Não é tão
coerente, porém, com o mais recente relatório do Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que destaca a necessidade de
reduzir 45% das emissões de carbono até 2030, para tentar eliminá-las até a
metade do século. Caso não ocorra um monumental aumento de escala das chamadas
medidas de emissão negativa – uma série de tecnologias quase não testadas e
proibitivamente caras, tais como a captura e o armazenamento de carbono – o uso
de petróleo e de gás (o ganha-pão da Shell) precisará ser reduzido em 87% e
74%, respectivamente.
A fumaça da Shell
Philip
Jakpor, chefe de mídia e campanhas da organização Environmental Rights Action
[Ação pelos Direitos Ambientais] no delta do Rio Níger, já viu de perto os
efeitos dos negócios de petróleo e gás da Shell. A empresa opera cerca de 200 queimadores de gás (os “flares”) na
região, ardendo 24 horas por dia, a despeito de sua presença ali já ter sido
repetidamente declarada ilegal. Jakpor conta que, em razão disso, as
comunidades vizinhas precisam lidar com alergias de pele, problemas
respiratórios e perturbação da agricultura e da pesca. Há anos elas vêm lutando
contra a Shell para acabar com a prática. “A Shell está sufocando essas
comunidades à base de gás”, ele me contou. A empresa agora quer poder vender créditos de carbono para construir a infraestrutura
de contenção.
“A comunidade não quer que eles ganhem dinheiro com
isso, o que a comunidade quer é que eles parem com a queima do gás”,
acrescentou Jakpor. Ele é signatário, juntamente com 366 organizações em 129
países, do documento People’s Demands for Climate Justice [Exigências Populares para a
Justiça Climática], que exige uma eliminação gradativa dos combustíveis fósseis
e rejeita vários dispositivos que a Shell e outras empresas estão pressionando
para incluir no Artigo 6.
‘Não chegaremos a emissões zero’,
diz o executivo.
“Já
dissemos diversas vezes que a solução está nos mecanismos fora de mercado.
Somos contra a mercantilização do meio ambiente. Se permitirmos isso, até o ar
que respiramos será transformado em mercadoria. A saída para isso é acabar com
a extração dos combustíveis fósseis, e não queremos empresas como a Shell e
seus comparsas se infiltrando por toda parte para influenciar a discussão”,
disse ele.
Para a
Shell, isso é pedir demais. “Não chegaremos a emissões zero” até 2070, Hone me
disse. “Não vejo como isso possa acontecer. Talvez zero emissão líquida, mas
não zero emissão E você chega a zero emissão líquida porque há remoções de
grande escala sendo feitas” – por meio da emissão negativa.
“Eles
precisam que nós achemos impossível”, declarou Bragg. “Eles precisam que nós
achemos que precisamos dessas soluções falsas, perigosas e sem comprovação para
sair da crise. Só é impossível se a Shell e as demais estiverem redigindo as
regras por meio das quais vamos tratar da crise climática. Não é impossível se
deixarmos a ciência guiar nossa tomada de decisão, sem permitir que a indústria
dos combustíveis fósseis sequestre a formulação de políticas.”
Tradução: Deborah Leão
https://theintercept.com/2018/12/12/shell-acordo-paris/