Se fosse necessário reduzir a uma palavra as diretrizes e práticas que dão corpo à ovacionada educação finlandesa, essa com certeza seria liberdade.
A autonomia permeia desde o currículo até o trabalho do professor, que
pode decidir por sua conta como avaliar os alunos ou que métodos e
materiais usar em sala de aula. Por trás dessa concepção, está a ideia
de que ninguém melhor que o professor para conhecer os pontos fortes e
fracos de sua turma e melhor orientá-la.
Tamanha confiança no trabalho docente explica também a alta
atratividade da carreira. Na Finlândia, tornar-se professor é um
objetivo almejado por muitos e conquistado apenas pelos melhores: apenas
10% dos candidatos são aceitos nos cursos de formação de professores
das universidades.
Diretora
das Relações Internacionais do Ministério da Educação e Cultura, Jaana
Palojärvi falou a Carta Educação sobre os princípios norteadores do
sistema educacional finlandês, alertando para a tendência de
confundir-se avaliação com resultado: “A ideia de avaliar não é medir
quem vai melhor nos testes, mas identificar quem precisa de apoio. Nós
trabalhamos muito para nos livrar do estigma social de uma educação
corretiva”, conta.
A
seguir, a entrevista da revista Carta Educação com a diretora das
Relações Internacionais do Ministério da Educação e Cultura da
Finlândia, Jaana Palojarvi:
Carta Educação: Como
funciona o sistema educacional na Finlândia? Como as diretrizes do
Ministério da Educação são colocadas em prática pelos professores e
escolas?
JP: De
forma geral, o sistema de educação finlandês é bastante
descentralizado. No âmbito governamental, existem duas grandes
autoridades: o Ministério da Educação e o Conselho Nacional de Educação
(órgão abaixo do Ministério e de sigla NBE). O Ministério é responsável,
basicamente, pela preparação da legislação, pelas diretrizes políticas e
pelo orçamento educacional. A NBE é responsável por determinar a base
curricular nacional e pelo desenvolvimento geral do sistema educacional.
Os
municípios, por sua vez, são responsáveis por fornecer as escolas e
também por financiar, em parte, a educação primária e secundária. A base
curricular é complementada pelas escolas, professores e diretores. Os
professores têm muita liberdade: podem escolher os métodos e materiais
utilizados em salas de aula e também se encarregam da avaliação dos
alunos. Currículos e formação docente homogênea são, provavelmente, as
principais ferramentas
para integrar professores às diretrizes nacionais.
CE: A senhora diria que parte da motivação dos professores vêm da liberdade que eles
possuem no processo de ensino e aprendizagem conduzido em sala de aula?
JP: Com certeza. Os professores na Finlândia gostam de seu trabalho. Sua satisfação está
entre as mais altas do mundo. Por exemplo, de acordo com a pesquisa OECD TALIS
(Teaching and Learning International Survey), 91% dos professores finlandeses dizem que
gostam
de seus empregos e 95% estão satisfeitos com o que desempenham em sala
de aula. Em acréscimo ao que foi dito na minha primeira resposta, não
temos avaliações nacionais padronizadas em nossa Educação Básica. Então,
nossos professores não estão vinculados a preparar alunos para provas,
eles podem se concentrar no processo de aprendizagem e aplicar seus
próprios
métodos para as necessidades dos alunos naquela sala específica.
CE: Além
de liberdade, quais outros fatores a senhora apontaria como
responsáveis pelo sucesso dos professores na Finlândia? Como fazer com
que os melhores alunos queiram seguir a carreira docente? Bons salários?
JP: A
carreira docente é muito popular na Finlândia, e apenas 10% dos
candidatos são aceitos nos cursos de formação de professores das
universidades. Todos os professores na Finlândia precisam ter mestrado.
Salários não são estratégias de atração – os salários dos professores
estão dentro de uma média salarial acadêmica, não necessariamente altos
nem baixos. Mas os professores são muito respeitados na Finlândia e têm
alto status social.
Jaana Palojärvi: “A carreira docente é muito popular na Finlândia, e
apenas 10% dos candidatos são aceitos”
CE: Em sua opinião, qual é a etapa mais delicada da educação?
JP: Tudo começa na primeira infância. Além de ser o momento que dá fundação para os
anos futuros, se formos capazes de identificar as dificuldades de aprendizagem nesse estágio
precoce
é possível intervir antes que os problemas cresçam. E não podemos
esquecer da importância da motivação e da criatividade. O amor por
aprender é criado nos primeiros anos
de vida. Na Finlândia, não esperamos que as crianças sejam capazes de ler e escrever antes
de
começarem a ir para a escola, aos 7 anos. A educação na primeira
infância e pré-primária é desenvolvida por meio de competências de
aprendizagem e habilidades sociais como trabalhar em grupos,
expressar-se, ter boas maneiras, hábitos saudáveis, etc. Apoiar a
criatividade, por exemplo, por meio das artes e dos exercícios físicos é
importante também.
CE: Em
visita ao Brasil, a senhora falou sobre a necessidade de acolher os
alunos que se encontram desestimulados ao invés de puni-los.
JP: Cada criança é talentosa de sua própria maneira. Alguns são melhores em artes e
esportes,
outros em matérias mais acadêmicas. Sentir que você é bom em algo é
muito importante. Na Finlândia, a avaliação dos alunos é por princípio
encorajadora. A ideia de avaliar não é medir
quem vai melhor nos testes, mas identificar quem precisa de apoio. Nós trabalhamos muito
para
nos livrar do estigma social de uma educação corretiva. Ajuda em tempo
parcial é muito comum nas escolas finlandesas e muitas crianças estão
recebendo apoio extra para suas dificuldades de aprendizagem.
CE: Como surgiu a proposta do chamado phenomenon-based learning (aprendizagem
baseada em fenômenos, em tradução livre) e como funciona na prática?
JP: Ele
não é de fato novo nas escolas finlandesas, mas nós o tornamos
compulsório no novo currículo. Toda escola na Finlândia tem que ter pelo
menos um curso anual com a abordagem.
O que significa phenomenon-based learning? A sala escolhe livremente um fenômeno, pode
ser
a mudança climática, a bacia hidrográfica do Amazonas, a crise dos refugiados na Europa.
Este fenômeno é explorado então pela perspectiva de diferentes disciplinas. Por exemplo, no
caso
do Amazonas, pode ser por meio da Biologia, Geografia, Matemática
(quanta a floresta cresceu/diminui, medir o fluxo de água), História,
Artes (pintar as paisagens), etc. A ideia é
quebrar as barreiras
tradicionais entre as disciplinas e aumentar as habilidades analíticas
dos alunos. E, é claro, faz com que os professores trabalhem em
conjunto, buscado interfaces no planejamento das aulas.
CE: Apesar das avaliações não serem o foco do sistema finlandês, o país sempre ocupa uma
boa posição no ranking do Pisa. A quais fatores a senhora atribuiria esse bom desempenho?
JP: É muito difícil comparar o sistema finlandês aos modelos asiáticos, por exemplo – não
há
uma receita padrão para um bom desempenho. Definitivamente, a resposta não é
simplesmente maior destinação financeira para a educação. No nosso caso, eu diria que
fomos capazes de
criar um “pacote” que se encaixa a nossa cultura. O nosso sistema de ensino teve também
tempo suficiente para amadurecer – embora tenhamos desenvolvido mais nosso sistema
durante as últimas décadas, não mudamos radicalmente a estrutura e políticas básicas
desde nossa grande reforma nos anos 70. Professores bem-formados com currículo flexível e
liberdade para fazer escolhas em suas escolas/salas de aula, todos esses fatores são parte
do pacote.
CE: A sociedade finlandesa valoriza muito a educação. Como começou esse processo
histórico?
JP: Educação
tem sido um importante caminho para a ascensão social, em especial para
a maioria falante da língua finlandesa, que na nossa história, é
formada principalmente por agricultores e camponeses, que não fazem
parte de uma classe dominante. A educação em língua finlandesa
desempenhou também um papel importante na construção da identidade
nacional no século 19, quando a Finlândia ainda era parte do Império
Russo. Ainda hoje, entendemos que a capacidade humana e know-how são os
principais ativos da competitividade finlandesa. Nós temos escassos
recursos naturais, por isso, temos de fazer o melhor uso possível do que
temos: 5,5 milhões de cérebros humanos. Não é muito, mas foi o
suficiente
para nos manter no alto dos rankings de competitividade mundiais.
CE: Pensando na estrutura física das escolas, como móveis e tecnologias podem influenciar o processo de aprendizagem?
JP: Muito.
O espaço físico tem impacto na aprendizagem, na interação e na
criatividade. Dentro da escola, não é necessário sentar em fileiras ou
em carteiras tradicionais. De fato, não é necessário sequer sentar-se
dentro de uma sala. Aulas podem ser dadas no ambiente externo, por
exemplo, com Biologia isso pode ocorrer muito facilmente. A tecnologia
pode nos ajudar de muitas maneiras, mas precisamos de professores
capazes de fazer uso disso
pedagogicamente. Hardwares sozinhos não promovem a aprendizagem. Games educativos
são bons exemplos, especialmente esses desenvolvidos por pesquisadores em Pedagogia. A aprendizagem também pode ser divertida.
CE: A
Finlândia tem recebido cada vez mais refugiados. Quantos imigrantes o
país recebeu no último ano? Como a educação e a sociedade finlandesa
estão se preparando para isso?
JP: Apenas durante o último inverno, nós recebemos 35 000 refugiados. Se relacionarmos
esse quadro à nossa população, veremos que somos o 4° maior país receptor de refugiados
na Europa. Esse é um desafio para todo o sistema educacional, não apenas para as escolas,
mas também para a educação de adultos. Tentamos acomodar as crianças nas escolas o
mais
cedo possível. Com os adultos, estamos tentando identificar
competências e a formação/educação que eles já têm e construir sobre
isso. Se formos bem-sucedidos, isso poderia ser a longo prazo uma bênção
para a Finlândia. A nossa população está envelhecendo muito rapidamente
e precisamos de força de trabalho para fornecer a um número crescente
de aposentados. A taxa de natalidade é muito baixa na Finlândia, assim a
imigração poderia ser
muito valiosa para nós.
http://www.cartaeducacao.com.br/entrevistas/o-que-e-que-a-finlandia-tem/