“...não há nenhum estudo que mostre que uma esterilização ou uma
laqueadura vai melhorar a saúde da mulher, pelo contrário. Isso é um movimento
quase policialesco, fascista...”
por Rute Pina para Brasil de Fato e Sul 21 – Sociedade e Justiça Brasileira
Cena do Documentário “O
Renascimento do Parto”, que relata casos de violência obstétrica no país / Foto
Sul21
A
laqueadura forçada de Janaína Aparecida Quirino, mulher em situação de rua do
município de Mococa (SP) de apenas 36 anos, foi recebida com indignação entre
profissionais de saúde pública. Ela passou pelo procedimento cirúrgico após um
pedido assinado pelo promotor Frederico Liserre Barruffini. O procedimento foi
feito contra a vontade da Janaína.
Por meio
de uma ação civil pública, Barruffini argumentou que a mulher, mãe de cinco
filhos, apresentava “grave quadro de dependência química, sendo usuária
contumaz de álcool e outras substâncias entorpecentes”.
O
Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) anulou a decisão sobre a esterilização
coercitiva de Janaína no dia 23 de maio. No entanto, ela já havia passado pelo
procedimento três meses antes, no dia 14 de fevereiro, depois de uma decisão
liminar proferida pelo juiz Djalma Moreira Gomes Júnior, da comarca de Mococa.
A laqueadura é irreversível.
Violação
de direitos
A médica
de família Thais Machado Dias, do Coletivo Feminista de Saúde e Sexualidade,
classificou o ato como uma mutilação que abre precedente para eugenia — teoria
de “higienização” por meio do controle da reprodução usada, por exemplo, pelo
regime da Alemanha nazista.
“Fazer
com que as pessoas que não se adequam, as pessoas que não cabem numa dita norma
social, não se reproduzam é um processo eugênico que se repetiu em vários momentos
da história. Se a gente trabalha com laqueadura involuntária para pobres, para
mulheres negras e usuários de substâncias, vamos retroceder anos de história e
de direitos humanos”, criticou a médica.
O caso
veio à tona após a publicação de uma coluna de Oscar Vilhena Vieira na Folha de
S.Paulo no último sábado (9.junho).
“Estamos
diante de uma aberração teratológica inusitada”, lê-se no voto do desembargador
Leonel Costa, do TJSP.
Outros
métodos
Thaís
Machado Dias pesquisou as condutas de pré-natal em mulheres usuárias de
substância psicoativa em seu mestrado pela Universidade Estadual de Campinas.
Ela defende políticas públicas de acesso a métodos contraceptivos para
populações em vulnerabilidade, inclusive à laqueadura, desde que com o total
consentimento da paciente.
Foto da internet
A médica
criticou o procedimento da esterilização permanente com base em uma condição
pessoal transitória, ou seja, o uso de drogas ou a situação de rua.
O pedido
do MP afirma que Janaína aparentou “desejo espontâneo e convicto” em realizar a
cirurgia “como forma de evitar outra gravidez”. No entanto, o Laudo de
Psicologia também apontou manifestações contrárias dela à realização da
cirurgia.
Janaína
não queria a laqueadura e isso é evidenciado no ofício da Assistência Social de
Mococa que indicou “desinteresse em passar pelo procedimento”.
Como ela
não compareceu voluntariamente à consulta ginecológica agendada, a sentença do
juiz intimou a Prefeitura de Mococa a cumprir a liminar, sob pena de multa
diária de até R$ 100 mil. Janaina não foi consultada pessoalmente nem pelo
procurador, nem pelo juiz responsáveis pela ordem de realização da cirurgia.
“A
ambivalência em relação ao planejamento reprodutivo é comum a todas as
mulheres. Quantas de nós temos o desejo de ter filhos, depois a gente fala ‘ah,
seria melhor não ter’, ‘quero ter mais um’, ‘quero ser mãe’ ou ‘não quero ser
mãe’. Eu acho que a ambivalência em relação à maternidade é própria do nosso
momento histórico, inclusive. Antigamente, as mulheres não tinham essa
escolha”, afirmou Dias.
O
Programa De Braços Abertos da Prefeitura de São Paulo, por exemplo, passou a
oferecer o implanon (implante contraceptivo subdérmico) para as mulheres que
frequentavam a chamada Cracolândia, cena pública de uso do crack. A médica de
família reitera que, mesmo os procedimentos reversíveis — como o DIU e
anticoncepcionais injetáveis — devem ser realizados sem nenhuma dúvida por
parte da mulher.
Ato
ilegal
A médica
sanitarista Karina Calife, professora da Faculdade de Medicina da Santa Casa de
São Paulo, ressaltou que nenhum médico pode fazer qualquer procedimento sem a
concordância da paciente, a não ser que em risco de vida e que ela estivesse
sem condições de opinar — o que, para ela, não foi o caso de Janaína.
Ela
lembrou que o procedimento feriu a Lei nº 9.263/96, sobre planejamento
familiar, que reitera que todos os casos de laqueadura devem ser feitos
voluntariamente.
“A lei
interferindo no corpo, na saúde e na decisão das mulheres e ainda dizendo que é
em nome da saúde dessa pessoa, isso não é verdadeiro. Primeiro, porque não há
nenhum estudo que mostre que uma esterilização ou uma laqueadura vai melhorar a
saúde da mulher, pelo contrário. Isso é um movimento quase policialesco,
fascista”, disse.
Calife
comparou o repúdio à laqueadura forçada com a necessidade de descriminalização
do aborto: em ambos os casos, o argumento é a autonomia da mulher e o direito
de decisão sobre seus corpos.
Já Thais
Machado Dias afirmou que o ato arbitrário do Poder Judiciário reforçou a
esterilização compulsória como um mecanismo de controle da pobreza, utilizado
largamente no país até os anos 1990.
“É muito
perverso relacionar a maternidade com a pobreza. A maternidade que empobrece
[economicamente] é a maternidade desamparada, com uma família ou um companheiro
que não ampara, o Estado que não oferece creches. Uma mulher que precisa parar
trabalhar para cuidar de uma criança porque não consegue vaga na creche, essa
mulher que empobrece na maternidade. Mas aí é uma violência patrimonial do
Estado”, afirma.
Dias
afirmou ainda que “não tem cabimento” qualquer pesquisa que relacione direitos
reprodutivos e diminuição da pobreza e criminalidade.
Denúncia
O
deputado federal Wadih Damous (PT-RJ) protocolou neste domingo (10) uma
representação na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão contra o juiz e o
promotor da Comarca de Mococa.
A
Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), em nota, afirmou que
a história de Janaína não é atípica e condenou a atuação “arbitrária e ilegal”
do representante do Ministério Público.
Segundo a
ABJD, o promotor “utilizou-se de um instrumento jurídico previsto para a defesa
de interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos, para submeter uma
mulher à esterilização contra a sua vontade, por motivos eugênicos, enunciados
desde a petição inicial”.
“O quadro
se agrava quando, ao analisar a ação judicial, constata-se que à Janaína,
referida desde a petição inicial como uma pessoa sem condições de
discernimento, possivelmente incapaz, não foi garantido o mínimo direito à
defesa, nem sequer a ser ouvida nos autos. Em suma, foi tratada como um objeto,
uma coisa sobre a qual recaiu a tutela jurisdicional”, afirma a entidade no
texto.
A
associação informou que vai entrar com representações no Conselho Nacional de
Justiça e no Conselho Nacional do Ministério Público para as responsabilidades
neste caso sejam apuradas.
https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2018/06/laqueadura-forcada-retoma-processo-de-higienizacao-contra-negras-e-pobres-diz-medica/