Por Jonathan Watts e Bruce Douglas para revista Carta Capital - Sociedade e Olimpiadas no Brasil (fonte no final do texto)
O período que antecede qualquer Olimpíada é marcado por ansiedade e controvérsia, mas o Rio de Janeiro possivelmente superou todas as outras cidades nesse quesito. Contra um pano de fundo de recessão econômica, o impeachment da presidente Dilma Rousseff, uma epidemia de zika, a criminalidade renovada e a poluição da água, as autoridades municipais não apenas têm
de responder às acusações de corrupção, incompetência e prioridades
desequilibradas, como também fazer um esforço para justificar se valeu a
pena sediar os Jogos, para começar.
Nesse combate polêmico, o
establishment – o governo municipal
do Rio e o Comitê Olímpico Internacional – afirmam que o evento estimula
o desenvolvimento econômico e ressalta o perfil global da cidade
anfitriã. Contestando isso, uma série de ativistas sociais, críticos acadêmicos, adversários políticos, moradores desalojados e ativistas ambientais afirmam que a
Olimpíada é perturbadora e destrutiva, com tendência a beneficiar uma elite rica.
Além de todas as manchetes críticas, porém, será possível avaliar
exatamente como esta cidade de mais de 6 milhões de habitantes foi
impactada de fato – no bom e no mau sentido – pela escolha para sediar a
Olimpíada, em 2009? Para avaliar isto em longo prazo, é necessário ir
além do furor da mídia e concentrar-se no provável legado para os
moradores do Rio.
Uma das questões mais polêmicas há anos, evidentemente, é a do
deslocamento de moradores. Quantos exatamente foram desalojados pelos
projetos de construção em todo o Rio para a Olimpíada, sem falar na Copa
do Mundo de Futebol em 2014?
Para onde eles foram levados, com que compensação, e quem está se
beneficiando das propriedades (geralmente muito centrais) que eles
deixaram para trás?
Os números são contestados. A cidade os situa em centenas. No outro
extremo há uma estimativa de que o Rio deslocou 22,1 mil famílias (com
3,5 pessoas cada uma em média) em 2015, 20,2 mil famílias em 2014, 19,2
mil famílias em 2013 e mais de 10 mil antes delas. Esse é o cálculo dos
críticos Lena Azevedo e Lucas Faulhaber em seu livro
Remoções no Rio Olímpico.
- Remoções marcaram os preparativos dos Jogos (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil)
Com base nesses números, eles dizem que o atual prefeito da cidade,
Eduardo Paes,
superou em muito os dois governantes anteriores que fizeram grandes
remoções de pessoas, Carlos Lacerda (1961-1965), com 30 mil relocações, e
Pereira Passos (1902-1906), que desalojou 20 mil pessoas. Paes diz que
esses números são extremamente exagerados por seus adversários políticos.
Depois há a questão da alocação de recursos, que mais uma vez provoca discussões. "Sem dúvida os principais
beneficiários dos investimentos relacionados à Olimpíada foram as
construtoras, companhias imobiliárias, firmas de segurança privada e
indústrias relacionadas à gentrificação e paisagens dependentes de
carros", comenta Chris Gaffney, um pesquisador na Universidade de
Zurique e um importante crítico dos Jogos do Rio.
Besteira, diz Paes, segundo o qual as acusações de que a Olimpíada
favorece a rica zona sul da cidade são simplesmente erradas. "Nunca
houve tanta transformação para os pobres", afirma o prefeito. "Setenta e
cinco por cento do meu investimento são nas zonas norte e oeste da
cidade. É de lá que vêm meus votos."
Apesar de ele ter-se associado a empreiteiras e firmas de construção,
Paes diz que isso foi feito de maneira transparente e beneficiou os
contribuintes, porque empresários financiaram 58% dos projetos ligados
aos Jogos – o que significa que há menos pressão para os cofres públicos
do que ocorreu nos preparativos para a Copa do Mundo.
Mas as áreas mais pobres estão realmente recebendo os benefícios da Olimpíada de maneira equitativa? O
Guardian visitou os cinco maiores núcleos do evento para descobrir.
Barra da Tijuca e zona oeste
Apesar da natureza inflada e extensa da Olimpíada moderna, os Jogos do Rio têm
um evidente coração geográfico no distrito da Barra da
Tijuca/Jacarepaguá, na zona oeste da cidade. Menos claro é se esse local
– onde ficam a Vila Olímpica, o Parque Olímpico e o campo de golfe
olímpico – foi escolhido para bombear benefícios econômicos por toda a
cidade, ou principalmente para a elite abastada.
Nenhuma área sofreu uma transformação tão drástica. A Barra – que há
40 anos era constituída basicamente por pântanos e plantações – é há
muito tempo a região de desenvolvimento mais rápido do Rio, na corrida
para uma visão digna de Miami, com amplas rodovias, megashopping-centers
e condomínios fechados.
A Olimpíada sobrecarregou essa tendência, graças a um influxo de
dinheiro público e privado para construir estádios, estradas, usinas de
tratamento de água, redes elétricas de alta tensão e um ramal do metrô.
Carlos Carvalho, um dos três maiores proprietários de terrenos na
área e um grande investidor em vários projetos olímpicos, acredita que o
crescimento da Barra foi acelerado em 30 anos: "A parte mais difícil do
plano de desenvolvimento era a infraestrutura de serviços, e a
Olimpíada trouxe isso. É um salto de bilhões de dólares", disse ele ao
Guardian no ano passado.
- O parque olímpico, na Barra (Foto: Renato Sette Câmara / Prefeitura do Rio)
De forma mais polêmica, Carvalho afirmou que seu objetivo maior era
mudar o centro do Rio para a Barra, mesmo que isso significasse expulsar
as comunidades mais pobres para a periferia, para que uma elite "nobre"
tivesse precedência.
Mais tarde ele foi incentivado a não falar com a mídia – supostamente
a conselho de Paes, que iniciou sua carreira política na Barra e
recebeu doações de Carvalho e outros para sua campanha à reeleição.
Pouco depois de ganhar a disputa, o prefeito aprovou um polêmico
projeto de campo de golfe e alterou os códigos de construção para
permitir que os empreiteiros erguessem torres mais altas nessa região
costeira. Enquanto a comunidade empresarial espera que as oportunidades
econômicas melhorem, cientistas sociais e os moradores expulsos são
críticos.
"Nossa comunidade se perdeu. Estamos morando em contêineres enquanto
se constroem novas casas", diz Maria da Penha, um importante membro da
resistência à relocação na
comunidade Vila Autódromo até que sua casa foi demolida.
"A Olimpíada é realmente ruim – isto não é legado", continua ela. "A
Vila Autódromo
se tornou uma comunidade totalmente nova: se você vier aqui de novo,
não vai reconhecer nada. A história da Vila Autódromo ficará em nossa
memória, e estamos tentando preservar sua história, mas não restou nada.
Nem uma loja, nada. É tudo novo."
Para os críticos, esse é um dos muitos indícios de que as prioridades
da cidade se inclinam para os ricos. "A Barra há muito era considerada
um 'mundo à parte' para as classes médias-altas emergentes do Rio, e
houve até uma tentativa de separação nos anos 1980", diz Gaffney.
"Enquanto o resto da cidade vê bilhões de verbas públicas despejadas
em subsídios a estradas, shopping-centers e espaços para a elite
privilegiada, haverá inevitavelmente consequências negativas conforme os
custos das oportunidades aumentarem com o tempo."
A
possível conivência entre autoridades e empreiteiros
também está sendo investigada. Dois dos maiores parceiros nos
desenvolvimentos do Parque Olímpico – as construtoras Odebrecht e
Andrade Gutierrez – estão envolvidas, separadamente, no maior escândalo
de corrupção da história do Brasil: o inquérito da Lava Jato, sobre
acusações de desvios na companhia de petróleo Petrobras. Os promotores
estão examinando se erros semelhantes ocorreram nos contratos da
Olimpíada.
O advogado Jean Carlos Novaes afirma que os documentos da Lava Jato
revelam falcatruas na licitação dos contratos para obras da Olimpíada,
mas admite que a corrupção não é novidade – e diz que ela simplesmente
foi acelerada em consequência do megaevento. O prefeito refuta essas
acusações. A Olimpíada, segundo ele, provará que nem todos os projetos
no Brasil envolvem corrupção.
- Março de 2015: de dentro
de uma casa parcialmentedemolida na
- Vila Autódromo se via o erguimento
dos novos empreendimentos(Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil)
Na comunidade empresarial, as pessoas estão positivas. Laudimiro
Cavalcanti, diretor da Câmara de Comércio do Rio de Janeiro, acredita
que é natural que a cidade use a Barra como um dínamo para investimentos
e desenvolvimento. Até agora, diz ele, o grande problema da região era a
mobilidade urbana, o que está sendo solucionado pela construção de vias
e da extensão do metrô.
"Isto terá um grande impacto no bairro. Vai aumentar o valor das
propriedades, ajudar os shopping-centers e trazer crescimento ao mercado
imobiliário ", prevê Cavalcanti. "A Barra é a região que mais será
beneficiada. Haverá um aumento do turismo na área. E será bom para o Rio
como um todo, porque a cidade estará no centro das atenções do mundo."
Área do porto e centro antigo
Possivelmente nenhuma área do Rio de Janeiro sofreu transformação
mais radical nos anos desde que a cidade ganhou o direito de sediar os
Jogos Olímpicos do que a área portuária – embora esse desenvolvimento
seja menos uma parte integral dos Jogos em si do que uma vitrine para
potenciais investidores.
Antes dominada pela Perimetral, uma pista elevada monstruosa que foi
finalmente demolida em 2014, esta área histórica até agora ganhou um
extenso bulevar para pedestres que serve como ponto de desembarque para
passageiros de navios de cruzeiro, uma série de museus notáveis e o
sistema de trem leve VLT. Ao custo de R$ 1,15 bilhão, seus
17 quilômetros de trilhos eventualmente ligarão à estação rodoviária
intermunicipal, ao terminal de ferry, ao metrô e ao aeroporto doméstico.
- Inauguração do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) Carioca (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil)
O custo total do Meu Porto Maravilha, como é conhecido esse esquema
de parceria público-privada, foi estimado em R$ 8 bilhões em junho de
2011 por Alberto Silva, diretor da companhia de desenvolvimento criada
pela Prefeitura para administrar o projeto. Já foram gastos R$ 5 bilhões
em quatro anos desse plano gigantesco que deverá durar 15 anos.
Ao todo, o projeto cobre sete bairros. Mercedes Guimarães, 60 anos,
que vive no bairro da Gamboa desde meados dos anos 1960, diz que uma
combinação de negligência oficial e leis destinadas a preservar as
fachadas de edifícios históricos resultou em décadas de descuido. "Às
vezes ouço pessoas que não moram aqui se queixarem das mudanças", diz
ela. "Poderia ser melhor, mas para quem nunca teve nada antes acho que
está excelente."
O projeto Porto Maravilha cobre uma área total de 5 milhões de metros
quadrados e inclui as docas da cidade, seu antigo mercado de escravos,
sua primeira favela, os armazéns das escolas de samba e a Praça Mauá,
que hoje abriga o Museu do Amanhã, projetado por Santiago Calatrava
(descrito como um cruzamento de dinossauro movido a energia solar com um
aparelho de ar-condicionado gigante).
Um dos projetos mais polêmicos foi a construção de um teleférico na
favela do Morro da Providência, ao custo de R$ 75 milhões.
Originalmente, os planos previam a remoção de aproximadamente
um terço dos cerca de 5.000 moradores do bairro, mas depois que estes
lutaram o número foi reduzido e cerca de 140 residências foram afinal
destruídas, segundo a Anistia Internacional.
"O saneamento básico teria sido mais útil", diz Cosme Felippsen, um
morador e guia turístico. "Mas não houve diálogo, e o governo fez o que
quis." Ainda sem candidatos à concessão de sua operação, os moradores
temem que o teleférico pare de funcionar depois dos Jogos.
Para Pedro Moreira, presidente da filial no Rio da Associação Brasileira de Arquitetos, a principal preocupação sobre a área do porto é se a cidade fez o suficiente para atrair novos moradores.
- O teleférico chegou ao Morro da Providência; o saneamento básico ainda não atende toda a
- comunidade (Foto: Bruno Itan / Goverj)
"Estamos preocupados com a falta de moradias. No momento, muitas
empresas e hotéis estão chegando, mas é preciso mais moradores para que o
bairro pareça vivo", diz ele. Cerca de 30 mil pessoas moram na região
portuária hoje, mas o empreendimento espera trazer mais 70 mil nos
próximos dez anos.
Isabel Dias, que recentemente comprou uma casa na Providência com a
intenção de transformá-la em um empreendimento social, diz que tantos
grandes investidores corporativos – incluindo um certo Donald Trump –
estão envolvidos no projeto que ela acredita que a área atrairá novos
moradores. "Minha preocupação é que os moradores locais não saiam
perdendo", diz. "Eles não estão realmente sendo incluídos no momento."
BD
Baía de Guanabara
Uma
limpeza da baía de Guanabara,
que receberá três das cinco provas olímpicas de vela, foi a mais
ambiciosa das promessas feitas pelo Rio quando se candidatou a hospedar
os Jogos em 2009. Mas nos anos que se passaram a maior esperança se
revelou a maior decepção.
Esse vasto corpo hídrico deu à cidade seu nome (os primeiros exploradores portugueses que aqui chegaram a confundiram
com o estuário de um grande rio, daí o nome), mas o ambiente de
cartão-postal nunca foi exatamente o que parece. Mais recentemente, a
incrível beleza da baía – que faz fundo para as vistas mais
espetaculares da cidade – descombina com um odor frequentemente
desolador de dejetos humanos e outras formas de poluição.
Isto vem em parte da indústria petroquímica, que é um dos pilares da
economia do Rio. Mas a causa principal, particularmente perto das raias
de vela, é o esgoto que flui para a baía das comunidades próximas,
muitas das quais surgiram durante períodos de crescimento urbano
desregulamentado.
Segundo o governo estadual (responsável pela qualidade da água da
baía), houve melhoras. Desde 2009, a companhia de água estadual (Cedae)
afirma ter gasto mais de R$ 2,16 bilhões para triplicar o tratamento de
esgotos na baía. Entre as melhoras mais recentes está uma limpeza da
Marina da Glória, com um novo sistema de esgoto para tratar a lama
malcheirosa que costumava correr para o porto.
- Ecobarreira instalada no
Rio Meriti é usada para evitar que o lixo flutuante chegue
- à Baía de
Guanabara (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil)
Apesar disso, somente 49% do esgoto que flui para a baía de Guanabara
é tratado. Em seu documento de proposta, os organizadores da Olimpíada
prometeram mais de 80%. Especificamente, eles disseram que
construiriam duas grandes unidades de tratamento de rios: uma no rio
Irajá, que trataria 11% dos dejetos, e outra no rio Pavuna, que lidaria
com 22%.
Houve licitações e licenças ambientais foram emitidas, mas o governo
estadual não compareceu com as verbas. Irajá foi construída, mas ainda
não começou a operar; Pavuna nem sequer foi iniciada.
"A baía de Guanabara continua sendo uma latrina", diz o ambientalista
Mario Moscatelli, que faz viagens de helicóptero de monitoração na
região todos os meses. "É como se eles tivessem prometido uma Porsche
V16 e estão nos dando um Volkswagen 1200."
As consequências são embaraçosas para a cidade e uma preocupação para
os participantes da Olimpíada. O mau cheiro da baía, que piora perto
dos grandes centros populacionais, agride com frequência as narinas dos
visitantes no trajeto da Aeroporto Internacional do Galeão até o centro
da cidade.
De maior impacto sobre a competição, os velejadores em eventos de teste se queixaram de que além do cheiro eles têm
de enfrentar detritos – que incluem móveis, sacos plásticos e peixes
mortos – que poderiam impedir a navegação. Redes, barreiras e barcos
pesca-lixo provavelmente darão uma solução provisória.
Mais alarmante e difícil de superar, entretanto, são os riscos para a saúde. Vários estudos recentes indicaram níveis perigosos de vírus, coliformes fecais e até superbactérias na água.
A tecnologia para resolver esses problemas existe, mas o orçamento e a
vontade política parecem faltar. David Zee, professor de oceanografia
na Universidade Estadual de Rio de Janeiro, diz que o mesmo padrão ficou
evidente em outros locais que deveriam ter sido melhorados a tempo para
os Jogos.
"O legado que foi mais esquecido – apesar de ser o mais comentado –
foi o ambiental", diz Zee. "No que se refere às vias hídricas – baía de
Guanabara, lagoa Rodrigo de Freitas, complexo lagunar de Jacarepaguá –, o
governo do Estado não fez nada. É seu
modus operandi: muita falação e nenhuma ação."
Isso já acontecia antes da atual crise econômica. O Brasil sofre hoje
sua mais profunda recessão em décadas, e o Rio foi especialmente
atingido, fazendo a perspectiva de uma limpeza parecer mais distante que
nunca. Mas as imagens de TV provavelmente ainda serão maravilhosas –
desde que os espectadores não olhem muito de perto e não chova, o que
sempre aumenta os fluxos de lixo.
A zona sul
Na superfície, houve poucas mudanças na rica zona sul do Rio, onde
ficam não apenas as famosas praias de Copacabana e Ipanema, mas também a
Rocinha, descrita como a maior favela da América Latina.
Com a área altamente urbanizada e apenas alguns eventos olímpicos
programados para cá (vôlei de praia, remo e maratona aquática), a
maioria das mudanças tem ocorrido fora de vista. Mas não incluem o que o
governo estadual do Rio chama de "maior legado no transporte" dos Jogos
Olímpicos.
Uma ampliação do sistema de metrô atual com duas linhas foi inaugurada há alguns dias, para levar as pessoas que já têm
ingressos de Ipanema à Barra da Tijuca. A extensão, que custou R$ 9,7
bilhões, será aberta ao público em setembro e deverá transportar mais de
300 mil pessoas por dia. Os críticos, porém, afirmam que ela
beneficiará principalmente a área rica da cidade.
- O presidente interino,
Michel Temer, na inauguração da linha 4 do Metrô do Rio:
- obras
consumiram mais de R$ 9 bilhões (Foto: Beto Barata / PR)
Uma das maiores interrogações sobre a proposta da Olimpíada no Rio
foi a segurança. Na época em que a cidade conseguiu os Jogos, em 2009, o
crime violento tinha diminuído de modo significativo em relação aos níveis de meados dos anos 1990 – mas em qualquer comparação internacional o Rio ainda era uma cidade perigosa.
As autoridades prometeram montar
"Unidades de Polícia Pacificadora" (UPPs)
em 40 das mil favelas do Rio até os Jogos, instalando uma presença
policial pela primeira vez em comunidades antes controladas por gangues.
Desde que a primeira UPP foi criada em Santa Marta, uma favela da zona
sul, 38 comunidades foram "pacificadas".
Apesar de sucessos iniciais no policiamento comunitário,
muitos moradores de favelas ficaram desiludidos depois de anos de
táticas agressivas dos policiais das UPPs. "A polícia ainda é uma
organização militar violenta", diz Gabriel Siqueira, 27, da Federação de
Associações de Favelas do Rio de Janeiro.
"
Ela não tem a capacidade de implementar uma política como a pacificação."
Outros criticam o fracasso do governo local em entregar serviços
prometidos, como água encanada, eletricidade segura e coleta de esgotos,
no rastro da iniciativa policial.
Os moradores da alta classe média da zona sul, supostamente
beneficiários da redução da criminalidade nas favelas vizinhas, afirmam
ter notado pouca diferença ao longo dos anos. "Nada mudou", diz Eduardo
Barbosa, 29, que sempre morou em Ipanema. "Você ainda ouve o grito 'Pega
ladrão!' nas ruas regularmente."
Estatisticamente, porém, houve uma queda significativa nos crimes
violentos desde o início do programa de UPPs, embora nos últimos meses
alguns ganhos tenham começado a se inverter. Muitos cariocas questionam
se a pacificação vai durar depois da Olimpíada, diante do enorme custo,
das finanças abaladas do Estado e da diminuição do apoio público.
Para Robert Muggah, diretor de pesquisa do Instituto Igarapé, o
desaparecimento em 2013 de Amarildo de Souza, um pedreiro da favela da
Rocinha que foi torturado e assassinado por policiais da UPP local,
marcou um ponto de inflexão no programa. "O apoio à polícia está
caindo", diz ele. "As pessoas perderam a fé."
Ao redor da pitoresca lagoa Rodrigo de Freitas, a segurança nunca foi
tão boa, segundo Ildo de Souza, que ganha a vida alugando pedalinhos
lá. Mas ele não acredita que isso vá durar. "Depois da Olimpíada tudo
vai mudar", diz. "Os bandidos vão voltar com força."
Deodoro e zona norte
Poucos projetos olímpicos provocaram tanto entusiasmo entre os
moradores quanto o Parque Madureira, um parque de 92 mil metros
quadrados inaugurado em 2012.
Os enormes anéis olímpicos metálicos que adornavam a Tiny Bridge em
Newcastle (Reino Unido) hoje estão no meio deste parque, juntamente com
outras atrações como um palco de samba, uma praia artificial e uma pista
de skate.
Antes quase não havia espaços verdes na árida, extensa e
relativamente pobre zona norte do Rio. "Para mim foi a melhor coisa",
diz Greice Lopes, 36 anos, dois filhos. "Antes não tinha lugar para
passear com meus filhos. Se você quer um momento para andar, pensar ou
rezar, este é um lugar maravilhoso." Durante os Jogos, o parque será um
dos três "locais ao vivo" onde os moradores poderão assistir às competições em telões.
- Instalações olímpicas em Deodoro (Foto: Renato Sette Câmara / Prefeitura do Rio)
Embora o espaço agrade a muitos moradores, a Prefeitura admite que
771 famílias foram obrigadas a sair da favela Vila das Torres para dar
lugar a esse parque há muito planejado, de R$ 278 milhões, que fica
entre as instalações olímpicas em Deodoro e os dois principais estádios
na zona norte: o Estádio Olímpico João Havelange, que abrigará o
atletismo, e o Maracanã, que sediará as etapas finais do futebol e as
cerimônias de abertura e encerramento.
"Houve um conflito, muita resistência", diz Raphaella Santos,
estudante de graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro que
estudou o projeto. "Foi muito traumático para um grande número de
moradores."
"O aluguel subiu demais aqui, e então algumas pessoas tiveram de ir
embora", diz Jorge de Souza, 65, morador há sete anos do Engenho de
Dentro, um subúrbio que foi reurbanizado para os Jogos ao custo
aproximado de R$ 52 milhões.
Mais a oeste, cerca de R$ 825 milhões foram investidos em Deodoro,
local de uma base militar ativa. Onze eventos olímpicos e quatro
paralímpicos, incluindo equitação, esgrima e rúgbi em cadeiras de rodas,
serão realizados na área e, de modo geral, as obras olímpicas foram
bem-vindas pelos moradores deste recanto sonolento do Rio.
"Falando comercialmente, foi ótimo", diz Marco Aurélio, 47,
presidente da associação de moradores local. "Colocou Deodoro no mapa; o
fluxo de negócios aumentou e o lugar está atraindo investidores."
Mas muitos aqui questionam se as autoridades terão dinheiro e vontade
para manter as instalações em longo prazo. Apesar do novo X-Park, que
abrigará as competições de canoagem slalom e ciclismo BMX e deverá ser
entregue ao público depois dos Jogos, os moradores estão céticos: "Não
sabemos o que vai acontecer depois", diz Eloy do Nascimento, 58. "Acho
que poderá ser privatizado."
*Reportagem publicada originalmente no jornal The Guardian. Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/rio-2016-quem-sao-os-verdadeiros-ganhadores-e-perdedores