Estamos
num momento de grande rivalidade entre os EUA e a China e os EUA querem
alinhamentos totais para quem está próximo; e queria o Brasil totalmente
alinhado. O impeachment da presidente Dilma foi parte deste processo. A
condenação do presidente Lula, também
por Sul21 e portal brasil 24/7 - Sociedade e Revelações Sobre o Golpe de 2016
Para o sociólogo e jurista
português Boaventura de Souza Santos, as revelações do site The Intercept
que indicam a interferência do ministro Sérgio Moro, então juiz federal da
Lava-Jato, e o chefe da força-tarefa da operação, procurador Deltan Dallagnol,
nos processos referentes ao caso, dão conta de que Moro “é o contra-exemplo do
que não se deve fazer”.
“Não há
ninguém hoje no sistema judiciário internacional que ponha Moro como exemplo;
ele é o contra-exemplo do que não se deve fazer”, afirmou Boaventura em
entrevista ao Sul21. Para ele, a Lava Jato deve ser vista como “um
caso de laboratório. Um caso de manipulação, destruição, confusão de papéis,
violação de todos os procedimentos legais que mostra que o direito, neste país,
deixou de ser a ordem jurídica para ser a desordem jurídica”.
Confira a
íntegra da entrevista:
Sul21 –
As recentes revelações do site The Intercept, que indicam conluio entre
os procuradores e o juiz da Lava-Jato, mostram também o modus operandi que
o senhor descreveu, em recente artigo, tanto como “manipulação da opinião
pública” quanto “táticas de desinformação”. O senhor também já tinha comentado
que talvez demorasse 50 anos para o Brasil ver de fato o que ocorreu na
Operação Lava-Jato. Acredita que os fatos recentes podem ser o início desse
esclarecimento da opinião pública?
Boaventura: Olhando mais para aquilo que
tem de ser feito, precisamos voltar a credibilizar o sistema judiciário
brasileiro – que passa por uma crise gravíssima. Sobretudo porque o sistema
judiciário é muito heterogêneo. Mas, normalmente, aqueles que têm um perfil
mais elevado e que, a certa altura, protagonizam a voz do Judiciário, se
cometerem algo de errado, isso repercute em toda a classe. E, portanto, neste
momento estou é preocupado com os juízes, os magistrados e os procuradores que
não têm nada a ver com esta vergonha desta manipulação – que é realmente um
estudo, um caso de laboratório. Um caso de manipulação, destruição, confusão de
papéis, violação de todos os procedimentos legais que mostra que o direito,
neste país, deixou de ser a ordem jurídica para ser a desordem jurídica.
Os juízes
e os magistrados que se envolveram nisso criaram uma desordem jurídica de
consequências que, neste momento, não podemos plenamente avaliar. E talvez leve
os tais 50 anos a tentar saber, efetivamente, qual foi o dano que se criou. Eu
e aqueles que têm formação jurídica e sociológica, e que leram as sentenças, há
muito tempo sabíamos que o presidente Lula estava inocente. Portanto, não havia
realmente prova que pudesse condená-lo. Aliás, cometeram-se atropelos de todo
tipo que, mesmo sem essas revelações, já mostrava que se o sistema judiciário
brasileiro estivesse a funcionar normalmente, os tribunais hierarquicamente
superiores haveriam de neutralizar o dano que se estava a criar ao nível de
primeira instância.
O que
aconteceu foi a primeira grande enfermidade, distorção do sistema judiciário:
as instâncias superiores, por pressão dos militares, ou não, passaram a ser
subsidiárias das instâncias inferiores. Passaram, assim, a ratificar
praticamente todos os erros. Isto criou uma desordem extraordinária e
fragmentou o STF – que era uma instituição extremamente credibilizada no Brasil
e hoje está pelas horas da amargura. Ainda é a última esperança, mas é uma
esperança desesperada em função dos acontecimentos que ocorreram nos últimos
tempos.
Sul21 – O
senhor considera que essa situação pode ser uma inflexão do que chamou de
“orgia de opinião” ou dos “fluxos de opinião unânime” contra e a favor, que
correm paralelos nas redes sociais e tendem a intensificar a polarização
política?
Boaventura: É evidente de que há revelações
que são do tipo daquelas de Edward Snowden, senão ainda mais bombásticas. E até
mais numerosas. E estão algumas ainda por revelar. E, ao que sei, as que estão
por revelar ainda vão causar muito mais dano a quem se envolveu em tudo isto.
Obviamente
que eles vão ver se conseguem minimizar o dano por aquilo que fizeram até
agora. E o que fizeram até agora? Foi exatamente através das fake news
que puderam criar os tais “rios de opinião unânime” – mas já comecei a detectar
que a divergência já está no terreno.
Há os que
dizem que tem de defender o Moro, que o que ele fez é normal – e é impossível
de imaginar que alguém pense que é normal um juiz dar ordens ao procurador;
dizer-lhe como ele dever organizar seu manifesto para a imprensa para liquidar
a defesa. Criou-se um sistema em que as pessoas deixaram de dialogar. Criou-se
muito o elemento do amigo versus inimigo. Temos hoje no Whatsapp as duas
tendências: os que dizem que isso é o descalabro e Moro devia renunciar; e os
que dizem que foi nada de mau, que é normal, e nada vai acontecer.
Sul21 –
Quais os riscos que o senhor identifica em relação a uma possível sanha
persecutória contra o jornalista Gleen Greenwald, de The Intercept, com o
uso de rule of law como acontece com Julian Assange – cuja
situação, neste sentido, o senhor já comparou a de Lula? E como o senhor vê,
hoje, o uso do lawfare e a interferência dessa prática nas
nossas últimas eleições, em 2018?
Boaventura: Glenn é um grande jornalista.
Deveria lhe ser concedido, tal como já defendi para Assange, o Prêmio Nobel da
Paz. Tem que se cuidar porque, obviamente, está na mira das milícias e de todos
aqueles que não querem que a verdade seja apurada. Os dados já não estão no
Brasil apenas, os dados estão a salvo. Portanto se matarem o Glenn, não matam
os dados – e teria um custo político muito grande. Podem atacar pessoas
relacionadas com o Gleen. Ele é um homem muito experiente e, desde que tornou
públicos os dados de Snowden, sabe bem como funciona o sistema, portanto também
sabe defender-se. Mas ninguém, obviamente, é isento de qualquer fragilidade que
o possa levar a um erro. Ele está a ter muito cuidado na estratégia de
publicação.
Agora, o
dano principal está feito: revelou-se internacionalmente que tudo foi uma
fraude com todo o apoio dos Estados Unidos, de onde vieram os dados da
Lava-Jato. Todo o apoio foi para que isso tivesse o efeito político de eleger
Bolsonaro. Ninguém mais na direita tinha garantido que o Pré-sal seria
privatizado – que era o grande objetivo dos EUA –, que a Embraer fosse vendida
e que a Previdência fosse privatizada. Os objetivos dos EUA são os objetivos do
capital financeiro internacional e estes só eram satisfeitos por alguém que
mostrasse toda a disponibilidade, como Bolsonaro.
Estamos
num momento de grande rivalidade entre os EUA e a China e os EUA querem
alinhamentos totais para quem está próximo; e queria o Brasil totalmente
alinhado. O impeachment da presidente Dilma foi parte deste processo. A
condenação do presidente Lula, também. Portanto, agora vamos ver se as forças
democráticas deste país finalmente se levantam diante deste enorme atropelo da
justiça que está a fazer da democracia uma ditadura.
Penso que
Moro está apoiado pelos militares e isto talvez seja a sua segurança – já que
não tem prestígio internacional nenhum. Este homem foi duas vezes, em dois
meses, a Portugal vender a delação premiada. Não foi aplaudido como queria e
foi criticado pela nossa ministra da Justiça e pela ex-procuradora-geral.
Portanto, falhou nos seus objetivos internacionais. Não há ninguém hoje no
sistema judiciário internacional que ponha Moro como exemplo; ele é o
contra-exemplo do que não se deve fazer.
https://www.brasil247.com/brasil/boaventura-moro-e-o-contra-exemplo-do-que-nao-se-deve-fazer