O sociólogo Jessé Souza, em artigo publicado por
Folha de S. Paulo, 24-09-2017, argumenta que a visão do brasileiro como
vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto decorre de uma leitura liberal,
conservadora e equivocada de nosso passado. Para ele, é preciso reinterpretar a
história do Brasil tomando a escravidão
como o elemento definitivo que nos marca como sociedade até hoje
por Jessé Souza para revista ihu-Instituto Humanitas Unissinos – Sociedade e a Grande Injustiça Social Brasileira
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Quem sintetizou a interpretação dominante do
Brasil, que todos aprendemos nas escolas e nas universidades, foi Gilberto Freyre (1900-87). É a ideia
de que viemos de Portugal e que de lá herdamos um jeito específico de ser. Para
o autor de "Casa-Grande e Senzala" e para seguidores como Darcy Ribeiro (1922-97), essa herança
era positiva ou, pelo menos, ambígua.
Sérgio Buarque de Holanda (1902-82),
outro filho de Freyre (discípulo), reinterpreta a ideia como pura
negatividade em registro liberal. Cria, assim, o brasileiro como vira-lata,
pré-moderno, emotivo e corrupto. Tal visão prevaleceu, e quase todos a seguem,
de Raymundo Faoro (1925-2003), Fernando
Henrique Cardoso e Roberto DaMatta a Deltan Dallagnol
e Sergio Moro.
Essa é a única interpretação totalizante da
sociedade brasileira que existe até hoje.
A "esquerda", entendida como a
perspectiva que contempla os interesses da maioria da sociedade, jamais
construiu alternativa a essa leitura liberal e conservadora. Existem
contribuições tópicas geniais, mas elas esclarecem fragmentos da realidade
social, não a sua totalidade, permitindo que, por seus poros e lacunas, penetre
a explicação dominante.
A ausência de interpretação própria fez com que a
esquerda sempre fosse dominada pelo discurso do adversário. O fio
condutor é a ideia de que a escravidão nos marca como sociedade até hoje
—e não a suposta herança de corrupção, como se convencionou sustentar.
Procurei reescrever essa história em meu novo livro, "A Elite do Atraso - Da Escravidão à Lava
Jato".
Para o sociólogo Faoro, por exemplo, a história
do Brasil é a história da corrupção transplantada de Portugal e aqui
exercida pela elite do Estado. Nessa narrativa, senhores e escravos
raramente aparecem e nunca têm o papel principal.
Essa abordagem seria apenas ridícula se não fosse
trágica. Faoro imagina a semente da corrupção já no século 14, em
Portugal, quando não havia nem sequer a concepção de soberania popular,
que é parteira da noção moderna de bem público. É como ver um filme sobre a
Roma antiga cheio de cenas românticas que foram inventadas no século 18. Não
obstante, o país inteiro acredita nessa bobagem.
Escravidão
Os adeptos dessa interpretação dominante parecem
não se dar conta de que, em uma sociedade, cada indivíduo é criado pela ação
diária de instituições concretas, como a família, a escola, o mundo do
trabalho.
No Brasil Colônia, a instituição que
influenciava todas as outras era a escravidão (que não existia em Portugal,
a não ser de modo tópico). Tanto que a (não) família do escravo daquele período
sobrevive até hoje, com poucas mudanças, na (não) família das classes
excluídas: monoparental, sem construir os papéis familiares mais básicos,
refletindo o desprezo e o abandono que existiam em relação ao escravo.
Também no mundo do trabalho a continuidade
impressiona. A "ralé de novos escravos", mais de um terço da população,
é explorada pela classe média e pela elite do mesmo modo que o escravo
doméstico: pelo uso de sua energia muscular em funções indignas, cansativas e
com remuneração abjeta.
Em outras palavras, os estratos de cima roubam o
tempo dos de baixo e o investem em atividades rentáveis, ampliando seu próprio
capital social e cultural (com cursos de idiomas e pós-graduação, por exemplo)
e condenando a outra classe à reprodução de sua miséria.
A classe que chamo provocativamente de ralé
é uma continuação direta dos escravos. Ela é hoje em grande parte
mestiça, mas não deixa de ser destinatária da superexploração, do ódio e
do desprezo que se reservavam ao escravo negro. O assassinato indiscriminado de pobres é
atualmente uma política pública informal de todas as grandes cidades
brasileiras.
A nossa elite econômica também é uma
continuidade perfeita da elite escravagista. Ambas se caracterizam pela
rapinagem de curto prazo. Antes, o planejamento era dificultado pela
impossibilidade de calcular os fatores de produção. Hoje, como o recente golpe
comprova, ainda predomina o "quero o meu agora", mesmo que a custo do
futuro de todos.
É importante destacar essa diferença. Em outros
países, as elites também ficam com a melhor fatia do bolo do presente, mas além
disso planejam o bolo do futuro. Por aqui, a elite dedica-se apenas ao saque da
população via juros ou à pilhagem das riquezas
naturais.
Intermediárias
Historicamente, a polarização entre senhores e
escravos em nossa sociedade permaneceu até o alvorecer do século 20, quando
surgiram dois novos estratos por força do capitalismo industrial: a
classe trabalhadora e a classe média.
Em relação aos trabalhadores, a violência
e o engodo sempre foram o tratamento dominante. Com a classe média,
porém, a elite se viu contraposta a um desafio novo.
A classe média não é necessariamente
conservadora. Tampouco é homogênea. O tenentismo, conhecido como nosso primeiro
movimento político de classe média, na década de 1920, já revelava essas
características, pois abrigava múltiplas posições ideológicas.
A elite paulistana, tendo perdido o poder
político em 1930, precisava fazer com que a heterodoxia rebelde da classe média
apontasse para uma única direção, agora em conformidade com os interesses das
camadas mais abastadas. Como naquele momento os endinheirados de São Paulo não
controlavam o Estado, o caminho foi dominar a esfera pública e usá-la como
arma.
O que estava em jogo era a captura intelectual e
simbólica da classe média letrada pela elite do dinheiro, para a
formação da aliança de classe dominante que
marcaria o Brasil dali em diante.
O acesso ao poder simbólico exige a construção de
"fábricas de opiniões": a grande imprensa, as grandes editoras
e livrarias, para "convencer" seu público na direção que os
proprietários queriam, sob a máscara da "liberdade de imprensa" e de
opinião.
A imprensa, todavia, só distribui
informação e opinião. Ela não cria conteúdo. A produção de conteúdo é
monopólio de especialistas treinados: os intelectuais. A elite paulistana,
então, constrói a USP, destinando-a a ser uma espécie de gigantesco
"think tank" do liberalismo conservador brasileiro, de
onde saem as duas ideias centrais dessa vertente: as noções de patrimonialismo e de populismo.
Lava Jato
Enquanto conceito, o patrimonialismo
procede a uma inversão do poder social real, localizando-o no Estado,
não no mercado. Abre-se espaço, assim, para a estigmatização do Estado e
da política sempre que se contraponham aos interesses da elite econômica.
Nesse esquema, a classe média cooptada escandaliza-se apenas com a corrupção
política dos partidos ligados às classes populares.
A noção de populismo, por sua vez,
sempre associada a políticas de interesse dos mais pobres, serve para mitigar a
importância da soberania popular como critério fundamental de uma sociedade
democrática — afinal, como os pobres ("coitadinhos!") não têm
consciência política, a soberania popular sempre pode ser posta em questão.
É impressionante a proliferação dessa ideia na
esfera pública a partir da sua "respeitabilidade científica" e,
depois, pelo aparato legitimador midiático, que o repercute todos os dias de
modos variados.
As noções de patrimonialismo e de populismo,
distribuídas em pílulas pelo veneno midiático diariamente, são as ideias-guia
que permitem à elite arregimentar a classe média como sua tropa de
choque.
Essas noções legitimam a aliança antipopular
construída no Brasil do século 20 para preservar o privilégio real: o
acesso ao capital econômico por parte da elite e o monopólio do
capital cultural valorizado para a classe média. É esse pacto que permite a
união dos 20% de privilegiados contra os 80% de excluídos.
A atual farsa da Lava Jato é apenas a máscara nova
de um jogo velho que completa cem anos.
Em conluio com a grande mídia, não se
atacou apenas a ideia de soberania popular, pela estigmatização seletiva da
política e de empresas supostamente ligadas ao PT — o saque real, obra
dos oligopólios e da intermediação financeira, que capturam o Estado para seus
fins, ficou invisível como sempre. Destruiu-se também, com protagonismo da Rede
Globo nesse particular, a validade do próprio princípio da igualdade social
entre nós.
O ataque seletivo ao PT, de 2013 a 2016,
teve o sentido de transformar a luta por inclusão social e maior igualdade em
mero instrumento para um fim espúrio: a suposta pilhagem do Estado.
Desqualificada enquanto fim em si mesma, a
demanda pela igualdade se torna suspeita e inadequada para expressar o
legítimo ressentimento e a raiva que os excluídos sentem, mas que agora não
podem mais expressar politicamente.
Assim, abriu-se caminho para quem surfa na
destruição dos discursos de justiça social e de valores democráticos — Jair
Bolsonaro como ameaça real é filho do casamento entre a Lava Jato e
a Rede Globo.
O pacto antipopular das classes alta e
média não significa apenas manter o abandono e a exclusão da maioria da
população, eternizando a herança da escravidão. Significa também capturar o
poder de reflexão autônoma da própria classe média (assim como da sociedade em
geral), que é um recurso social escasso e literalmente impagável.
Jessé de Souza *, doutor em sociologia
pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), é autor de "A Tolice da
Inteligência Brasileira" e "A Radiografia do Golpe"
(Leya), além de professor de sociologia da UFABC.
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/572004-escravidao-e-nao-corrupcao-define-sociedade-brasileira-diz-jesse-souza