Decisão de Augusto Aras,
Procurador-Geral da República fortalece invasores de terra indígena na floresta
amazônica no Mato Grosso
Parecer do PGR favorece
a revisão ou cancelamento da demarcação do território Kayabi, conquistado em
2013; entre os possíveis beneficiados, o bilionário grupo canadense Brookfield
e grandes desmatadores brasileiros no Mato Grosso, favorecidos por políticos e
funcionários públicos federais
por Caio de Freitas Paes na Agência Pública – Sociedade e Luta Contra Destruição da Floresta
Amazônica
Aras ignorou recomendações contrárias
do próprio Ministério Público, imagem na internet
Uma tragédia assombra os indígenas no Mato
Grosso, em plena floresta amazônica. A pandemia explodiu em todo o estado desde
maio, e o cenário é tão grave que, ironicamente, pela primeira vez em 50 anos
não haverá Kuarup, o ritual em homenagem aos mortos, realizado pelos povos do
Xingu. Mas a Covid-19 não é a única ameaça no horizonte. Uma decisão recente do
procurador-geral da República sinaliza uma tempestade perfeita sobre suas
terras. Em junho/2020, Augusto Aras ignorou recomendações contrárias do próprio
Ministério Público Federal (MPF) e convocou “todos os envolvidos” para discutir
o caso da Terra Indígena (TI) Kayabi.
O estado de
Mato Grosso quer de volta ao menos 80 mil hectares das terras Kayabi, na bacia
do combalido rio Teles Pires, fronteira com o Pará. O governo estadual se
colocou contra a demarcação assim que a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) a
assinou, em abril de 2013. O governo paraense, por outro lado, não a contesta.
A terra indígena Kayabi se espalha por mais de 1 milhão de hectares entre
Apiacás, no extremo norte mato-grossense, e Jacareanga, no Pará.
A cobiça do garimpo ilegal de
ouro é alta no território indígena, foto Larissa Fernandes/Agência Pública
Há muitos
interesses em disputa nessas terras. Para o governo mato-grossense, elas já têm
donos: grandes desmatadores da Amazônia, além do bilionário fundo canadense
Brookfield. Áudios, documentos e relatórios obtidos pela Agência Pública
revelam como os “envolvidos” convocados por Augusto Aras pressionam os indígenas
a ceder os 80 mil hectares.
Até a
Fundação Nacional do Índio (Funai) se vê embrenhada nas denúncias: um de seus
servidores é criticado por apoiar um eventual acordo. As acusações respingam no
ruralista Nilson Leitão (PSDB-MT), quando ainda era presidente da Frente
Parlamentar Agropecuária no Congresso.
Tanto a
Funai quanto o MPF sabem da gravidade do caso. O setor dedicado a questões
indígenas no MPF – a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão – não recomenda acordos
ou reuniões, mas um ajuste de contas com os invasores.
A demarcação do território Kayabi foi
feita em 2013 e o parecer do Procurador-Geral da República, Augusto Aras,
favorece a revisão da delimitação das terras, Foto Isac Nobrega/PR
“O único
acordo que se pode fazer no caso Kayabi é definir quando os intrusos sairão das
terras”, disse à Pública o procurador Antônio Carlos Bigonha, responsável pela
6ª Câmara entre 2018 e junho de 2020. Ele afirmou também que as investidas
contra a área são algo “completamente afrontoso, sobretudo por já ter sido
demarcada” pela Presidência da República.
Segundo
apurou a Agencia Pública, Aras ignorou os avisos e nem sequer consultou
Bigonha, o que causou estranhamento nos que acompanham o caso. A convocatória
foi publicada quando o procurador-geral estava bastante ocupado, trocando todos
os coordenadores temáticos do MP. Suas escolhas geraram polêmicas,
especialmente no caso do procurador Juliano Baiocchi, novo coordenador do setor
de Meio Ambiente no MPF.
Procurada, a
Procuradoria-Geral da República (PGR) disse que “as audiências públicas visam
debater temas como des-intrusão, indenizações e dirimir outros conflitos que
porventura existam”. Informou ainda que o encontro foi adiado pelo ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux, por conta da pandemia.
O
cancelamento, porém, não foi definitivo, como querem os indígenas. Não faltam
motivos para estarem ressabiados com qualquer tipo de acordo.
Fundo canadense reclama 75 mil hectares
das terras e governo do Mato Grosso apoia
Tanto
fazendeiros quanto a prefeitura propõem a diminuição de todas as terras
indígenas em Apiacás há mais de 20 anos. As intrusões ali impressionam: é uma
área equivalente a três vezes o município do Rio de Janeiro, só sobre
territórios do tipo, segundo o Serviço Florestal Brasileiro.
Durante esse
mesmo período, a Agropecuária Vale do Ximari Ltda. luta incessantemente na
Justiça para garantir suas posses. Ela alega ser dona das glebas Estância
Jardim, Raposo Tavares I e II e Santa Rosa: são aproximadamente 75 mil hectares
de floresta amazônica embrenhados nas terras Kayabi. Essa área insere um player
de peso na história, o fundo canadense Brookfield.
Sede
da empresa canadense Brookfield
Originalmente
criado por estrangeiros no Brasil, ele ajudou a fundar a companhia de energia
Light, do Rio de Janeiro, no início do século passado. Hoje, o grupo é
controlado por uma teia de empresas registradas em paraísos fiscais, como no
estado de Delaware, nos Estados Unidos, e nas Ilhas Cayman. A Agropecuária Vale
do Ximari Ltda. é listada como uma de suas várias “sociedades sob controle
comum”.
Discretamente,
os canadenses são donos de ao menos 269 mil hectares no país, com fazendas no
Maranhão, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, entre outros, e mais de US$ 26
bilhões em investimentos. Aplicam em vários segmentos, como na produção de
soja, em usinas de cana-de-açúcar e na pecuária – só em 2015, o Brookfield tinha
um rebanho de mais de 40 mil cabeças de gado.
A Receita
Federal confirma a relação entre os canadenses e a Agropecuária Vale do Ximari
Ltda. O Ministério da Economia lista Esteban Fornasar, Luís Fernando Della
Togna e Renato Cassim Cavalini como seus administradores, e o fundo Brookfield
como único sócio.
O processo
de reintegração de posse está empacado há anos na 3ª Vara da Justiça Federal em
Cuiabá, com decisões favoráveis aos Kayabi. Para a Funai e a União, a fazenda
do Brookfield em Apiacás pertence aos indígenas, que a retomaram após uma
invasão.
O governo
mato-grossense dá tanta razão aos estrangeiros que tomou parte nessa ação. Foi
em 2009 que o estado pediu para entrar no processo, anos antes da demarcação. A
Justiça autorizou, e o governo tornou-se um assistente do bilionário fundo na
disputa. O governador era Blairo Maggi (Progressistas), ex-ministro da
Agricultura e um dos homens mais poderosos do agronegócio no Brasil.
À Pública, a
Brookfield alega ser “a única legítima proprietária e possuidora do imóvel” e
diz que luta contra “invasões ilegítimas de indígenas desde 2007”. O grupo
canadense garante que não desistirá das terras.
Como muitos
de seus parentes na Amazônia, os Apiaká, Kayabi e Munduruku carregam memórias
dolorosas de um passado recente. Nos anos 1960, boa parte foi expulsa da
região, onde viviam cercados por cachoeiras, corredeiras e ilhas, à beira do
atual Parque Nacional do Juruena.
Militares os
sequestraram durante os anos de chumbo, confinando-os no Parque Indígena do
Xingu. O método foi repetido à exaustão no Mato Grosso, como na área da Terra
Indígena Marãiwatsédé, dos Xavante.
A vida foi
uma luta árdua para os que ficaram. Os Kayabi mais velhos não se esquecem do
tempo em que viviam escondidos sob as copas de árvores, como castanheiras e
copaibeiras, com medo de que também fossem vistos e raptados. São os anciões
quem mais resistem às investidas atuais sobre suas terras, já sufocadas por
hidrelétricas na região.
Funcionário da Funai diz: “Vocês vão
passar a vida inteira dependendo dos outros”
A defesa dos
territórios indígenas é um dos pilares da Funai. Mas nesse caso um de seus
funcionários é acusado de fazer o exato oposto.
Servidor
desde os anos 1980, Francisco das Chagas Lopes Rocha trabalhou junto às
comunidades, entre 2014 e abril de 2020. Foi logo após, em maio, que ele saiu
do anonimato, quando nomeado para uma das chefias da Frente de Proteção Etno-ambiental
Madeirinha-Juruena.
Lopes Rocha
recusou o cargo três dias após a indicação, depois que sua atuação junto aos
Kayabi veio à tona. Ele dizia aos indígenas que só teriam paz quando
negociassem a porção mato-grossense de suas terras.
“Em volta,
todo mundo cria gado, planta soja, planta milho, planta algodão”, afirmou a
lideranças, antes de avisá-las de que tinham “um problema muito grande nas
mãos”. “Vejo que vocês, aí do Kayabi, continuam nessa situação, calados.
Esperando o quê, gente?”, diz Lopes Rocha, em material obtido pela Pública.
Em 2016 a
Funai alertava sobre “conflitos sociais e fundiários com os não índios ainda
instalados” na terra indígena Kayabi, tida como “muito sensível”. “A incerteza
aumenta a tensão e abre espaço para a violência, com risco inclusive para os
servidores que atuam no local”, diz o MPF.
A atuação de
Lopes Rocha rendeu queixas, afastamento temporário de 60 dias e um inquérito da
Polícia Federal (PF), hoje arquivado.
As denúncias
sugerem que ele “[fez] com que lideranças jovens acreditem que podem negociar a
área com fazendeiros” em troca de benfeitorias, como uma Casa de Apoio à Saúde
Indígena e a ampliação da rede de energia elétrica. “Vocês nunca vão ter
liberdade para fazerem o que quiserem, quando quiserem, a hora que quiserem.
Vocês vão passar a vida inteira dependendo dos outros”, diz Lopes Rocha.
Em
depoimento à PF, ele defendeu um acordo “entre Estado de Mato Grosso e União,
com a participação dos indígenas” e disse que decisões do ministro Luiz Fux
sobre as terras Kayabi provavam que ele “está certo”.
Há outras
acusações, ainda mais graves. Há denúncia de manipulação de crianças nas
aldeias, pagando-lhes R$ 60 para que colhessem assinaturas sem lhes explicarem
nada.
O material
endossaria uma carta favorável à diminuição da terra indígena, “afirmando que a
comunidade deseja oferecer uma proposta pelas terras objeto de conflito (80 mil
hectares ocupados por fazendeiros)”, segundo a PGR.
A
Procuradoria da República pediu o arquivamento do inquérito em dia 13/maio2020.
Ela alega que “não há elementos que comprovem que ele [Lopes Rocha] esteja
patrocinando interesse privado”, ou seja, intercedendo em favor dos
fazendeiros.
À Pública, a
defesa do servidor alega que desconhece as denúncias e que, “somente após
conhecer formalmente tais acusações, tais perguntas poderão ser devidamente
respondidas”. Lopes Rocha disse ainda que “reitera seu total compromisso com a
defesa intransigente dos direitos dos povos indígenas”. O servidor permanece no
Mato Grosso, lotado na coordenação da Funai em Cuiabá (MT).
A política nos bastidores dos órgãos públicos
e políticos
Durante
conversas com os Kayabi, Lopes Rocha trazia um político à história. Segundo
ele, jovens líderes lhe pediam que intercedesse junto ao ex-deputado Nilson
Leitão (PSDB). Queriam conversar sobre suas terras com ninguém menos que o
então presidente da bancada ruralista no Congresso.
“Se ele
[Nilson Leitão] é inimigo, então todo mundo é inimigo: o prefeito, os
proprietários, os moradores da cidade, todo mundo pensa diferente do índio”,
dizia. “Se eles quiserem fazer, vamos procurar fazer tudo dentro da lei”,
também afirma o servidor, antes de garantir que, pela Funai, “já pediram agenda
e estão aguardando a confirmação da data” com o ruralista, diz o trecho de um
áudio obtido pela reportagem.
Leitão é um
entusiasta de acordos como esse, vantajosos aos fazendeiros. Em abril, o
ruralista saudou o presidente da Funai, Marcelo Xavier, por permitir a
certificação de fazendas em áreas sob demarcação. Só no Mato Grosso, a medida
pode abocanhar mais de 480 mil hectares de terras indígenas, contando somente
os latifúndios que as invadem.
Leitão e
Xavier falam a mesma língua no tema. Talvez seja por conta de seu trabalho
conjunto na CPI da Funai e do Incra, em 2017. O líder ruralista relatou as
atividades, enquanto Xavier era um dos assessores na comissão. O relatório
final criminalizou 67 indígenas, antropólogos, procuradores da República e
defensores dos povos originários, incluindo desafetos de ambos no Mato Grosso.
Enquanto
isso, o governo lidera uma ofensiva contra áreas indígenas no estado. O atual
governador, Mauro Mendes (DEM), patrocina uma lei que certifica fazendas em
todas as terras, em vias de aprovação pelos deputados estaduais. O projeto foi
lançado dias depois da nova diretriz da Funai, celebrada por Nilson Leitão.
Mauro
Mendes Ferreira é o atual governador do Mato Grosso, Geraldo Magela/Agência Senado
Procurado
pela Pública, o ruralista não comentou o caso dos Kayabi nem sua relação com
Lopes Rocha, dizendo apenas que recebeu “diversas lideranças indígenas durante
os trabalhos da CPI”. Já o servidor disse que “conheceu o ex-deputado em 2017,
durante uma audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, em Brasília”,
mas que não é próximo dele.
Desmatadores e latifundiários à
espreita da anulação da demarcação das terras indígenas
Para o
governo estadual, as terras Kayabi têm vários donos. Em sua maioria são
empresários do Sudeste, do Sul e outros fazendeiros que esperam por um acordo,
longe dos holofotes. Grande parte deles se apossou da área enquanto indígenas
eram expulsos pelos militares, há mais de 50 anos.
Latifundiários
como Jeremias e Moisés Prado dos Santos se estabeleceram nesse ponto da
Amazônia ao longo do tempo. Eles partilham o registro de duas fazendas, Matão e
Paredão, que, juntas, invadem mais de 13 mil hectares do território Kayabi. É
mais de um terço do total invadido, segundo dados do governo mato-grossense.
Outro
intruso é Jair Roberto Simonato, dono das fazendas Olho d’Água e Santa Laura
Xibanti. Somadas, invadem outros 8,8 mil hectares. Ele é um conhecido
pecuarista na região, tido como um dos maiores desmatadores da Amazônia desde
os anos 2000.
Em 2006, a
PF acusou Jair, Jeremias e Moisés de grilar as terras dos indígenas. Para o
Ibama, eles também são responsáveis por desmatar ilegalmente a área durante
anos.
Simonato foi
punido em mais de R$ 20 milhões, enquanto Jeremias e Moisés somam mais de R$
16,5 milhões em crimes contra a flora. Considerando apenas as fazendas
autodeclaradas dentro da terra indígena, há ao menos R$ 48,5 milhões em multas
por desmatamento ilegal – os três ostentam as maiores delas. Os dados do Ibama
foram organizados pelo observatório De Olho nos Ruralistas.
Garimpos geram milhões em valores e
mortes de índios
Garimpeiros
se aproveitam das diferenças entre as etnias para costurar acordos ilegais,
levando o que podem. A cobiça é alta graças às reservas de ouro dentro do
território indígena. A Funai e o Ministério Público sabem dessa verdadeira
ofensiva há anos.
“Desde
agosto de 2016 a Funai vem alertando sobre a existência de queixas dos índios”,
diz o MPF, que ainda descreve um preocupante aumento de atividades proibidas na
região, com “balsas de mineração no rio São Benedito”.
Em 2012, uma
desastrosa operação da PF revelou um esquema que movimentava milhões em
extração ilegal de ouro na região. O ouro era retirado, “lavado” e vendido a um
grupo de investidores em São Paulo. Segundo a PF, “uma das empresas movimentou
mais de R$ 150 milhões” só durante a investigação.
Um dos alvos
foi Cacildo Jacoby, presidente da Cooperativa de Garimpeiros da Amazônia
(Coogam). Ele acabou denunciado por formação de quadrilha, usurpação dos bens
da União, poluição e extração de bens minerais sem autorização do órgão
competente. Esta cooperativa mantém três pedidos à Agência Nacional de
Mineração para garimpar na terra indígena Kayabi, abertos em 2008 e 2012.
Mas a
investigação sobre os garimpos terminou em tragédia. A Operação Eldorado deixou
como saldo acusações de tortura, dezenas de baleados e machucados, crianças
desaparecidas, barcos e outros bens destruídos.
No dia
seguinte à operação, Adenilson Kirixi Munduruku foi encontrado boiando no rio
Teles Pires, com três tiros nas pernas e um mortal, na cabeça. Para o MPF, o
delegado federal Antônio Carlos Moriel Sanchez o executou, à queima-roupa.
A Justiça
Federal de Itaituba (PA) o absolveu, mas o MPF recorre. Em fevereiro passado
ocorreram turbulentas audiências sobre o caso, ainda sem decisão definitiva
como relatado pelo portal Amazônia Real.
Fonte: https://apublica.org/2020/07/decisao-de-augusto-aras-fortalece-invasores-de-terra-indigena-no-mato-grosso/