1.21.2017
A mão da tragédia conduzindo a política brasileira
Pecados cometidos pelos pais contra os filhos
- Pediatra fala sobre os principais pecados cometidos contra a infância, entre eles, terceirização da criação, superproteção, confinamento e medicalização das crianças
por Thais
Paiva para Carta Capital - Sociedade e Relação Entre Pais e
Filhos
Os dados são alarmantes. O Brasil já é o segundo país do mundo que mais
consome Ritalina, medicação tarja preta usada para controlar o Transtorno
de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), que tem como principais usuários
crianças e adolescentes.
PIXABAY
Para o médico pediatra Daniel Becker, o quadro é sintomático das
condições sociais à quais a infância está sujeita atualmente. Falta de
convívio entre a família, crianças confinadas dentro de casa que precisam ser
constantemente distraídas e pais que superprotegem e não conseguem dizer “não”
aos filhos são alguns desses fatores. “Ao invés de tentar entender da onde vêm
esses sintomas, temos preferido mais uma agressão que é a medicalização”, diz.
Em conversa com o Carta Educação, o especialista com 20
anos de experiência na área e cujo TEDx “Crianças, já para fora” teve mais de
150 mil visualizações no YouTube falou sobre os principais “pecados” que
estamos cometendo contra a infância e os possíveis caminhos para solucioná-los.
Carta Educação: O senhor fala que, hoje, estamos diante de
uma terceirização da infância. Como se dá esse processo?
Daniel Becker: A terceirização da infância acontece em todos os
níveis e classes sociais, mas é mais acentuada nas classes média e alta. Os
pais estão convivendo muito pouco com seus filhos. Há casais que não se
preparam para tê-los, não levam em consideração que um filho ocupa muito tempo
e energia, que exige dedicação. Logo, quando chega uma criança na família, sua
criação acaba terceirizada em uma creche, por uma babá. Os pais acabam
vendo seus filhos, muitas vezes, só na hora de dormir, fazem poucas refeições e
passeios juntos, enfim, acabam tendo poucos momentos de convivência. Isso tudo
é agravado pelas condições que a sociedade atual impõe: longas horas de
trabalho, exigindo, inclusive, que as pessoas trabalhem fora do expediente, à
distância nos seus tablets e celulares. Nas classes baixas, a situação é,
muitas vezes, mais grave porque nem sempre os pais têm acesso à creche e, para
trabalhar, precisam deixar seus filhos com vizinhos, cuidadores. Isso quando
não precisam deixar as crianças sozinhas em casa. Nesse contexto, elas ficam
totalmente confinadas porque os pais não deixam sair justamente pelas condições
de violência das comunidades. Logo, ficam na televisão, nos celulares o dia
inteiro.
Carta Educação: Como essa falta de convívio entre
pais e filhos afeta negativamente as novas gerações?
DB: Terceirizar a educação é ruim para as crianças, é ruim para os
pais. Os filhos acabam sendo educados por pessoas que, muitas vezes, compactuam
com outros valores. Além disso, a criança não cria memórias afetivas em
família por meio das quais se constrói a coisa mais importante para se
educar alguém, a intimidade. Só na intimidade consegue-se dar limites,
orientar, conversar sobre assuntos profundos quando mais velhos. Sem
convivência não há intimidade e as crianças ficam aleijadas de seus pais que
são as figuras guias, afetivas, mais importantes para elas.
CE: As crianças estão também cada vez mais conectadas. Sabemos que a
tecnologia traz muitos benefícios, mas quais os efeitos perversos de uma infância
confinada, na qual precisam ser constantemente distraídas?
DB: Costumo dizer que a tecnologia não é só inevitável, mas
desejável. O mundo moderno caminha para que os aparelhos eletrônicos,
principalmente, os telefones celulares sejam a base da nossa comunicação, da
circulação de ideias. Mas o sobreuso é prejudicial em todos os sentidos,
inclusive, para a saúde física e estudos americanos mostram que as crianças
ficam, em média, de 8 a 10 horas conectadas por dia. Isso é, obviamente, muito
ruim porque a vida não pode acontecer só no smartphone, tem que acontecer do
lado de fora também, nas interações olho a olho.
Na verdade, as crianças migram para a tecnologia porque estão confinadas
em casa. As escolas têm cada vez menos espaços abertos e livres e mais sala de
aula, conteudismo. Com a energia explosiva que as crianças têm, o único jeito
de domar alguém confinado é oferecendo distração permanente e, claro,
aquela oferecida pelos telefones é irresistível. Só que o excesso de distração
que essa tecnologia traz incapacita a criança para o ócio, para o tédio, para
estar com a mente vazia, distraída criando suas próprias histórias. E é tão
importante usar a imaginação, a criatividade, é assim que se treina o cérebro
para ser criativo e imaginativo no futuro – habilidades muitos importantes,
inclusive, para o sucesso profissional. O antídoto para isso tudo é sair de
casa, ir para a rua, para a natureza e brincar livremente.
CE: Sobre a mercantilização da infância, é possível educar longe da
onda consumista que nos acomete? De que maneira?
DB: A mercantilização da infância se dá, principalmente, em dois
ambientes. Primeiro, no ambiente das telas. A televisão, por exemplo, veicula o
pior tipo de publicidade que é aquela dirigida à infância, uma publicidade
covarde, pois vale-se da incapacidade da criança de distinguir entre realidade
e fantasia, usa o amor que ela tem por personagens para vender comida tóxica,
brinquedos caros e desnecessários. Além disso, vende marcas da moda e modelos
muitas vezes adultizados de aparência. Outro ambiente onde se dá a
mercantilização da infância é o shopping, que virou o programa de fim de semana
da família brasileira. Os pais levam as crianças para ficar vendo vitrines e
pessoas comprando e comprando, fazendo disso o grande objetivo da vida delas.
São colocadas naquelas gaiolas cheias de brinquedo enquanto os pais fazem
compras, depois vão para uma loja de fast food comer comida
ruim, comer doce, engordar. Nesse contexto, as crianças vão absorvendo os
valores do consumismo, isto é, a hipervalorização da aparência, valores
sexistas, de futilidade, do ter melhor do que o ser. Isso tudo é muito ruim
para o desenvolvimento de um indivíduo humanista, antenado ao que acontece na
sociedade, participativo. Então, é preciso afastar as crianças desses dois
lugares, das telas e do shopping.
CE: Muitos especialistas criticam o excesso de atividades
extracurriculares nas quais os pais matriculam seus filhos na ânsia de
torná-los adultos mais competitivos. Como o senhor enxerga isso?
DB: Hoje, temos uma cultura que chamamos de escolarização do
aprendizado. Existe uma ilusão que a criança só aprende a partir do adulto,
então ela fica com a agenda cheia de programas ministrados por adultos. Com
três anos, sai da natação, vai para o futebol, depois vai para a capoeira para
depois ter aula de inglês. É massacrante. Nas escolas, é a mesma coisa, sai de
uma aula entra em outra, não tendo tempo livre de pátio. Só que a gente está
esquecendo que isso não prepara a criança para o mundo. As habilidades mais
importantes para ser uma criança feliz e um adulto preparado para a vida e,
portanto, também feliz são adquiridas no livre brincar, na interação livre com
outras crianças e com a natureza. Daí nasce a empatia, a inteligência
emocional, a capacidade de tomar decisões, de negociações, de enfrentar
desafios e medos, avaliar riscos, as habilidades corporais, etc. A arte de
brincar quando criança é a arte de saber viver quando adulto.
CE: O senhor também afirma que os pais passaram a colocar seus
filhos em um trono. Quão importante é colocar limites e ter uma relação de
autoridade com as crianças? Por que a superproteção da infância é nociva?
DB: A superproteção é consequência dessa falta de convivência, de
intimidade. Os pais têm medo dos filhos, de dizer não, dos ataques de
birra. Mas os pais que superprotegem impedem que a criança experimente a vida e
aprenda com as experiências negativas e sabemos muito bem a importância de
errar, de aprender com as frustrações, de entender que o mundo não existe para
nos servir, de ter que achar nosso lugar no mundo e saber que isso envolve um
processo de sofrimento, de não atendimento das nossas expectativas. Privando a
criança das frustrações próprias da infância como ralar um joelho, não
conseguir fazer um dever de casa, brigar com os amigos, não ganhar um brinquedo
induzimos a formação de crianças narcisistas e com muita dificuldade de lidar
com qualquer condição negativa. No futuro, serão adultos mais egoístas, com
menos empatia e, provavelmente, infelizes. Os pais não devem se interpor entre
os filhos e o mundo. É importante dizer aqui que isso é uma análise das
condições sociais da infância, não uma análise para culpabilizar as famílias e
que muitos desses “pecados” em pequena dose não fazem mal algum. A criança pode
comer um docinho de vez em quando, só não pode comer todo dia. Uma criança que
vai uma vez por mês no shopping não vai se tornar uma consumista frenética e
assim por diante.
CE: O senhor diz que a medicalização da infância é o pior dos
pecados que cometemos hoje contra a infância. Por que e como evitá-la?
DB: Todos esses fatores negativos que elenquei acima tornam as crianças
sintomáticas. Elas começam a engordar, dormir mal, ficar birrentas, rebeldes,
não prestar atenção, não assimilar o conteúdo escolar, ficar melancólicas,
estressadas, mimadas. E, ao invés de tentar entender da onde vêm esses
sintomas, analisar essas condições sociais da infância, temos preferido mais
uma agressão à infância que é a medicalização. Nos Estados Unidos, 15% de todos
os alunos do Ensino Médio estão tomando remédios psiquiátricos, isto é, um em
cada seis. E como evitar a medicalização? No particular, pensando no que está
acontecendo com nosso filho e, como sociedade, no que está acontecendo com a
infância. Uma vez que há uma criança sintomática, existem muitas formas de
ajudá-la que não envolvem remédios. Pode-se rever o convívio daquela criança
com a família, reduzir o stress que ela é submetida, aumentar o tempo dela ao
ar livre, buscar terapias, além de exigir políticas públicas que ajudem nesse
sentido.
CE: O senhor propõe como solução mudar nossa relação com o tempo e
o espaço. De que maneira? É possível falar de ocupação do espaço público com
cidades cada vez mais violentas?
DB: Proponho que pelo menos 10% do nosso tempo seja dedicado aos
nossos filhos. Passar uma hora, uma hora e meia convivendo por dia. Tomar o
café da manhã juntos, contar uma história antes de dormir são momentos que
geram intimidade, afeto, capacidade de educar. A segunda dimensão é mudar a
relação com o espaço. Temos uma série de evidências mostrando como o contato
com a natureza traz benefícios cognitivos, psíquicos, físicos, para o presente
e para o futuro. A natureza melhora a imunidade, favorece a atenção, traz mais
felicidade, melhora a memória, a capacidade de absorção de coisas que são
ensinadas, favorece a empatia, a disposição física, reduz a obesidade e a
insônia. Neste contexto, deve-se buscar o livre brincar. A criança deve
brincar livremente com outras crianças, criar jogos, subir em árvore, correr,
enfim, participar dessa festa que é a infância. As famílias podem favorecer
esse contato, mas, é claro, também precisamos exigir de nossos governantes que
haja espaço público para ocupar e que ele seja seguro, além de políticas
públicas que nos permitam explorar espaços naturais e conviver. É minha
esperança para que possamos ter cidades melhores e cidades melhores implicam em
pessoas mais felizes.
http://www.cartaeducacao.com.br/entrevistas/os-pais-tem-medo-dos-filhos-de-dizer-nao/
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