“A ideia
de que o único valor do conhecimento é o valor de mercado é o que irá matar a
universidade. Uma universidade que é ‘sustentável’ porque financia a si mesma é
uma universidade insustentável como bem comum, porque se transformou em uma
empresa”, advertiu o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos*
por Javier
Lorca na Página/12 e IHU
Unissinos** - Sociedade, Universidade e Neoliberalismo
Foto da IHU Unissinos
“Se os
estudantes de 1918 estivessem aqui hoje - começou -, se nós fôssemos esses
estudantes, quais seriam as reformas necessárias?” Em um cativante castelhano
de cadência portuguesa, De Sousa Santos traçou inicialmente um paralelo
com o Maio Francês, especificou
as conquistas progressistas e caracterizou o presente como uma época plena de
perigos para a universidade pública: “Estamos passando um ciclo global
conservador e reacionário, controlado pelo neoliberalismo, que não é
senão o domínio total do capital financeiro”. Trata-se de um cenário
mais complexo que o enfrentado pelas rebeliões de 1918 e 1968, por uma razão:
“Então, o contexto global permitia pensar que havia alternativa ao capitalismo. Hoje, parece
que o capitalismo venceu seus adversários, é um capitalismo sem medo”.
O projeto
neoliberal, explicou, almeja a construção de um “capitalismo
universitário”: “Começou com a ideia de que a universidade deveria ser
relevante para criar as competências que o mercado exige”, seguiu com as
propostas de tributação e privatização. “A fase final é a ideia
de que a universidade dever ser ela mesma um mercado, a universidade como
empresa”. Se a universidade é uma mercadoria a mais, precisa ser medida: daí os
rankings globais.
A ideologia
neoliberal colide assim com a ideia de “universidade como um bem comum”,
filha das conquistas obtidas a partir da Reforma. “É um momento difícil
por várias razões, e uma delas é que não há um ataque político, mas, sim, um
ataque despolitizado. É um ataque que tem duas dimensões: cortes orçamentários
e a luta contra a suposta ineficiência ou corrupção, uma luta muito seletiva,
porque se sabe que as universidades públicas são em geral muito bem gerenciadas
em comparação com outras instituições”.
Boaventura de Sousa Santos
identificou três razões pelas quais a universidade é um alvo desejado pelo regime
neoliberal.
- Sua
produção de conhecimento independente e crítico questiona “a ausência de
alternativas que o neoliberalismo tenta produzir em nossas cabeças todos
os dias. Se não há alternativas, não há política, porque a política é só
alternativas. É por isso que muitas das medidas contra a universidade não
parecem políticas, mas, sim, econômicas, os cortes financeiros, ou jurídicos, a
luta contra a corrupção. O que está por trás é a ideia de que a universidade
pode ser um fermento de alternativas e resistência”.
- O
pensamento neoliberal busca um presente eterno, quer evitar toda tensão entre
passado, presente e futuro. E a universidade sempre foi, com todas as
limitações, a possibilidade de criticar o presente em relação ao passado e com
vistas a um futuro diferente”.
- “A
universidade ajudou a criar projetos nacionais (obviamente, excludentes
dos povos originários) e o neoliberalismo não quer projetos nacionais. Por sua
vez, a universidade sempre foi internacionalmente solidária, com base na ideia
de um bem comum. Mas, o capitalismo universitário quer outro tipo de
internacionalismo: a franquia, que as universidades possam comprar produtos
acadêmicos em todo o mundo”.
Pluriversidade
A segunda
parte da conferência resumiu uma série de propostas para refundar a
universidade, sobre a base da Reforma de 18, mas rompendo com suas limitações e
radicalizando seu espírito democratizador.
“A
dominação hoje tem três cabeças: capitalismo, colonialismo e
hétero-patriarcado”, postulou De Sousa Santos. “Nosso dilema é que
esta dominação é integrada. O capitalismo atua junto com o colonialismo e o
patriarcado. Mas, a resistência está fragmentada. A universidade pode ser um
campo onde pensar como articular a resistência. Também por isso a universidade
é um alvo do neoliberalismo”.
Como
atuar? O primeiro passo, disse, é uma ruptura epistemológica. “Há uma
pluralidade enorme de conhecimentos fora da universidade: conhecimentos rurais,
urbanos, populares, das mulheres. Por que a universidade nunca os levou em
conta? Porque a universidade não se descolonizou. Seus conteúdos, suas ciências
sociais, sua história, são colonialistas. Para se defender como bem público, a
universidade deve fazer uma autocrítica profunda, contra si mesma. Deve deixar
a ideia arrogante de que é a única fonte de conhecimento, abrir-se para
dialogar com outros saberes. Necessitamos criar Epistemologias do Sul”.
Nesse
sentido, a segunda ruptura a respeito da Reforma radica na aliança
social que a universidade deve buscar, não somente com as classes urbanas
burguesas, mas com “as classes populares e empobrecidas, as vítimas do
colonialismo e do patriarcado, os corpos racializados e sexualizados”. Por
isso, explicou, “a extensão nunca foi tão importante como hoje. Por influência
do neoliberalismo, a extensão foi desviada para obter fundos. Isto é perverso,
isso não é extensão, é prostituição. A verdadeira extensão é a que se dirige a
populações que não são solventes”. A proposta do português consiste em inverter
a extensão, “não é levar a universidade para fora, é trazer o conhecimento não
universitário para dentro”. E, por sua vez, “articular os diferentes saberes
populares, porque também costuma haver preconceitos entre os diferentes
movimentos” (operários, feministas, camponeses, LGBT).
A
universidade, concluiu entre aplausos, deve se restituir, fazer um uso
contra-hegemônico de sua autonomia e “transformar-se em uma pluriversidade.
Mas, o ataque do neoliberalismo é tão grande que talvez também deva se
converter em uma subversidade”.
*Boaventura de Souza Santos: doutor em Sociologia do
Direito, professor das universidades de Coimbra e de
Wisconsin-Madison, De Sousa Santos é – como ele mesmo se define –
“um ativista da universidade” e já dedicou ao tema vários textos, o primeiro em
meados dos anos 1990, o último publicado este ano.
**Tradução é do Cepat
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/579979-boaventura-de-sousa-santos-destrincha-o-assedio-neoliberal-as-universidades