Sem a presença das indígenas que atuam no Governo Federal e falta de apoio do governo, cerca de 800 indígenas se reuniram em Belém no sábado (5/ago/2023) para discutir o modelo de desenvolvimento que querem para a Amazônia e um futuro com terras demarcadas, longe do garimpo, da monocultura, das ferrovias, das hidrelétricas e dos grandes projetos
Documento da Cúpula dos Povos Indígenas, evento paralelo, foi entregue ao Forum Amazônia Real, promovido pelo Governo Federal, Estadual e Municipal, em Belém, no Pará
por Cícero Pedrosa Neto do Amazônia Real, no – Sociedade e Luta dos Indígenas pela Sobrevivência da Terra
Belém (PA) – O local onde a Cúpula dos Povos Indígenas
ocorreu ficava em uma via pública, ladeada por arquibancadas de metal e
alvenaria, no bairro da Pedreira. É lá que desfilam as tradicionais escolas de
samba de Belém. As principais organizações indígenas até tentaram um espaço
melhor, mas não receberam resposta dos organizadores do evento Diálogos
Amazônicos, a cargo do governo federal, estadual e municipal. E foi assim que,
no sábado (5/ago/2023), cerca de 800 indígenas da bacia amazônica se reuniram,
longe dos holofotes e da megaestrutura montada para a Cúpula da Amazônia, que
começou na quarta-feira.
É
simbólico quando os principais detentores do conhecimento das florestas ficam
de fora dos debates em torno da preservação da Amazônia. “Não fomos convidados, mas viemos para Belém, porque a nossa luta é
feita de resistência”, protestou Toya
Manchineri, coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira (Coiab), uma das
organizações indígenas que idealizaram e realizaram a Cúpula dos Povos
Indígenas.
O encontro paralelo dos povos indígenas, que
ocorreu no âmbito da Assembleia dos Povos Pela Terra, reuniu lideranças de
todos os estados da Amazônia Legal e de alguns países da Pan-Amazônia. Eles
exigem protagonismo nas decisões sobre o futuro dos seus territórios, da
Humanidade frente às mudanças climáticas e do modelo de desenvolvimento
possível para a região.
Mas muitas delegações indígenas só puderam chegar à
capital paraense graças à mobilização de organizações como a Coiab, a
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Federação dos Povos
Indígenas do Pará (Fepipa). Os mais de 800 indígenas que acompanharam os
eventos ao longo dos últimos dias estão, em sua maioria, acampados no Parque
dos Igarapés, distante cerca de 14 quilômetros do Hangar, onde lideranças
mundiais buscarão encontrar uma posição em comum nos debates climáticos
da COP28, que ocorrerá em novembro e
dezembro/2023, em Dubai, nos Emirados Árabes.
“Nós queremos ser escutados pelo governo e
participar diretamente das decisões que incidem sobre nossos territórios. E a
gente também quer incidir nas decisões do governo. Nós também temos voz e já
passamos do período tenebroso do Bolsonaro”, acrescentou Toya Manchineri.
“Eu me
preocupo muito com o formato em que está se dando essa construção com os povos
indígenas separados do evento central, fazendo seu debate apenas entre nós
mesmos. Nós já sabemos o que nos afeta e o que precisa se fazer para reverter isso,
é o governo que não sabe”, comentou a ativista indígena Nice Tupinambá,
presente na plateia da Cúpula dos Povos Indígenas.
Crédito de carbono e bio-economia para quem ?
O encontro histórico ocorrido na capital paraense foi aberto pelo líder indígena cacique Raoni Metuktire, do povo Kayapó, que lembrou da sua longa trajetória de luta pelos direitos dos povos indígenas. “Eu já estou cansado, mas me fortaleço vendo vocês aqui”, disse Raoni. Durante quase 10 horas, sob forte calor, em cadeiras plásticas, na Aldeia Cabana, lideranças indígenas abordaram justamente os temas que mais preocupam seus povos e que estão na pauta do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), entre eles a ferrovia Ferrogrão, a exploração de petróleo na Foz do rio Amazonas, o crédito de carbono e a bio-economia – defendidos como frentes viáveis ao desenvolvimento da região, apesar dos impactos e das controvérsias entre o governo, indígenas e órgãos ambientalistas.
Os temas
prometem ser pontos-chaves das discussões na Cúpula da Amazônia,
evento que sediou a 4ª Reunião de Presidentes dos Países da Organização
do Tratado de Cooperação Amazônica. “Estamos
aqui para consolidar um documento que diga que tipo de desenvolvimento nós
queremos para a Amazônia, de que forma ele tem que ser feito e respeitando os
povos indígenas”, comentou Toya sobre o documento, fruto dos apontamentos
feitos pelas lideranças indígenas, que será entregue ao presidente Lula e
demais chefes de Estado que foram a Belém.
Não se
sabe ainda em que termos será este encontro e como o documento das Cúpula dos
Povos Indígenas chegará nas mãos dos presidentes da Pan-Amazônia. Até agora,
uma marcha está programada para sair em direção ao Hangar Centro de Convenções,
no dia 8/ago/2023, que foi o primeiro dia da Cúpula da Amazônia.
O
documento formalizado pelas organizações indígenas clama pela urgência da demarcação
das terras indígenas pelo governo brasileiro e pela não aprovação do marco
temporal, como forma de assegurar o bem-viver dos povos originários e a
proteção dos biomas.
Além
disso, o documento contém o posicionamento dos povos indígenas da bacia amazônica
sobre as políticas governamentais focadas na transição energética e na redução
das emissões de carbono, estabelecendo de que maneira os indígenas pensam a bio-economia
e de que forma o crédito de carbono ainda é um enclave do ponto de vista da
justiça climática.
Outro
destaque dado pelos indígenas na assembleia foi a importância da consulta
prévia livre e informada na mediação de qualquer empreendimento ou projeto que
esteja relacionado aos territórios indígenas, conforme estabelece a Convenção
169 da Organização Mundial do Trabalho (OIT).
“Eles pensam que nós somos pobres, que vivemos na
miséria e que estamos querendo os milhões de dólares do crédito de carbono.
Nossa riqueza são os rios e as florestas, o resto é coisa de pariwat [homem branco em na
língua Munduruku]”, afirma Alessandra Munduruku, que também é uma das
principais vozes da atualidade quando o assunto é justiça climática e transição
energética justa.
“Não há futuro sem nós”, afirmou Txai Surí, jovem liderança Paiter Suruí
Txai Suruí, jovem liderança do povo Paiter Suruí, que ficou conhecida mundialmente após discursar em defesa da Amazônia e dos povos indígenas na COP26, em Glasgow, na Escócia, acompanhou a plenária indígena e não escondeu seu desapontamento. “O que eu estou vendo nesses eventos do governo é justamente o contrário daquilo que estamos construindo em termos de diálogo, porque os povos indígenas de fato não estão dentro das discussões. A prova disso é o isolamento (Cúpula dos Povos Indígenas) deste encontro que está acontecendo”, disse Txai em entrevista à Amazônia Real, se referindo à Cúpula dos Povos Indígenas. Recentemente, ela, a mãe, Neidinha Suruí, e o artista Mundano e mais cinco indígenas do povo Uru-Eu-Wau-Wau, foram vítimas de uma emboscada em uma estrada que dá acesso ao posto de vigilância da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), em Rondônia.
Mirando na COP30, maior evento mundial pelo clima
que será realizada em Belém, e avaliando o governo do Pará como um dos maiores da região
amazônica, Txai destaca o mau exemplo
dado pelo governador Helder Barbalho (MDB). A jovem liderança disse não
entender como o mesmo governador “quer abrir as portas do estado para uma série
de empreendimentos destrutivos, como a Ferrogrão e
outros, e ao mesmo tempo falar em proteger as florestas”.
“Não há
futuro sem nós povos indígenas, mas nós já sabemos disso. E sabemos que se os
governantes continuarem tomando decisões sem nos escutar de verdade, não vai
ter mudança de verdade”, afirma Txai, que coordena a Associação de Defesa
Etnoambiental Kanindé, com sede em Porto Velho, Rondônia.
“O que é essa bio-economia, parentes?”, perguntou Mariazinha Baré, liderança indígena
Bio-economia tem sido apontado pelo governo Lula como uma solução para a região amazônica para a geração de renda e substituição de práticas destrutivas que impactam os biomas. No entanto, questionamento de indígenas, quilombolas, povos tradicionais e pesquisadores repousa no fato de que os danos são provenientes do agronegócio, do garimpo, da monocultura e da extração ilegal de madeira, atividades diretamente associada às queimadas, ao desmatamento, à contaminação dos rios e, consequentemente, às mudanças climáticas.
Longe de
negarem a importância da bio-economia
como ferramenta de transformação e uma guinada a um futuro mais integrado e em
conexão com a natureza, o que as populações das florestas querem saber é de que
forma o governo tem pensado a bio-economia
e como eles participarão, efetivamente das discussões e tomadas de
decisão.
“O que é
essa tal bio-economia, parentes ((outras(os)
indígenas))”,
questionou aos presentes Maria Cordeiro Baré, mais conhecida como Mariazinha Baré, liderança indígena do
Amazonas na Aldeia Cabana. “O governo do
Amazonas está construindo um plano de bio-economia sem a participação dos povos
indígenas, sem a participação dos quilombolas, ribeirinhos e agricultores
familiares”, denuncia Mariazinha sobre a falta de escuta dos povos no Plano de
Bio-economia do Amazonas, liderado pelo governador Wilson Lima (União
Brasil).
“Esse é o
grande problema dos governos e é o mesmo que estamos vendo aqui na construção
da Cúpula da Amazônia, para a qual nós não fomos chamados. Mas nós estamos aqui
porque sabemos da nossa importância para a Amazônia e para o mundo”, afirma a
líder. Para Mariazinha Baré, um dos
pontos mais importantes do documento da Cúpula
dos Povos Indígenas que foi entregue ao presidente no dia 8/ago/2023 é o
que fala da relação bio-economia e
povos indígenas.
“Qual a bio-economia que a gente quer e o que é bio-economia na nossa visão, nós povos
indígenas? E será que os governos estão mesmo dispostos a pensar em uma
economia de baixo impacto? Será que eles estão dispostos mesmo a passar por
esse processo de transição econômica? Até que ponto eles estão mesmo dispostos
a mudar esse cenário de uma economia que vai arrasando e matando os povos e as
formas de vida na Amazônia”, resume.
A líder,
fazendo coro com os demais membros da mesa que discutia o futuro dos povos
indígenas na Amazônia e sob palavras de ordem que pediam o fim da tese do marco
temporal, ressaltou a importância dos povos continuarem lutando pela demarcação
dos territórios. “Está provado que nossos territórios são locais onde existe
vida e onde a gente consegue manter a vida sem desmatamento e queimadas.”
Pessimismo de Alexandra, liderança indígena com o Governo Federal
Alessandra Munduruku, cuja voz se opõe ao garimpo na região do Tapajós, se diz pessimista com relação às ações e aos discursos do governo sobre o combate às mudanças climáticas e a proteção da Amazônia. “A gente sabe que o mundo está de olho na Amazônia, todo o caos que está acontecendo com as mudanças climáticas tem envolvido a Amazônia. Mas se o governo negociar com mineradoras, hidrelétricas nos nossos rios, compensação de carbono nos nossos territórios e exploração de petróleo, para nós não vale nada o que eles estão dizendo.”
A
liderança Munduruku questiona ainda a falta de posicionamento do governo
federal em relação o marco temporal. Essa tese, que está sob análise tanto no
Senado Federal quanto no Supremo Tribunal Federal (STF), condiciona o direito
territorial dos povos indígenas apenas sobre os territórios ocupados antes de
1988, data da promulgação da Constituição Federal. Se aprovada, ela colocará em
risco e vulnerabilidade centenas de famílias indígenas em todo o País.
Os
indígenas cobram uma posição do governo federal a respeito dos grandes vetores
que promovem as destruições nas Terras Indígenas, apontando para as indústrias
de mineração e de produção de agrotóxicos, além dos impactos mortais causados
pela contaminação por mercúrio causada pelo garimpo. “A gente quer saber o que o governo vai fazer com os projetos de lei
que estão afetando nossa terra”, cobra Alessandra. Ela também questiona os
“países desenvolvidos porque eles financiam a destruição da nossa terra e ao
mesmo tempo falam em mudança climática, em preservar a Amazônia para as futuras
gerações”.
O ceticismo de Alessandra foi um sentimento
compartilhado nos mais de 50 depoimentos
ouvidos na Cúpula dos Povos Indígenas, além das denúncias e cobranças. Uma
delas era a ausência notável
das lideranças indígenas agora com assento no governo
federal, como Joênia Wapichana,
presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), e a Ministra dos
Povos Indígenas, Sônia Guajajara. Joênia já estava em Belém durante o encontro
das lideranças, mas participava de plenárias indígenas no evento oficial do
governo, nos Diálogos Amazônicos. A ministra Sônia, por sua vez, só chegou em
Belém no domingo (6/ago/2023).
O líder indígena, cacique Raoni Metuktire durante a abertura dos Diálogos Amazônicos, evento que antecedeu a Cúpula da Amazônia, em Belém (Foto: Bruno Peres/ASCOM SG-PR/04/08/2023)
*Cícero Pedrosa Neto é repórter multimídia e
colaborador da agência Amazônia Real desde 2018, atuando em temas relacionados
ao meio-ambiente, impactos sócio-ambientais da mineração, populações
quilombolas, populações indígenas e conflitos agrários. Em 2019 foi um dos
jornalistas premiados com o 41º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos
Humanos na categoria multimídia com a série “Sem Direitos: o rosto da exclusão
social no Brasil”, um trabalho colaborativo entre mídias digitais
independentes: #Colabora, Ponte Jornalismo e Amazônia Real. Foi bolsista do
Rainforest Journalism Fund | Pulitzer Center em 2020. É fotógrafo,
documentarista, roteirista, podcaster e mestre em sociologia e antropologia
pela Universidade Federal do Pará. (pedrosaneto@amazoniareal.com.br)
Redação do GGN: jornalggn@gmail.com
Publicado no site GGN: 7 de agosto de 2023
Fonte: https://jornalggn.com.br/questao-indigena/cupula-dos-povos-indigenas-fica-isolada-da-cupula-da-amazonia/