Se o golpe não der certo no Congresso, ele vai continuar por outras vias. É melhor apertar o cinto, porque a luta vai ser de longa duração
Flavio Aguiar, de Berlim para site Carta Maior - Sociedade e Política Brasileira (fonte no final do texto)
Está
acontecendo algo parecido com o atual processo de golpe de estado em
curso, disfarçado sob o nome de impeachment da presidenta Dilma.
O
golpe é tão golpe que até um dos mais renitentes interessados nele, o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, defendeu a ideia de que, mesmo
sendo ela inocente de qualquer acusação, deva ser impedida.
Mas dá para discernir um roteiro no golpe, mesmo que ainda confuso e com bifurcações no futuro.
O passado e as bases do golpe
O passado e as bases do golpe
No
começo do século XXI houve foi acontecimentos capitais em matéria de
golpe. O primeiro foi a decisão da Suprema Corte nos Estados Unidos, por
5 x 4, determinando a suspensão do reexame da votação presidencial na
Flórida, suspeita de graves irregularidades e fraude. A vitória, por um
voto, elegeu Bush Filho e derrotou Al Gore.
O
segundo foi a tentativa de golpe na Venezuela. Era para ser um golpe
clássico, com militares tomando o Palácio Miraflores, empossando um
presidente fantoche (Pedro Carmona), e detendo, talvez expulsando o
presidente legítimo e legal, Hugo Chavez. Apesar do apoio deslavado da
mídia golpista e da precipitada comemoração interna e externa, não deu
certo: o povo cercou o Palácio, e militares legalistas trouxeram o
presidente de volta. A frase de um assessor militar de Carmona foi
lapidar: “presidente, estamos no poder ou cercados no palácio?”. O mico
foi tremendo: a capa de Veja e outras revistas no Brasil festejava a
queda do “tirano” enquanto ele estava no Palácio, reconduzido pelo povo e
os militares legalistas.
Estes
acontecimentos marcaram o fim dos golpes militares no continente. Mas
abriram um outro caminho: a via judicial, legalizada. O novo caminho foi
exercido em Honduras e depois no Paraguai, com uma extensão
parlamentar. Tudo “legal”.
No
caso brasileiro, ao longo dos governos petistas formou-se uma crosta de
ressentimento dentro de uma grande parcela da classe média acostumada a
ver direitos como privilégios, e a se identificar com o andar de cima
da sociedade, através de praticas como o subemprego doméstico, a
“reserva” de certas áreas da vida social, desde elevadores nos
condomínios a filas de aeroporto até shopping centers e universidades.
Esta
parcela (que não é toda nem é, necessariamente a maioria) não se
acostuma com a mudança na paisagem social brasileira. Porque houve esta
mudança: não mudou a estrutura, mas mudaram quantidades, e numa
sociedade que continua animada pela ideia de que “pessoas” se
identificam pelo que consomem, tanto quanto pelo que os outros “não
consomem”.
Esta
é a base social que agita as manifestações da direita, aplaude
Bolsonaro e Moro, e mais recentemente vaia Aécio, Marta e Alckmin, além
de afugentar Serra, que ia à manifestação mas não foi.
O presente
A
tese do impeachment anda atrapalhada, mas não morreu. Dela depende a
sobrevida do deputado Cunha, e também acalenta a ilusão, para muitos dos
potencialmente envolvidos, de que com a vitória do golpe a Lava Jato
vai parar. Porém, se uma parte do motor do golpe está no Congresso, uma
parte dele não está. Seus mentores principais de hoje são uma frente de
juízes e promotores, avatares daquela classe média ressentida, que agem
como os coronéis de 1954. Agem como se estivessem acima das leis, da
Constituição, atropelam e negam direitos, forjam as próprias trilhas
(i)legais adotando ares de total impunidade. Grampeiam, expõem, execram,
a seu bel prazer. Com isto insuflam um comportamento - sempre apoiado
pelas manchetes da mídia que nunca deixou de ser avessa a um golpe -
irregular, animado pelo sentimento de impunidade: hordas pequenas ou
grandes agridem pessoas que vestem vermelho, insultam adversários em
restaurantes, oferecem recompensa para quem o faça, uma pediatra recusa
atendimento a uma criança filha de mãe “vermelha”, pregam até a morte
dos indesejáveis. A ideia de combater a corrupção virou mesmo uma
cenoura para os burros que a seguem.
De
momento, no entanto, o golpe se apoia no impeachment ou na forçação de
barra que é o pedido de renúncia da presidenta. E do vice. Resta o
problema do que fazer com o Cunha, que se tornou o peão com vezos de
rainha que ninguém mais quer no tabuleiro, mas que ninguém dos golpistas
sabe o que fazer com ele.
Em suma, a narrativa, ou o enredo, se complicou e azedou. Mas está longe de morta.
O futuro
Para começo de conversa, o futuro tem dois planos.
No primeiro, mais imediato, o impeachment vence na Câmara ou não vence.
1.
Vence. A arrogância vai se multiplicar. Os ataques aos “vermelhos” se
tornarão mais contundentes. Os fascistas vão catapultar a candidatura de
Bolsonaro ou de Moro. Mas atenção: há um problema no meio disto. Uma
parcela do PMDB - e de outros partidos - acha que a vitória do
impeachment, ainda que parcial (tem que passar no Senado e talvez no
crivo do STF), vai suspender a Lava Jato. Se isto acontecer, o
messiânico juiz Moro se desmoraliza do primeiro ao quinto,m como se
dizia no bom tempo. Ele vai concordar com isto? Duvido. Uma alternativa é
de fato fazer dela uma investida apenas anti-PT. Vai ser difícil,
sobretudo depois dos Panama Papers.
2.
Perde. Temer fica com o abacaxi na mão, pendurado no pincel: to be or
not to be. Cunha vai ter que se refugiar em alguma embaixada obscura. Ou
então, o que é mais provável, tentar reabrir o processo com algum
pretexto. Mas os elementos mais exaltados nas sombras podem tentar
medidas mais extremas, talvez até partam para algum terrorismo, mesmo
que de quintal. Mas… a parcela mais institucional do golpe (PSDB, DEM,
etc.) vai para o tudo ou nada no Congresso.
Aí
entra em cena o plano segundo do golpe, cujo buraco é bem mais em cima.
Há uma concertação ensaiada, que busca um giro de 180 graus na política
externa brasileira, com reflexos internos, retornando aos tempos de
alinhamento subserviente aos Estados Unidos. A base desta ideia jaz na
constatando de que a crise internacional derrubou o preço das
commodities, deixou a economia brasileira anêmica, carente de
investimentos externos. Por isto, a leitura otimista deste panorama leva
a crer que a retomada da confiança por parte de certos investidores
internacionais reanimaria a economia e levaria um governo de direita ao
sucesso. O preço a pagar - ou a ganhar, em termos de favores e benesses
aos condutores desta política - é a solapação das bases de avanço social
dos últimos anos, a destruição dos direitos trabalhistas, o fim dos
programas sociais e das políticas afirmativas mais recentes, e a entrega
do pré-sal e da infra-estrutura brasileira a investidores
internacionais - provavelmente com exclusão da China.
Há
muita ilusão nisto. A primeira delas é a de que uma análise deste tipo
possa ter sido engendrada no Brasil. Provavelmente ela foi comprada,
aceita, deglutida, empurrada goela abaixo, algo assim. Isto vem de think
tanks externos.
Uma
outra ilusão - comum também na esquerda - é a de que isto tenha sido
gerido pela Casa Branca, pelo Departamento de Estado ou até pela CIA. Os
Estados Unidos se tornaram muito mais complexos do que isto. Há uma
parafernália de ONGs, tink tanks, agencias privadas que promovem este
tipo de análise, financiam movimentos brasileiros (como o Movimento
Brasil Livre) como financiaram movimentos no Leste Europeu, que têm
acesso - isto sim - a informações classificadas do governo
norte-americano (se Snowden vazou para um lado,imagine o que não vaza
para outros) e que se articulam de modo muito mais sutil e orgânico do
que aqueles pesados Panzers da política tradicional no Big Brother.
Traduzindo:
se o golpe não der certo no Congresso, ele vai continuar por outras
vias. Ou seja: é melhor apertar o cinto, porque a luta, com impeachment
ou sem ele, vai ser de longa duração.
Quem sobreviver, verá.
Créditos da foto: Fernando Frazão / Agência Brasil
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-passado-o-presente-e-o-futuro-do-golpe/4/35870