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4.30.2024

Entre o Nascer e a Morte, a Eutanásia

“Se uma pessoa, os seus médicos, os seus familiares convergem, todos, em considerar justo e sereno um modo de morrer, eu acho que todos devemos nos interrogar se não é melhor aceitar a possibilidade de que, diante de uma dor irremediável, alguém prefira escolher, por conta própria”, Carlo Rovelli

...apresentava a alternativa entre uma morte “em um frio leito de hospital”, “obscura, trêmula e repleta de tabus”, ou uma morte na própria casa, escolhida e vivida serenamente, Carlo Rovelli

por  Carlo Rovelli* no Corriere della Sera e IHU Unissinos – Sociedade e Cada um é Responsável por sua Vida e sua Morte

Foto na internet

“Se uma pessoa, os seus médicos, os seus familiares convergem, todos, em considerar justo e sereno um modo de morrer, eu acho que todos devemos nos interrogar se não é melhor aceitar a possibilidade de que, diante de uma dor irremediável, alguém prefira escolher, por conta própria.

Fico contente que se recomece a falar de eutanásia (consiste em provocar a morte de uma pessoa antes do previsto pela evolução natural da doença) e suicídio assistido (é o suicídio perpetrado com a ajuda de outra pessoa) . Acolho o convite do presidente da Câmara na Itália, para o debate sobre esse assunto. Eu o abordei neste jornal há alguns meses, contando sobre o suicídio assistido de uma amiga, na Bélgica. Eu perguntava por que não podemos ter na Itália a mesma possibilidade que existe em outros países civilizados como Holanda, Bélgica e Canadá, de escolher serenamente o modo de morrer quando o sofrimento é grave e irremediável.

Então, o jornal L’Osservatore Romano me respondeu, apresentando argumentos contrários. Considero que o respeito pelas opiniões diferentes é o fundamento da democracia e é particularmente importante sobre um tema delicado como esse, e eu gostaria de apresentar aqui, serenamente, algumas considerações nesse espírito.

A primeira diz respeito às recentes declarações de alguns representantes do mundo médico, que pedem para não serem obrigados a assistir uma pessoa que quer terminar a sua vida. Surpreendeu-me a frase de um médico, relatada neste jornal, que dizia: “fala-se da liberdade do paciente, mas e a liberdade do médico?”. Parece-me claro que a liberdade do médico pode e deve ser respeitada.

Na Bélgica, a minha amiga tinha uma doença incurável e sofria. Ela pediu ajuda ao próprio médico que a tratava para terminar a sua vida. O médico respondeu que, por motivos ligados às suas convicções morais, ele não faria isso. Seguindo a lei do país, ele, então, direcionou a sua paciente para um colega que não tinha tais impedimentos, que a ajudou no suicídio assistido. Isso está previsto pela lei da Bélgica, salvaguardando a liberdade tanto do paciente quanto do médico. Parece uma solução civilizada.

Não devemos impor uns aos outros as nossas convicções religiosas ou morais; devemos respeitar as convicções de cada um e ter leis que permitam isso e limitem a nossa liberdade, somente se a nossa liberdade pode prejudicar os outros.

Ao responder ao meu artigo, o L’Osservatore Romano apresentava a alternativa entre uma morte “em um frio leito de hospital”, “obscura, trêmula e repleta de tabus”, ou uma morte na própria casa, escolhida e vivida serenamente. Eu concordo. O suicídio assistido da minha amiga aconteceu em casa, serenamente. Ela estava cercada pelos seus entes queridos. Era de manhã, e ela quis passar o último momento da sua vida com a janela aberta, ouvindo o canto dos pássaros, entre o afeto dos seus entes queridos.

Todos nós teremos que enfrentar o último dia da nossa vida. Eu espero intensamente que o meu possa ser em uma situação de serenidade e de afeto como foi o dela. Os médicos sabem que existem condições que levam a sofrimentos extremos e sem remédio, e a uma degradação e a uma brutalização sem retorno. Alguns de nós querem enfrentar essa degradação mesmo assim. Eu os respeito. Outros preferem não fazer isso. Eu acredito que eles merecem um respeito igual.

L’Osservatore Romano me objeta que, se a razão da escolha de morrer for um sofrimento extremo e incurável, a resposta é que hoje existem “cuidados paliativos” que resolvem o problema. Seria bom se tais tratamentos fossem suficientes, mas infelizmente não são. Existem a morfina e fármacos similares, que aliviam a dor, mas não são suficientes. Isso leva a uma consideração delicada. Aumentar fortemente a dose de fármacos como a morfina às vezes é possível, mas, em muitas situações, equivale a uma eutanásia, porque acelera o fim da vida. Isso deixa uma área cinzenta, bem conhecida pelos médicos, na qual se joga entre a ambiguidade e a hipocrisia, para um bom propósito, de fazer sem dizer. Não é um modo honesto de gerir algo sagrado e importante como a morte, em minha opinião.

Depois do nascimento, a morte é o passo mais importante da vida. Tratemo-la com o respeito que ela merece, com o rosto aberto e a cabeça erguida, não com não ditos e meias palavras obscuras. Diante de sofrimentos irremediáveis e terríveis, que infelizmente existem, diante de uma degradação física e, sobretudo, espiritual sem retorno, quando o paciente não pede nada mais do que parar de sofrer, e a família está ciente disso, acredito que poucos médicos que tenham um pouco de coração neguem realmente a paz àqueles que a desejam com toda a alma.

Não deixemos que isso ocorra em um obscuro limbo de semi-ilegalidade, que pode levar, depois, a degenerações que chegam até as páginas policiais. Os primeiros beneficiários de uma lei sobre esse assunto são os médicos, que não são mais obrigados a ter que enfrentar não apenas difíceis escolhas humanas, mas também riscos legais absurdos.

O problema do suicídio assistido não é e não deve ser uma questão entre leigos e religiosos. A Bélgica é um país com um forte sentimento católico. Eu conheço médicos católicos praticantes que não hesitam em ajudar uma pessoa a dar o último passo, e médicos não religiosos que são contrários a permitir que isso ocorra.

A lei da Bélgica estabelece com precisão os modos e as condições nas quais um médico pode – se julgar correto, se a sua consciência permitir e se muitas condições forem verificadas – aceitar o pedido de um paciente para ajudá-lo a morrer. Uma dessas condições é que o sofrimento seja grave e irremediável. Outra, é claro, é que o desejo de morrer seja forte, sincero, motivado e genuíno.

Talvez não seja uma lei perfeita. É apenas uma das soluções que países diferentes adotaram. Ainda me parece muito melhor do que a situação italiana, que coloca os médicos na dolorosa posição de ter que escolher se violarão a sua própria humanidade ou a lei.

Porque a verdadeira questão aqui não é liberdade. É a humanidade. Permitir, para aqueles que desejam fortemente, evitar o sofrimento. Isso é humanidade. Aquela mesma humanidade que anima aqueles que se esforçam para aliviar os sofrimentos em tantos outros âmbitos e que anima tantíssimas pessoas, tanto no mundo religioso quanto no das pessoas que não são religiosas.

A morte, observa o L’Osservatore Romano, é sempre difícil. Enfrentamo-la com temores e deixamos naqueles que permanecem as emoções mais duras. Cada um de nós é diferente. Chegamos com sentimentos diferentes à morte dos próprios entes queridos e à própria morte. Certamente, não pretendo dizer aos outros como deveriam se aproximar da morte.

Mas acho que esse respeito deveria ser recíproco. De grandes instituições morais como a Igreja, eu espero palavras de sabedoria que nos sugiram como enfrentar as passagens difíceis, não apelos a proibições que tornam tudo mais difícil para todos. Se uma pessoa, os seus médicos, os seus familiares convergem, todos, em considerar justo e sereno um modo de morrer, eu acho que todos devemos nos interrogar se não é melhor aceitar a possibilidade de que, diante de uma dor irremediável, alguém prefira escolher, por conta própria, o momento, que virá de todos os modos.

Escolher a morte de maneira humana é a forma final de escolher a vida de maneira humana. E a humanidade não está definida nem ditada por uma divindade exterior nem representada por nenhuma religião. Quem crê deveria desejar uma morte feliz como definitiva doação confiada de si à realidade primeira e última, como trânsito à realidade profunda, à realidade fonte, à vida sem origem nem fim. Dizer que não podemos escolher a morte porque não somos donos da vida é uma fraude máxima.

Não somos donos da vida nem da morte, mas somos responsáveis pela vida e, portanto, também pela morte, e aqui não é decisiva a distinção entre quem crê o descrente. Não só podemos, senão que devemos escolher responsavelmente quando e como morrer, sem outro limite que nosso bem-estar e o bem-estar comum, começando pelo das pessoas mais chegadas. E os médicos e as pessoas mais próximas deveriam poder atender a demanda de quem livremente lhes pede, ou de quem livremente teria deixado expressa essa demanda, uma ajuda para bem morrer. É uma exigência do cuidado da vida, e não há outro mandato divino nem outra divindade senão a vida, o cuidado, a bondade e o bem viver.

*Carlo Rovelli, físico italiano, professor da Universidade de Aix-Marseille na França e diretor do grupo de pesquisa em gravidade quântica do físico italiano em Marselha, França.

Tradução: Moisés Sbardelotto

Edição: Mangue do Cachoeira

Publicado no IHU Unissinos: 02/out/2019

Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/593091-o-fim-da-vida-e-uma-questao-de-humanidade-artigo-de-carlo-rovelli