- A decisão da Câmara, seguindo o desejo do governo Michel Temer, vai contribuir para a estagnação do IDH e aumento vertiginoso da pobreza
- A terceirização irrestrita consagra o desenvolvimento desumano do Brasil
por Renan Truffi para Carta Capital - Sociedade e Desigualdade na Destribuição de Renda
Do alto dos edifícios, algumas famílias abastadas
contemplam o panorama de uma favela de mais de 100 mil habitantes. Em
São Paulo, Paraisópolis. Paraisópolis?!
A pedido do Palácio do Planalto, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia
(DEM-RJ), foi buscar um Projeto de Lei de 1998, o PL 4302, elaborado
ainda na gestão Fernando Henrique Cardoso e que estava parado há mais de
uma década no Congresso, para colocar em votação.
Isso porque a outra proposta sobre terceirização, que havia sido aprovada em 2015 na Câmara, estava travada no Senado. Como o PL 4302
já tinha passado pelas duas Casas, bastou uma nova votação para que a
proposta pudesse ser encaminhada para sanção presidencial.
A maioria dos líderes partidários não
queria enfrentar o tema novamente, por causa do ônus político. No
entanto, graças ao denodado empenho de Maia, o governo conseguiu acordo
para o tema entrar na pauta. O placar relativamente apertado revela as
dificuldades criadas pelo tema controverso: 231 votos a favor e 188
contra.
A terceirização vem para complicar ainda
mais a vida de um país que pela primeira vez, desde 2004, vê seu Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH) estagnar. O resultado do indicador
precede uma nova virada na história brasileira, consolidada com a agenda
Temer: a volta da visão tradicional que identifica apenas o PIB como
parâmetro de crescimento e não o desenvolvimento humano. Mas esta não é
preocupação para a quadrilha golpista. O retorno à escravidão é o
objetivo.
Apesar de os resultados do
IDH se referirem ao ano de 2015, quando a ex-presidenta Dilma Rousseff
ainda estava à frente do governo, o que explica o mau desempenho do
Brasil é exatamente a mesma lógica que se perpetua desde o impeachment: o arrocho fiscal.
Foi naquele ano que o ex-ministro Joaquim Levy introduziu
um forte contingenciamento de recursos e reduziu a figura do Estado
como indutor da economia. O número de desempregados passou de 7,2
milhões para 10 milhões, crescimento de quase 40%.
E é na renda, segundo o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), que está a explicação para a
deterioração do IDH e da qualidade de vida. O Pnud avalia dados de três
áreas para calcular o desenvolvimento humano de uma nação: saúde,
conhecimento e padrão de vida.
Os dois primeiros seguem registrando
melhoras em seus indicadores no Brasil, mas o último tem como principal
fator a Renda Nacional Bruta (RNB), que registrou queda abrupta em 2015,
voltando a um patamar similar ao de 2010.
Com isso, o Brasil está paralisado na
posição de 79º no ranking, com IDH de 0,745, mesmo patamar do ano
anterior, 2014. Dos 188 países avaliados, ficamos ao lado de um pequeno
grupo de 16 nações que também não conseguiram elevar o IDH – Equador,
Iraque, Irã, Afeganistão e Líbano são alguns dos exemplos mais
expressivos.
“É uma luz amarela, um
alerta, algo para se olhar com atenção para saber o que precisa ser
feito”, explica a coordenadora do Relatório de Desenvolvimento Humano
Nacional do Pnud, Andréa Bolzon. Enquanto 159 países conseguiam aumentar
seu Índice de Desenvolvimento Humano, apenas 13 registraram queda.
Muitos vivem, porém, situações de luta intestina, como Ucrânia e Líbia, o
que ajuda a explicar o resultado.
O desempenho brasileiro só não foi pior,
esclarece a equipe do Pnud, por causa da rede de proteção social
construída nos últimos anos. Foram programas de governo que ajudaram a
segurar os índices de escolaridade e expectativa de vida, que também
compõem o valor do IDH. “Não podemos nos gabar de ter um excelente piso
de proteção social, mas temos um piso. Isso explica o fato de não
estarmos em situação pior. A questão agora é não retroceder mais”,
enfatiza Andréa.
O certo é que a recessão econômica e o desemprego já
começaram a aprofundar a desigualdade. Segundo cálculos da FGV Social,
Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas, o Índice de Gini
registrou em 2016, pela primeira vez depois de 22 anos, aumento de
desigualdade no País. Esse índice varia de zero a 1, considerando que,
quanto mais perto de zero, menor é a desigualdade numa sociedade
avaliada. No Brasil, esse valor alcançou 0,5229 em 2016, aumento de 1,6%
em relação a 2015.
Umas das explicações para esse resultado é
o congelamento do valor do Bolsa Família, que ficou dois anos sem
correção, enquanto a inflação atingia dois dígitos, ainda durante o
governo Dilma. “Até o fim de 2016, o dado de aumento da desigualdade não
dá qualquer sinal de arrefecimento”, afirma Marcelo Neri, diretor da
FGV Social e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea).
“Na recessão de 1999,
foi discutido o Bolsa Escola. Na recessão de 2003, gerou-se o Bolsa
Família. São recessões em que se mostrava preocupação com os mais
pobres. O Brasil manteve o Bolsa Família congelado por quase dois anos,
3,6 milhões de pessoas entraram na pobreza em 2015. Isso reflete esse
desajuste nesta crise, esse desaprendizado de cuidar dos pobres. Não é
só uma questão de justiça social, a recessão tende a ser mais dura
também quando não há preocupação com os mais pobres.”
É por isso que esse quadro tende a piorar ainda mais com as reformas do governo Temer, segundo especialistas ouvidos por CartaCapital. O peemedebista reajustou o valor do programa de transferência de renda em 12,5% assim que assumiu o Palácio do Planalto.
Depois aprovou, contudo, o congelamento
dos gastos primários por 20 anos, a chamada PEC 55, que deve afetar
justamente a transferência de renda e áreas cruciais para o
desenvolvimento humano, como saúde e educação.
No caso de programas como o Bolsa Família,
que oferece auxílio às gestantes e controla a presença de crianças na
escola, o Brasil corre o risco de ter dados sociais importantes
afetados. “Estagnou o crescimento das famílias do Bolsa Família, deu até
uma caída.
Se esse movimento for se mantendo, é
possível que os indicadores de saúde e educação se alterem. Se você
começa um processo pelo qual não ingressam mais pessoas no programa e
você não mexe no valor do benefício, ele vai se extinguindo
naturalmente”, alerta o coordenador de relações sindicais do Dieese,
Fausto Augusto Júnior.
O congelamento de gastos públicos é um
dos principais eixos da política econômica do ministro da Fazenda,
Henrique Meirelles, que bateu duro para que o texto fosse aprovado no
Congresso.
O Dieese apresentou um estudo no ano
passado mostrando que, se a PEC 55 estivesse valendo, entre 2006 e 2015,
o montante aplicado na educação, seria 55% menor do que foi de fato. Já
em relação às despesas com saúde, a redução seria de 33% no mesmo
período. Do ponto de vista do total de recursos, a perda na educação
teria sido de 384 bilhões de reais e, na saúde, de 290 bilhões.
A própria ONU chegou a se manifestar sobre esses pontos. Em entrevista a CartaCapital
em dezembro, o relator especial da Organização das Nações Unidas para a
Pobreza Extrema e os Direitos Humanos, Philip Alston, foi enfático.
“Nos próximos 20 anos, o governo vai gastar com políticas sociais muito
menos do que gasta hoje. Isso significa que a futura geração estará
condenada.”
Há ainda outro
importante projeto do governo que pode jogar para baixo os dados sociais
brasileiros: a reforma da Previdência. Mesmo evitando críticas diretas
ao governo, já que a proposta ainda está em tramitação, a equipe do Pnud
no Brasil apontou os trechos presentes no texto que podem criar
vulnerabilidade social. Andréa Bolzon destacou, principalmente, o
endurecimento das regras de acesso à aposentadoria para os trabalhadores
rurais, o que classificou como “injustiça”.
Na quarta-feira 22, poucos deputados fizeram uma defesa
enfática da terceirização. Coube à oposição criticar o texto. Os
parlamentares sabem que a terceirização é uma demanda do empresariado e
não dos trabalhadores. A proposta é vista pela equipe econômica como
forma de diminuir as taxas de desemprego.
Não se sabe ainda se, de fato, isso vai fazer diferença na
oferta de postos de trabalho, mas os estudos indicam que a
terceirização precariza, sim, as condições de trabalho. Com dados de
2013, técnicos do Dieese mostraram que os terceirizados recebem salários
24,7% menores do que aqueles dos efetivos e permanecem no emprego pela
metade do tempo, além de ter jornadas maiores. Menos renda e menos
direitos para os mais vulneráveis.
https://www.cartacapital.com.br/revista/945/a-terceirizacao-irrestrita-consagra-o-desenvolvimento-desumano-do-brasil