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3.27.2023

Trabalho Escravo: Legislativo, Judiciário e Executivo desprezam Mão-de-Obra humilde brasileira

Resgates como o das vinícolas  gaúchas multiplicam-se e chocam a sociedade. Mas expressam tendências do pós-golpe 2016: desmonte dos direitos; jornadas intermináveis e precarização da vida – tudo em nome de lucros selvagens das empresas brasileiras e estrangeiras

por Henri Acselrad* em Outras Palavras e IHU Unissinos – Sociedade e Desprezo pelo Trabalho Humano

 Foto do IHU Unissinos na internet

Introdução

Após a eleição presidencial de 2018, especulou-se, no Brasil, sobre a eventual contradição, no interior do governo federal então eleito, entre, de um lado, um programa ultra-liberal capitaneado por um economista formado na Escola de Chicago (EUA) e, por outro, um suposto nacionalismo autoritário sustentado por militares que ganharam presença numérica na máquina governamental. Ao longo da gestão governamental do período 2019-2022, foi tornando-se clara a ausência de contradição e mesmo a convergência de forças na promoção articulada do que poderíamos chamar de um trabalho precarizado: forças que pretendiam aprofundar as condições de exploração do trabalho no campo e nas cidades e, também, forças que pressionam territórios indígenas e tradicionais para favorecer a expansão de áreas para a grande agropecuária e a mineração, tanto por empresas brasileiras como estrangeiras.                                    

O que teria unificado estas forças de diferentes origens então instaladas no governo?

O que estes diferentes blocos econômicos e sociais de forças demonstraram ter em comum foi a expectativa de configurar um projeto liberal-autoritário (domínio de bancos, militares, altos funcionários públicos entre outros), voltado para a des-montagem de direitos e a elevação da lucratividade dos negócios, tanto pelo aumento dos ganhos por unidade de trabalho empregada, como pela extensão das áreas exploradas, inclusive pela ocupação de terras públicas.

Constituição Federal 1998 e Leis Trabalhistas Des-cumpridas (laissez-faire)

Por um lado, a pretensão de abandonar a vida política às leis do mercado penetrou as esferas do Estado, justificando medidas in-diferentes à pobreza, ao desen-raizamento social, à dis-criminação racial, à destruição do meio ambiente e da saúde coletiva. Por outro lado, tornou-se explícita a recusa a tudo o que pudesse evocar solidariedade entre pessoas, povos e gerações. 

Aqueles sujeitos que, na retórica neo-liberal, são apresentados como incapazes de competir, por não se terem supostamente mostrado suficientemente empreendedores, são, pelo viés autoritário, dis-criminados e in-feriorizados. Na lógica deste liberalismo autoritário, não se justificaria, para os supostos “perdedores” da ordem competitiva pública, a adoção de políticas de combate à des-igualdade ou de proteção à saúde. A eles restaria aceitar trabalhar nas condições que lhes são ofertadas, desprovidos de direitos e de proteção social, condições nas quais, por uma concepção monolítica e abstrata, o chamado “mercado” se mostraria inclinado a acolhê-los (exploração de pessoas semelhante a escravidão). 

Assim é que, compassivo com relação aos que dizem sofrer a “horrível condição de ser patrão”, imediatamente após sua eleição em 2018, o presidente que encarnou este projeto explicitamente in-igualitário ameaçou os trabalhadores de que, caso não abrissem mão de seus direitos, não obteriam emprego [1].

Neste caldo ideológico, a portaria do Ministério do Trabalho – que, em 2017, tentou, sem sucesso, legalizar o trabalho escravo – não deveria ser entendida em separado do projeto mais amplo de aplicar, ao mercado de trabalho formal, uma reforma trabalhista que tornasse mais estritas as normas disciplinares impostas, não só aos escravizados pela dívida, mas aos trabalhadores em geral. Não por acaso representantes do agronegócio alegaram, na ocasião daquela iniciativa, que “as novas condições políticas” – leia-se, aquelas geradas pelo golpe parlamentar destituinte de 2016 brasileiro – autorizavam a legalização de condições de trabalho até então julgadas degradantes [2].

Nas condições vigentes a partir de então, não se trataria apenas de um retorno às formas tradicionais de imobilização do trabalho – dispositivos de fixação da mão de obra em espaços isolados e de pouca visibilidade pública – mas da emissão de um sinal dis-ciplinador dos trabalhadores em geral, pelas possibilidades abertas de se impor maior penalidade e precarização do trabalho, além da redução dos salários.

Para entendermos a conexão entre as condições de existência do as-salariamento formal e o trabalho em condições análogas à da escravidão, não custa lembrar o economista polonês Michael Kalecki [3] que, nos anos 1940, já havia caracterizado as razões pelas quais o estado de laissez-faire (des-cumprimento das leis brasileiras) é o preferido do empresariado: por meio da retração ou re-localização de seus próprios investimentos, os empresários influenciam o nível (do emprego ou des-emprego) e, consequentemente, induzem os graus de disciplina que esperam obter dos trabalhadores (ou empregados).

Conclusão

Para entender a continuidade de casos de trabalho análogo ao da escravidão, nas vinícolas do Sul, no interior de São Paulo, de Goiás e em Duque de Caxias, no festival de música de São Paulo em março/2023, temos que reconhecer a influência da conjuntura e da correlação de forças sociais que vigorou nos últimos anos. A conjuntura aberta com a eleição de um novo governo em 2022 leva não só à exigência de se fazer cumprir a legislação que regula a contratação de trabalho vindo de fora de uma região (cumprimento da Constituição Federal 1998 e Leis Trabalhistas), mas a de por em pauta a garantia dos direitos de auto-defesa dos trabalhadores em todas as áreas onde o ser humano atua no Brasil.

Notas

[1] - É difícil ser patrão, Folha de SP, 4/12/2018.

[2] - Só temos a comemorar’, diz Blairo sobre regras para fiscalizar trabalho escravo, O Globo, 17/10/2017.

[3] - Michael Kalecki, “Aspectos políticos do pleno emprego”. In: Crescimento e ciclo nas economias capitalistas, Hucitec, São Paulo, 1983 [1944], p. 54-60.

*Henri Acselrad, professor do IPPUR / UFRJ e pesquisador do CNPq

Edição: Blog do Cachoeira

Publicado IHU Unissinos: 27 março 2023

Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/627344-quando-ser-precario-e-quase-ser-escravizado

 

Pequenos agricultores em respeito a natureza


 

A propósito das comunicações falsas que a imprensa vem fazendo contra o Movimento dos Sem Terra, devido a ocorrência de ocupações  legitimas e necessárias, foi compartilhado o artigo da jurista e professora da UFRJ,  Carol Proner

Ocupação não é invasão

por Carol Proner no MST on-line – Sociedade e Comunicações Fake New’s na Imprensa

 Foto na internet, MST_  Brasilia em 2014

Introdução

Para tratar de tema tão difícil e sensível à sociedade, e em homenagem às crianças que vivem em acampamentos e assentamentos por todo o país e que com as famílias de agricultores, buscam em conjunto a terra e por condições dignas de vida e de trabalho (sustento familiar), em homenagem às mulheres do campo e o direito a semear, plantar, colher e produzir, em homenagem aos homens pequenos agricultores do Brasil e sua força de trabalho em prol de uma sociedade livre da miséria e da fome e em direção à agroecologia ou o plantio com respeito a natureza, façamos um trato contra a ignorância e a estupidez nas formas arcaicas de comunicação social e digital quanto ao direito à terra e o plantio de alimentos saudáveis.

 Ocupação não é o mesmo que invasão. A Constituição Federal Brasileira de 1988 define o conceito de uso social da terra e os critérios para que seja legítimo, que não destrua o meio ambiente, que não se faça por meio de trabalho escravo ou parecido e que a terra seja produtiva ou ocupada para o bem coletivo. A ocupação de terras tem sido historicamente a forma pela qual os movimentos de agricultores rurais familiares chamam a atenção para este compromisso de direitos fundamentais e da necessidade, de que a propriedade venha acompanhada de uma função social que beneficie a todos. Confundir os dois conceitos propositalmente é uma forma de negar as ações de distribuição da terra e os legítimos direitos, assim reconhecidos pela Declaração da ONU sobre Direitos dos Agricultores Familiares.

A ocupação pode ser uma forma legítima de ter-se argumentos de negociação e chamar atenção para o descaso com a “reforma agrária” para a agricultura familiar. As ocupações que aconteceram no sul da Bahia no início de 2023 em terras da Suzano, maior empresa de celulose do mundo, trouxe ao conhecimento da sociedade um acordo descumprido desde 2011 entre a empresa e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), termo mediado pelo INCRA (governo federal) e que afeta direitos de 750 famílias que aguardam há 12 anos, pela liberação das terras. Mostrar a realidade que acontece para o caso específico e também para a ativação das instituições de regulamentação fundiária é parte do papel das ocupações na “reforma agrária” brasileira.

Ocupação de terras no Sul da Bahia

As “ocupações” podem ser uma forma legítima de rediscutir o sentido social da terra. Também o caso da Suzano, já em processo de re-negociação, revela aspectos da produtividade da monocultura que devem ser objeto de revisão pela sociedade brasileira e pelos órgãos de controle e financiamento público. É o caso da monocultura do eucalipto, cultivo incrementado com o uso de agrotóxicos (venenos) aplicados inclusive por meio da pulverização aérea (avião), o que gera efeitos indiscriminados de envenenamento da floresta e águas.

Eis a razão pela quais florestas de eucalipto são chamadas de desertos verdes?

Essa foi uma expressão que surgiu no diálogo a respeito da legitimidade das ocupações. Para que o eucalipto prospere, a mata nativa precisa sair do lugar ou ser derruba, acarretando produção de uma só cultura utilizada para desenvolver a indústria moveleira e de celulose. Só a empresa Suzano cultiva 3 milhões de hectares de eucalipto, o que forçosamente acarreta brusca redução da bio-diversidade no território do sul da Bahia. Ao mesmo tempo, a cadeia de fauna e flora fica reduzida a uma única espécie exótica, uma vez que o eucalipto não é arvore nativa brasileira e, para agravar o problema específico do agronegócio associado à indústria de celulose, tanto a forma de cultivo como as substâncias utilizadas para intensificar a produção desgastam o solo e comprometem a recuperação de futuras florestas nativas. Existem soluções para aplacar efeitos nocivos aplicadas por povos tradicionais, saídas da ciência e da tecnologia, mas diante dos efeitos devastadores e da imposição rigida do agronegócio como única saída econômica, as ocupações de luta pela terra cumprem o papel de exclarecer e despertar a reflexão da sociedade, a respeito dos meios e métodos produtivos predominantes, incentivados (por renuncias fiscais ou financiamento de governos estaduais e federal) diante da realidade de 33 milhões de pessoas que passam fome no Brasil.

Em meio ao debate na imprensa, universidades e outros nichos humanos, cresce o entendimento do que seja “reforma agrária agroecológica”, ou sem o uso de venenos (agrotóxicos). Os movimentos pela terra, o MST em particular, têm defendido que a luta histórica pela “reforma agrária” seja substituída pela “reforma agrária agroecológica”, compreendida nas dimensões da produção do alimento saudável e sustentável para toda a sociedade brasileira, isso em contraposição ao agronegócio. O debate inclui, além do acesso à terra como um direito humano, também a produção de alimentos saudáveis e livres de agrotóxicos (venenos), a defesa das formas de vida e trabalho no campo tanto do ser humano, quanto dos animais e vegetais, o papel da mulher camponesa, a forma de organização em cooperativas da agroecologia, a riqueza da (bio)diversidade alimentar (variedades), a soberania alimentar, o combate à fome e tantos outros conceitos e efeitos de um diálogo responsável, consequente e principalmente humano.

O que esperar do temido “abril vermelho”?

É notável a desinformação provocada por vários setores da imprensa e meios especializados, que repercutem intolerância e preconceito contra agricultores familiares e sua sobrevivência. Mesmo involuntariamente, principalmente nas redes digitais, a desinformação estimula promessas de violência, atos potencialmente criminosos cogitados por fazendeiros com armas, uso de armas de fogo por milícias contratadas ilegalmente contra agricultores familiares.

No histórico mês de mobilização pela “reforma agrária”, conhecido como “abril vermelho”, em memória do Massacre de Eldorado dos Carajás, o Movimento dos Sem Terra atualiza as pautas de luta em 2023: repúdio aos agrotóxicos (venenos), fim do desmatamento, oposição à aprovação do novo “código florestal” em trâmite na Câmara dos Deputados e reconstituição dos canais estatais (Incra e outros) para finalmente, viabilizar o assentamento de mais de 100 mil famílias que aguardam pelo acesso à terra no Brasil.

Conhecer o contexto dos enfrentamentos e das ocupações é condição elementar de respeito à busca dos trabalhadores rurais do país por áreas de plantio, além de ser um dever legal e uma oportunidade de estimular a produção de alimentos saudáveis como alternativa ao envenenamento cotidiano ao qual estamos submetidos em nosso país.

*Carol Proner é doutora em direito, jurista e professora da UFRJ, membra da ABJD e do Grupo Prerrogativas.

Edição: Blog do Cachoeira

Publicado no MST: 27 de março de 2023

**SGeral MST:  sgeral1@mst.org.br

Fonte: https://mst.org.br/

 

3.22.2023

Guerra Rússia x Ucrânia: até onde EUA e Europa estão envolvidos neste confronto e a influência chinesa

Os EUA estão envolvidos em uma nova guerra, no território da Ucrânia, sem conseguir definir de forma clara quais são seus objetivos neste conflito, nem têm a menor possibilidade de alcançar uma vitória definitiva no campo de batalha, sem passar por uma guerra direta com a maior potência atômica do planeta

“...o acordo negociado pela China afasta os Estados Unidos do Oriente Médio e anuncia a chegada da influência chinesa sem nenhuma nova guerra, pelo contrário, através de uma diplomacia da paz, que se soma ao Plano de Paz de 12 pontos apresentado pela China aos governos da Rússia e da Ucrânia...”

por José Luís Fiori* no Brasil 24/7 – Sociedade e o G7 em Delírio, com a Perda de Poder e Mercado

 Foto: Kevin Lamarque/Reuters

Introdução

No dia 18 de março de 2023, completam-se 20 anos da invasão anglo-americana do Iraque, que foi feita sem motivo legítimo nem aprovação do Conselho de Segurança da ONU, mas que deixou para trás 300 mil mortos iraquianos e os famosos registros fotográficos das atrocidades cometidas pelos norte-americanos na prisão de Abu Ghraib. E assim mesmo, depois de derrotar e destruir o Iraque, os norte-americanos perderam o controle político do país para o Irã, seu principal competidor e adversário no Oriente Médio. Depois, os Estados Unidos sofreram sucessivos reveses em suas invasões e “guerras sem fim” no Afeganistão, na Líbia, na Síria e no Iêmen, e em sua fracassada tentativa de isolamento e asfixia da economia iraniana. Agora estão envolvidos em uma nova guerra, no território da Ucrânia, sem conseguir definir de forma clara quais são seus objetivos neste conflito, nem têm a menor possibilidade de alcançar uma vitória definitiva no campo de batalha sem passar por uma guerra direta com a maior potência atômica do planeta.

Isolamento Previsível dos EUA na Geopolítica Global

Ainda assim, há muitos analistas que avaliam que os Estados Unidos obtiveram uma vitória estratégica na Ucrânia ao eliminar arestas e estreitar seus laços militares com a União Europeia, com os “povos de língua inglesa” e com alguns aliados asiáticos tradicionais. Não se tomou em conta, entretanto, que o “bloco” formado pelos EUA e seus satélites e protetorados militares sempre existiu, desde o fim da Segunda Guerra, e que nenhum desses países – a começar pela Alemanha, Itália e Japão – deixou de ser ocupado  por bases americanas e transformado em “protetorado atômico” dos Estados Unidos. Não se percebeu, também, que o aumento da convergência militar desses países, liderados pelo G7 (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos), vem se transformando na contra-face do seu isolamento cada vez maior com relação ao resto do mundo eurasiano (Europa/Ásia), africano e latino-americano. Basta observar o apoio cada vez menor que esses países vêm obtendo na sua tentativa de cercar, isolar e asfixiar  economicamente seus inimigos, notadamente o Irã, a Rússia, e mesmo a China, do ponto  de vista da guerra comercial e tecnológica a que vem sendo submetida desde o governo  de Donald Trump.

G7 perde poder global, depois de 300 anos de domínio

Não é de estranhar, portanto, o aumento da agressividade retórica, diplomática e ideológica dos EUA e de seus satélites, que vêm adotando uma postura cada vez mais militarista, mesmo sem avaliar as consequências últimas desta sua reação quase irracional à perda do poder global exercido nos últimos 300 anos. Como se os países do “Atlântico Norte” e seus pequenos satélites asiáticos estivessem perdendo o rumo e o próprio sentido do absurdo de algumas de suas iniciativas absolutamente destemperadas e quase ridículas, do ponto de vista da sua disputa global.

A começar pela visita a Taiwan, a presidenta do Congresso Americano, Nancy Pelosi, feita de forma absolutamente temperamental e juvenil, sem levar minimamente em conta suas consequências de médio e longo prazo, que acabaram consolidando e cristalizando a reivindicação e o poder da China sobre sua “ilha rebelde”, criada com apoio  militar americano, em 1946. Depois, acumulam-se os discursos destemperados das autoridades americanas e europeias absolutamente “possuídas” por uma “fobia russa” semelhante a várias outras que já tiveram no passado, como se a Europa não conseguisse  se manter unida sem a demonização de um inimigo externo, como já foram os islâmicos,  os comunistas e os judeus. Para não falar de episódios quase ridículos, como foi o caso delirante da “guerra dos balões” iniciada e logo encerrada por um governo Biden completamente desorientado. Ou a “ordem de prisão” decretada contra o presidente da Rússia por uma instituição criada pelos europeus e inteiramente desmoralizada e des-legitimizada pelos próprios norte-americanos. Ou ainda, e de forma mais irresponsável, o envio de um drone militar para a zona de guerra russa, na Crimeia, terminando com a queda e a perda inconsequente do equipamento derrubado pelos aviões russos, sem que houvesse nenhum tipo de resposta ou continuidade, caracterizando uma iniciativa  inteiramente impensada da parte do governo americano. Tudo isto foi acompanhado de uma linguagem cada vez mais agressiva e destemperada, que já começou a ser utilizada pelos dois “homens-bomba” que comandaram a política externa de Donald Trump, Mike  Pompeo e John Bolton, a mesma que segue sendo utilizada pelos dois “missionários liberais internacionalistas (sic)” que comandam a política externa do governo de Joe Biden, Anthony Blinken e Jack Sullivan – com a diferença fundamental que os dois democratas veem o  mundo como uma luta entre o “bem” e o “mal”, e se consideram evidentemente  representantes do “bem”, com a missão de converter o mundo à sua tábua de valores.

Erros Estratégicos de Longo Prazo do G7

O problema é que por trás desses “desatinos” mais visíveis vem se somando uma quantidade de erros de cálculo e de concepção estratégica de mais longo prazo, que estão conduzindo os Estados Unidos e seus satélites, progressivamente, para um “beco sem saída”.

O primeiro deles, mais ligado diretamente ao início da guerra, foi negar-se a negociar de forma discreta e diplomática a neutralização da Ucrânia e a construção de um novo mapa de segurança e equilíbrio estratégico de longo prazo na Europa.

E o segundo erro, que foi uma consequência imediata do primeiro, foi boicotar as negociações de paz que estavam em curso entre a Rússia e a Ucrânia, logo na primeira semana da guerra, apostando no sucesso da guerra econômica que já estava planejada e que seria desencadeada imediatamente pelos países do G7 contra a Rússia.

Duas decisões cruciais, e dois erros de cálculo estratégico – como a história demonstrará – que foram orientados pela mesma visão estratégica dos “missionários de Biden (sic)” que desde o início do governo democrata, vêm tentando dividir e polarizar o mundo, forçando uma nova Guerra Fria entre  países democráticos e países autocráticos, definidos de forma “autocrática” e unilateral pelos próprios Estados Unidos.

Essas duas decisões foram sustentadas na mesma certeza dos americanos e seus satélites de que poderiam impor uma derrota imediata e humilhante à Rússia, com o estrangulamento de sua economia nacional, através de um pacote de sanções econômicas de dimensões desconhecidas, envolvendo o bloqueio europeu do comércio do petróleo e do gás russos, o congelamento e expropriação das reservas e ativos russos depositados nos bancos do G7, e finalmente, através da suspensão de todas as relações financeiras da  economia russa com esses mesmos países e todos os demais que viessem a apoiar as  sanções globais comandadas por norte-americanos e europeus. Nos dois casos, entretanto, parece que os Estados Unidos e seus satélites erraram redondamente.

ONU perde a cada ano poder e influência global

Primeiro, porque a maioria dos Estados do sistema internacional vem se mostrando extremamente reticente a entrar em uma nova Guerra Fria, e vem resistindo terminantemente a tomar partido no conflito da Ucrânia, negando-se a apoiar as sanções econômicas aplicadas por americanos e europeus contra a Rússia. Dos 194 países com assento nas Nações Unidas, só 47 apoiaram essas sanções, sendo muitos absolutamente insignificantes, como é o caso de Andorra, Mônaco, Islândia, Liechtenstein, Micronésia, San Marino, ou Montenegro do Norte, entre outros.

Em segundo lugar, pesquisas recentes realizadas por universidades europeias e americanas vêm indicando que a maioria da população mundial que vive fora dos países que compõem a coalizão minoritária dos  Estados Unidos e seus satélites europeus e asiáticos, não veem o mundo como eles, não  apoiam a guerra nem as sanções econômicas aplicadas à Rússia, não se consideram  menos democráticos do que os americanos e europeus, e consideram que a “coalizão  ocidental” está envolvida no conflito da Ucrânia em defesa de seus interesses geo-políticos, e não em defesa de valores ou direitos humanos supostamente universais.

Sanções econômicas do G7 afundam a economia no Ocidente

Mas o que é pior, do ponto de vista euro-americano, é que depois desses erros iniciais de avaliação, a “devastadora” guerra econômica desencadeada contra a Rússia não teve sucesso, ou pelo menos não logrou seus objetivos. Não conseguiu estrangular de forma instantânea a capacidade financeira dos russos de sustentarem sua ofensiva na Ucrânia, como tampouco teve os impactos esperados sobre o funcionamento interno da economia russa, que conseguiu driblar o cerco comercial e financeiro abrindo novos mercados, re-desenhando sua estratégia econômica nacional e alcançando, já em 2023,  segundo o FMI, um crescimento econômico positivo. Neste sentido, erraram uma vez mais os estrategos americanos e europeus, porque suas sanções financeiras e seu bloqueio comercial da Rússia acabaram tendo um efeito absolutamente destrutivo sobre as economias europeias, que enfrentam uma acelerada des-industrialização – como é o caso da Alemanha – ou uma des-integração social e política – como está se assistindo na França e na própria Inglaterra, cujas previsões indicam que até 2030 esta já poderá ter se transformado num país com renda per capita inferior à da Polônia, que foi até hoje uma  fornecedora de mão de obra barata da economia inglesa. Em parte por conta do Brexit, é verdade, em parte por conta do seu envolvimento cada vez mais agressivo na escalada europeia contra a Rússia. Crises e desintegrações econômicas e sociais causadas, em última instância, pelas sanções econômicas que cortaram a energia barata da Europa, diminuíram a competitividade de suas economias e atingiram em cheio o salário da população, através da inflação e do aumento dos custos de energia e alimentação. Vasos comunicantes que estão atuando também na atual crise financeira dos bancos americanos e europeus, premidos pelo aumento da inflação e da taxa de juros, e ainda pela perda de credibilidade de seus títulos públicos, depois do congelamento e expropriação das reservas e aplicações russas.

Conclusão

Resumindo: de todos os pontos de vista que se olhe a evolução da conjuntura internacional, o que se vê é que o bloco formado pelos Estados Unidos e seus satélites está ficando cada vez mais ilhado, mais agressivo, e mais sem saída. O governo americano de Joe Biden não consegue definir com claridade qual é o objetivo da sua participação cada vez mais direta na Guerra da Ucrânia. Até onde querem chegar? Quais são suas expectativas e possibilidades mais além da propaganda? E o mesmo se pode dizer com relação à política cada vez mais agressiva dos norte-americanos com relação à China: quais seus objetivos e até onde estão dispostos a chegar na sua disputa pelo Mar do Sul da China e na sua defesa de Taiwan, enfrentando, neste caso, divisões e fraturas dentro  do próprio bloco euro-americano? Deve-se somar-se a essas incertezas e à perda progressiva de rumo da política externa americana, o aumento da divisão e da polarização cada vez mais agressiva da própria política interna dos Estados Unidos, que não permite nenhum tipo de previsão de longo prazo que não seja a agressividade conjunta dos dois partidos políticos americanos contra a China.

Ao mesmo tempo, é exatamente neste ponto que os norte-americanos vêm sofrendo seus maiores reveses, e demonstrando maior incompreensão dos acontecimentos, restando-lhe um apelo cada vez mais explícito ao seu poder militar. São quase só ameaças, anúncio de novos armamentos, aumento expressivo do orçamento militar de 2023, cheque em branco para a guerra da Ucrânia e reativação de velhas alianças, como no caso da inciativa do acordo AUKUS, com Inglaterra e Austrália, membros incondicionais da velha “família colonial de língua inglesa”. Tal obsessão militarista pode ser a causa de os Estados Unidos não terem conseguido antecipar ou prever o que foi com certeza sua maior derrota diplomática desde a “crise dos reféns” da embaixada norte-americana de Teerã, em 1979:  o anúncio, na cidade de Pequim, no dia 15 de março de 2023, do acordo mediado pela China de pacificação das relações entre o Irã e a Arábia Saudita, e do restabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países em dois meses mais, junto com seu  compromisso mútuo de defesa do princípio da soberania nacional.

Na década de 1950, os Estados Unidos construíram seu esquema de poder no Oriente Médio apoiado no Irã, na Arábia Saudita e em Israel. Em 1979, os norte-americanos perderam o Irã, e agora estão perdendo a Arábia Saudita. Ou seja, o acordo negociado pela China afasta os Estados Unidos do Oriente Médio e anuncia a chegada da influência chinesa sem nenhuma nova guerra, pelo contrário, através de uma diplomacia da paz, que se soma ao Plano de Paz de 12 pontos apresentado pela China aos governos da Rússia e da Ucrânia, e também aos governos dos demais países envolvidos diretamente nessa guerra, a começar pelos Estados Unidos. Iniciativas diplomáticas da China na Ásia, Europa, África e América Latina, que anteciparam o anúncio pelo presidente chinês, Xi Jinping, de sua Global Civilization Initiative, o mais ambicioso projeto de pacificação universal jamais apresentado aos povos do mundo por uma grande potência e uma grande civilização.

 *José Luís Fioriprofessor do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Sobre a Guerra (Vozes, 2018)

Publicado no Brasil 24/7:  22 de março de 2023

Fontehttps://www.brasil247.com/blog/erros-e-desatinos-estrategicos-de-uma-potencia-que-perdeu-o-prumo

3.15.2023

Brasil: Governo Federal terá que intervir na alimentação para preservar vidas

Salgadinho é mais barato que fruta': subsidiados no Brasil, ultra-processados causam 57 mil mortes no país, diz estudo

“... se os brasileiros reduzissem o consumo desses alimentos ultra-processados em 20%, poderiam ter sido evitadas 12 mil mortes. Caso a redução fosse de 50%, 29 mil vidas poderiam ser poupadas”

por Felipe Souza* da BBC News Brasil – Sociedade e Pressão da Indústria Alimentícia no Brasil

Subsidiados no Brasil, estudo aponta que ultraprocessados causam 57 mil mortes no país, imagem Agência Brasil

Os alimentos ultra-processados são responsáveis por dezenas de milhares de mortes por ano no Brasil, aponta um estudo feito em parceria entre a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade de São Paulo (USP) e Universidad de Santiago de Chile. Em um mundo onde as pessoas têm cada vez menos tempo para se alimentar, pesquisadores e médicos ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que esse é um problema que está longe de ser resolvido. Para eles, a atuação do poder público, hoje falha, é a principal saída para melhorar a qualidade da alimentação dos brasileiros.

O país acumula, na visão dos especialistas, um histórico de prioridades erradas: concede uma série de subsídios e incentivos fiscais que barateiam e tornam mais acessíveis os produtos industrializados — como salsicha, macarrão instantâneo e refrigerante, por exemplo — enquanto dá pouco apoio à produção de frutas e legumes, principalmente de pequenos produtores rurais.

O estudo que avaliou os impactos sobre a saúde dos alimentos ultra-processados — que são os produtos que passaram por maior processamento industrial e contêm substâncias sintetizadas em laboratório como os corantes, conservantes e aromatizantes — apontou que ele foram responsáveis pela morte de 57 mil pessoas no Brasil, com base em dados de 2019, os mais recentes disponíveis sobre o tema. Para efeito de comparação, no mesmo ano, 45,5 mil pessoas foram assassinadas no Brasil, segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde.

De acordo com o Ministério da Saúde, as Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNTs), que são permanentes, geralmente irreversíveis e necessitam de um longo período de acompanhamento e reabilitação, estão diretamente ligadas aos ultra-processados. Essas doenças, como câncer, problemas cardíacos, respiratórios e renais e hipertensão, foram incluídas na lista da Organização Mundial da Saúde (OMS) na lista das dez principais causas de morte no mundo. De acordo com o Ministério da Saúde, elas respondem por mais de 70% das mortes.

Um projeto de lei que prevê a taxação da venda de refrigerantes em até 20% tramita Senado. O texto já foi aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais e agora segue à Comissão de Assuntos Econômicos.

O projeto de lei prevê que 80% do dinheiro arrecadado sejam destinados a despesas com ações e serviços públicos de saúde, seguindo diretrizes do SUS. Esse dinheiro seria recolhido ao Tesouro Nacional e repassado diretamente ao Fundo Nacional de Saúde.Os outros 20% restantes serviriam para custear programas e projetos esportivos e para-desportivos.

A pesquisa sobre os ultra-processados aponta que mais de 10% das 540 mil mortes registradas no país em 2019 são atribuíveis ao consumo destes produtos. Segundo os pesquisadores, se os brasileiros reduzissem o consumo desses alimentos ultra-processados em 20%, poderiam ter sido evitadas 12 mil mortes. Caso a redução fosse de 50%, 29 mil vidas poderiam ser poupadas.

Pediatra e nutróloga do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren), Maria Paula de Albuquerque afirma que, no Brasil, a indústria de alimentos ultra-processados é pouco cobrada pelos eventuais danos causados à saúde dos consumidores.

"Não é cobrada pelo diabetes, obesidade, hipertensão e vários tipos de câncer que causa na população. Pelo contrário, tem incentivo fiscal. Existe a falácia de que se a pessoa não quiser comer alimentos ultra-processados, ela não come. Atualmente, o agricultor familiar não tem o mesmo apoio e incentivo que a indústria. O alimento fresco está mais caro que o ultra-processado", afirma à BBC News Brasil.

O estudo se baseou em dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com informações de 2017 e 2018 sobre a participação dos alimentos ultra-processados no total de calorias ingeridas pelos brasileiros, além de dados demográficos e de mortalidade de 2019 e um estudo que revisou pesquisas sobre a associação entre a ingestão desses alimentos e o risco de mortalidade para chegar aos efeitos associados ao seu consumo.

Os ultra-processados são geralmente encontrados em embalagens e vendidos para o consumo ou preparo rápido, como biscoitos recheados, salgadinhos, salsichas e macarrão instantâneo

Como mudar a atual situação?

Maria Paula de Albuquerque integrou o Grupo de Trabalho de Saúde e Nutrição da Agenda 227, que produziu 148 propostas de políticas públicas a serem implementadas no próximo governo federal, e diz que são necessários incentivos fiscais e a implementação de políticas públicas que priorizem a produção e publicidade de alimentos nutritivos.

"Observamos um aumento do excesso de peso não somente nos adultos, mas também em crianças, já na pré-escola. Para enfrentar um problema tão complexo, precisamos desde o início trazer o tema da nutrição para dentro das escolas e dos conteúdos pedagógicos por meio de educação alimentar e nutricional. É preciso educar as crianças e seus familiares e capacitar profissionais de educação e saúde", diz a nutróloga.

A pesquisa mais recente sobre obesidade do IBGE, de 2019, revelou que o número de adultos com mais de 20 anos com excesso de peso (Índice de Massa Corporal - IMC - maior que 25) mais do que dobrou. Subiu de 12,2% em 2003 para 26,8% em 2019.

"Hoje, vivemos em um ambiente que favorece a obesidade. Quase tudo conspira para que você coma alimentos não saudáveis. Está na hora dos alimentos ultra-processados serem abordados como o tabaco, porque esses produtos levam ao vício", afirma.

Refrigerantes e cerveja estão entre os dez alimentos mais consumidos pelos brasileiros, imagem Reuters

Um estudo feito por pesquisadores da Universidade Yale, nos Estados Unidos, revelou que os alimentos se tornam viciantes principalmente por conter altas doses não naturais de carboidratos refinados, açúcares e gordura.

Uma pesquisa feita pelo professor de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Walter Belik, em parceria com o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola e apoiado pelo Instituto Ibirapitanga e Instituto Clima e Sociedade, revelou que o brasileiro gastou, em 2020, R$ 831 milhões com refrigerantes e R$ 693 milhões em cerveja mais do que com arroz (R$ 821 milhões) e feijão (R$ 408 milhões). Os maiores gastos foram com as carnes bovina (R$ 2,8 bilhões) e de frango (R$ 1,7 bilhão).

O levantamento apontou ainda que o consumo de alimentos in natura caiu 7% entre 2002 e 2018, enquanto os de processados e ultra-processados subiram 18% e 46%, respectivamente. A compra de refeições prontas aumentou 250%.

De acordo com um estudo feito pela Unifesp, o Sistema Único de Saúde (SUS) gasta R$ 1,5 bilhão anualmente apenas com custos relacionados a obesidade e sobrepeso.

Mexer no bolso para reduzir consumo de ultra-processados

Andre Braz, economista da FGV e coordenador-adjunto do Índice de Preços ao Consumidor (IPC), diz que, em 2022, o preço dos alimentos in natura subiu mais do que os de processados e ultra-processados.

A inflação medida pelo IPC em dezembro de 2022 foi de 4,3%, em relação ao mesmo período do ano anterior. Entretanto, a cebola subiu 114,66%, a maçã, 57,53%, a batata inglesa, 52,56% e a banana nanica, 35,96%.

Já entre os alimentos processados e ultra-processados, os maiores aumentos foram da maionese (32,25%), do tempero pronto (18,75%) e do macarrão instantâneo (19,73%), segundo o IPC.

Para Braz, muitas pessoas optam por comer um alimento ultraprocessado a uma fruta por uma questão cultural.

Para o economista André Braz, a solução é desetimujlar o consumo de ultra-processdos por meio de taxação dos produtos, imagem Pamedia

"O alimento ultra-processado é prático. Não precisa cozinhar ou descascar. Tem alguns que você só abre a lata e come. Essa praticidade é conveniente para quem trabalha muitas horas. É comida barata e com muita caloria, então você vicia naquilo. Seu corpo está com fome, você come rápido, ele para de reclamar e você vicia em algo pouco nutricional", afirma.

Esse é um problema de saúde que bate às portas do SUS. Para o economista, as empresas que vendem produtos que causam doenças e mortes deveriam pagar por esse custo extra aos cofres públicos.

"Esses produtos geram um problema para a administração pública. O cigarro vicia, mas tem um imposto gigante. A salsicha, não. Você pode se intoxicar de salsicha, mas a contrapartida de imposto não é suficiente para custear o governo. A cerveja ainda tem um imposto alto também, mas os outros alimentos não", afirma.

Para Andre Braz, a solução é desestimular o consumo de ultraprocessados por meio da taxação destes produtos.

"Assim, você estimula o indivíduo a largar a lata de sardinha e pegar a fruta. O ideal é que esses alimentos sejam taxados para que esse dinheiro seja destinado a hospitais e educação infantil. Se o preço do refrigerante triplicar, as pessoas correm para o suco em pó. Se aumentar também, elas vão comprar água ou suco natural", afirma.

Rótulo e o desestímulo de alimentos ultra-processados

Para Maria Paula de Albuquerque, é necessária a adoção de leis para desestimular o consumo de ultra-processados no país.

"A lei de rotulagem no Brasil avança em passos lentos. Especialistas e a sociedade civil, em consulta pública solicitaram uma rotulagem frontal octagonal, a mesma usada no Chile, que privilegia as informações de alerta para o consumidor, como alimento com alto teor de gordura ou açúcar. Mas o modelo entregue pela Anvisa usou um rótulo frontal menor e, portanto, com menos impacto", diz.

A lei de rotulagem no Chile foi alterada em 2019 com o objetivo de fornecer informações mais claras e precisas aos consumidores sobre os produtos que compram. Entre as principais medidas, estão os rótulos de advertência com destaque em octógono quando o alimento contém substâncias potencialmente nocivas à saúde, como bebidas alcoólicas e cigarros.

No país, também são exigidas as identificações de alergênicos e informações nutricionais, como quantidade de calorias, sódio e açúcar.

Em nota, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirmou que o Brasil adotou em 2019 o modelo de rotulagem frontal que indica ao consumidor os alimentos com alto índice de sódio, açúcar e gordura. Segundo o órgão, a escolha está "largamente amparada em dados técnicos" e se aplica aos alimentos embalados, processados e ultraprocessados.

Estuda aponta que consumode produtos ultra-processados pode viciar, imagem da Reuters

"Antes de propor o design de lupa na rotulagem nutricional frontal, a Anvisa analisou os modelos adotados, de forma mandatória ou voluntária, em mais de 40 países. Entre as mais de 82 mil contribuições recebidas na consulta pública, foram recebidas manifestações para a melhoria dos critérios de legibilidade e design do modelo de rotulagem nutricional frontal proposto, de forma a permitir sua declaração na diversidade de tipos e tamanhos de embalagens disponíveis no mercado", informou a Anvisa.

Segundo o órgão, o modelo da lupa foi escolhido por "ser o mais alinhado ao objetivo regulatório traçado, por facilitar a compreensão da rotulagem nutricional pelo consumidor brasileiro, possibilitando escolhas autônomas e conscientes pelos consumidores, sendo o mais coerente com o papel da alimentação na saúde da população".

Para Albuquerque, é necessário dar incentivos fiscais ao pequeno agricultor e favorecer hortas comunitárias para valorizar o consumo de alimentos frescos e com alto teor nutritivo e taxar alimentos que causam doenças.

"A gente tem que proporcionar escolhas melhores para o consumidor. Ou seja, comida de verdade. Hoje, não temos problemas na produção de alimentos. O Brasil tem alimento para todos, mas nem sempre isso é acessível. Precisamos garantir o direito à alimentação adequada, reforçar as práticas de educação nutricional nas escolas e comunidades e fortalecer as macro-políticas e governança sobre o tema."

Ministério da Saúde no Governo Bolsonaro

Um exemplo do apoio público ao setor foi um decreto assinado em abril de 2022 pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) que zerou o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para extratos e concentrados usados na produção de refrigerantes. A medida, derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) representava um subsídio de até R$ 1,8 bilhão para a indústria de refrigerantes em três anos (sendo R$1,6 bilhão apenas para Ambev e Coca-Cola), segundo estimativa do governo federal em um relatório enviado ao Congresso Nacional.

Procurada, a Coca-Cola informou que não se manifestaria e que a reportagem deveria procurar a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (Abir). A Ambev não se manifestou.

Abir informou por meio de nota que "o setor gera 2 milhões de empregos em toda a cadeia e recolhe anualmente R$ 16 bilhões em impostos federais, estaduais e municipais. Vale destacar que o setor possui, ainda, uma das cargas tributárias mais altas da América Latina - aproximadamente 40% do preço de comercialização. A associação ainda criticou as constantes mudanças na alíquota de impostos aplicada à indústria de refrigerantes. Se resumiu a dizer que o consumo de refrigerantes não tem relação direta com os níveis de obesidade no país.

"A pesquisa Vigitel do Ministério da Saúde traz dados da frequência de consumo de refrigerante no país. De 2007 a 2021, houve uma redução de 54,6% no consumo regular de refrigerantes. Na contramão desse dado, a obesidade aumentou 89,8% no Brasil", informou em nota.

"A indústria brasileira preza pela segurança jurídica. Em qualquer lugar do mundo, os investimentos realizados por uma empresa dependem do grau de confiança que se tem nas regras do jogo. Na Zona Franca de Manaus, por exemplo, o setor de bebidas não alcoólicas tem sofrido há anos com mudanças em regras pré-estabelecidas - já foram mais de onze alterações na alíquota", informou.

Em nota, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) informou que "a qualidade de um alimento é determinada pela sua composição nutricional, e não pelo seu grau de processamento ou quantidade de ingredientes. Um alimento pode ser nutritivo, sendo processado ou não. Assim como um alimento pode ser pouco nutritivo, sendo processado ou não".

A Abia diz que considera "altamente temeroso associar mortes ao consumo de alimentos. É imperativo que se faça a diferenciação entre correlação e causalidade, sob pena de acarretar interpretações incorretas. Ao mesmo tempo, a classificação NOVA é extremamente controversa e enfrenta duras críticas na comunidade acadêmica e científica, nacional e internacional".

Para a associação, é "equivocada a classificação de alimentos com base em seu nível de processamento, quantidade de ingredientes ou utilização de aditivos alimentares avaliados e aprovados por comitê científico internacional (FAO/OMS) e pela agência reguladora brasileira (Anvisa)".

E informou que uma pesquisa feita por 150 especialistas franceses em alimentação e nutrição avaliou a funcionalidade da nova classificação e indica que "a definição dos níveis de processamento de alimentos, conforme proposto pela classificação NOVA, é complexa e multidimensional. Não reflete realmente a intensidade dos processos utilizados, mas é um misto de considerações tecnológicas baseadas mais em aspectos socioculturais do que em aspectos físico-químicos que ocorrem durante o processamento de alimentos".

Procuradas, a Associação Brasileira da Indústria e Comércio de Ingredientes e Aditivos para Alimentos (Abiam), Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil (Afrebras) e Associaçao Brasileira de Bebidas (Abrabe) não comentaram o assunto até a publicação desta reportagem.

Procurado pela reportagem, a assessoria de imprensa do ministério da Economia da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro se resumiu a afirmar que a medida não era mais válida por conta da decisão da Suprema Corte. Procurada, a atual gestão não informou se pretende reduzir os impostos das bebidas açucaradas novamente.

O principal argumento do STF para derrubar o decreto de Bolsonaro foi o de que o incentivo fiscal prejudicaria a Zona Franca de Manaus, um dos principais polos de fábrica do país (inclusive de refrigerantes). Isso ocorreria porque a região, que oferece benefícios fiscais para atrair empresas, deixaria ser competitiva em relação ao restante do país, o que poderia causar uma debandada de empresas e demissões em massa.

Os ultra-processados, segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira, elaborados pelo ministério, são alimentos industrializados feitos majoritariamente ou integralmente de substâncias como óleos, açúcar e gorduras, derivados de constituintes como amido modificado ou sintetizados em laboratório com base de matérias orgânicas como petróleo e carvão. Alguns desses exemplos são os corantes, conservantes e aromatizantes.

Os ultra-processados são geralmente encontrados em embalagens e vendidos para o consumo ou preparo rápido, como biscoitos recheados, salgadinhos, salsichas e macarrão instantâneo. São alimentos considerados com sabor agradável e realçados, mas pobres em nutrientes.

"Esse tipo de alimento é rico em calorias, gordura, sal, açúcar. O Brasil se comprometeu com a Organização Pan-Americana da Saúde a reduzir o consumo de refrigerantes para frear o aumento da obesidade, e aumentar o consumo de frutas, legumes e verduras na população adulta", diz Albuquerque.

O Ministério da Saúde, na gestão Jair Bolsonaro, informou à BBC News Brasil que incentiva práticas alimentares saudáveis por meio do Guia Alimentar para a População Brasileira, de maneira individual e coletiva. A pasta disse ainda que subsidia políticas, programas e ações que visem incentivar, apoiar, proteger e promover a saúde e a segurança alimentar e nutricional da população.

"O guia apresenta como regra de ouro: prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultra-processados. A adoção da classificação dos alimentos segundo nível de processamento foi considerada como mais adequada frente aos desafios de promoção de uma alimentação adequada e saudável, considerando princípios da sustentabilidade, sendo reconhecida como inovadora nacional e internacionalmente", informou a pasta em nota.

As quatro categorias são definidas de acordo com o processamento empregado na sua produção: in natura ou minimamente processados, ingredientes culinários, alimentos processados e alimentos ultra-processados.

O Ministério disse que dissemina, por meio de estratégias de comunicação e treinamento de profissionais da educação e da saúde a divulgação do Guia Alimentar, principalmente para combater a obesidade infantil e suas consequências. A intenção é educar a população para o consumo de alimentos saudáveis e prática regular de esportes.

A pasta da Saúde no governo Bolsonaro foi novamente procurada, mas não comentou o caso até a publicação desta reportagem.

Redução dos ultra-processados em Portugal

Em Portugal, um estudo da Nova School of Business and Economics apontou que as vendas de refrigerantes no país caíram 12,5% em 2022 em relação a 2017. De acordo com o jornal português Sapo, isso ocorreu após a aprovação de uma lei que elevou a taxação de bebidas açucaradas, como o refrigerante.

De acordo com a publicação, as exportações ou as grandes empresas não foram afetadas pela medida, e os mais prejudicados foram os pequenos produtores.

*Felipe Souza - @felipe_dess

Edição: blog Mangue do Cachoeira

Publicado na BBC: 3 março 2023

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63881335