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6.11.2020

Ética em tempos de pandemia


O es­pectro da morte nos ni­vela. A de­vas­tação letal pro­vo­cada ocupa pra­ti­ca­mente todo o no­ti­ciário. Somos todos obri­gados a re­di­men­si­onar nossos cri­té­rios, va­lores e há­bitos. Até as na­ções mais ricas des­co­brem que o di­nheiro não é su­fi­ci­ente para evitar a pan­demia. Só a ci­ência é capaz de detê-la, mas an­dava muito ocu­pada em des­co­brir, nos la­bo­ra­tó­rios, como au­mentar os lu­cros das em­presas far­ma­cêu­ticas, en­quanto fal­tavam re­cursos para com­bater a fome e o aque­ci­mento global...

por Frei Betto no Correio da Cidadania – Sociedade e Solidariedade na Pandemia
 
Imagem no site Correio da Cidadania

A pan­demia cau­sada pelo co­ro­na­vírus veio ni­velar a hu­ma­ni­dade. E sus­citar sé­rias ques­tões éticas. Não faz dis­tinção de classe, como a anemia e o ra­qui­tismo, que re­sultam da fome; ou de gê­nero, como as do­enças da prós­tata.

Trata-se, agora, de en­frentar um ini­migo in­vi­sível que exige ur­gente mo­bi­li­zação global para deter o seu avanço. E é em mo­mentos de crise como este que as pes­soas se re­velam.

A questão ética fun­da­mental que a pan­demia le­vanta é quanto ao valor da vida hu­mana. Para o ca­pi­ta­lismo, em si tem valor zero, a menos que re­ves­tida de ade­reços com valor de mer­cado e ro­bus­te­cida por bens pa­tri­mo­niais e fi­nan­ceiros.
Prova disso é o des­caso hu­mano em nossas ci­dades, cujas cal­çadas se en­chem de pes­soas mal­tra­pi­lhas que so­bre­vivem da ca­ri­dade alheia. Não têm valor ne­nhum e, ao cruzar com elas, muitos evitam se apro­ximar, re­ceiam o mau cheiro e o as­sédio.

Su­po­nhamos que um deles ganhe uma for­tuna na lo­teria e, pouco de­pois, apa­reça a bordo de um re­lu­zente Mer­cedes Benz. Ime­di­a­ta­mente pas­sará a ter valor so­cial e ser re­ve­ren­ciado pelo res­peito e pela in­veja de quem o ob­serva. Por­tanto, eis o pa­tamar an­tié­tico ao qual o sis­tema ca­pi­ta­lista nos conduz: va­lemos pelo que por­tamos e não pelo sim­ples fato de sermos hu­manos.

Agora, o es­pectro da morte nos ni­vela. A de­vas­tação letal pro­vo­cada ocupa pra­ti­ca­mente todo o no­ti­ciário. Somos todos obri­gados a re­di­men­si­onar nossos cri­té­rios, va­lores e há­bitos. Até as na­ções mais ricas des­co­brem que o di­nheiro não é su­fi­ci­ente para evitar a pan­demia. Só a ci­ência é capaz de detê-la, mas an­dava muito ocu­pada em des­co­brir, nos la­bo­ra­tó­rios, como au­mentar os lu­cros das em­presas far­ma­cêu­ticas, en­quanto fal­tavam re­cursos para com­bater a fome e o aque­ci­mento global.

A Itália nos mos­trou como a pan­demia co­loca sé­rios di­lemas éticos. Mé­dicos e en­fer­meiros ti­veram que optar entre um e outro pa­ci­ente, de­vido à falta de re­cursos su­fi­ci­entes. E nossos pa­rentes e amigos in­fec­tados devem pa­decer so­zi­nhos nos hos­pi­tais, sem que pos­samos con­solá-los, ex­ceto pelo ce­lular quando ainda não en­traram no res­pi­ra­douro.

Os fa­le­cidos, não temos di­reito de pranteá-los no ve­lório e nem mesmo cum­prir seus úl­timos de­sejos, como ser en­ter­rados ou cre­mados com tal roupa ou sím­bolo re­li­gioso. Como se fossem anô­nimos, são des­car­tados tal como ocorria na Idade Média com os in­fec­tados pela peste. Estão proi­bidos de ri­tuais fú­ne­bres. Assim, o Covid-19 rouba-lhes a dig­ni­dade. E nos apu­nhala ao nos obrigar a ficar afas­tados de quem somos mais pró­ximos. É uma trí­plice morte: a in­di­vi­dual, do pa­ci­ente; a fa­mi­liar, dos au­sentes; a so­cial, cau­sada pela in­ter­dição de ve­lório, en­terro e culto re­li­gioso.

Outra di­mensão ética sus­ci­tada pela pan­demia é o con­flito entre so­li­da­ri­e­dade e com­pe­ti­ti­vi­dade. Todos co­nhe­cemos gestos me­ri­tó­rios de so­li­da­ri­e­dade vi­sando a aplacar o nosso iso­la­mento e fa­vo­recer o so­corro às ví­timas, como o da jovem do apar­ta­mento 404 que, todos os dias, pre­para a re­feição da idosa do 302, obri­gada a dis­pensar a co­zi­nheira; o em­pre­sário que dis­tribui quen­ti­nhas aos mo­ra­dores das ruas de sua vi­zi­nhança; o uni­ver­si­tário que se apre­sentou como vo­lun­tário em um hos­pital dis­posto a car­regar macas e limpar en­fermos. Ou como o do bom­beiro ca­rioca Eli­elson dos Santos que, do topo da es­cada Ma­girus, ofe­rece mú­sicas com seu trom­pete a mo­ra­dores do Rio.

Há que res­saltar também a so­li­da­ri­e­dade entre países que en­vi­aram re­cursos a ou­tros povos, es­pe­ci­al­mente Cuba, que des­locou cen­tenas de mé­dicos para re­forçar o so­corro na Itália, na Es­panha, na França e em muitos ou­tros países.

No en­tanto, falou mais alto a com­pe­ti­ti­vi­dade, valor su­premo do ca­pi­ta­lismo. O chinês Jack Ma, fun­dador da pla­ta­forma de vendas on­line Ali­baba e um dos ho­mens mais ricos do mundo, ofe­receu gra­tui­ta­mente kits de testes para di­ag­nos­ticar Covid-19 e res­pi­ra­dores a 50 países, in­clu­sive Cuba. Porém, a trans­por­ta­dora aérea era de ban­deira usa­me­ri­cana, e a Casa Branca, des­pro­vida do mí­nimo senso hu­ma­ni­tário, va­leram-se do ge­no­cida blo­queio im­posto à ilha do Ca­ribe para im­pedir que a carga che­gasse a seu des­tino.

Em nome de ca­pri­chos po­lí­ticos, sa­cri­fica-se a vida de na­ções. Algo se­me­lhante ocorreu com o go­verno da Bahia, que com­prou equi­pa­mentos da China no valor de R$ 42 mi­lhões. Ao passar de navio pelos EUA, a en­co­menda foi apro­priada pelo go­verno da nação im­pe­rial.

As im­pli­ca­ções éticas sus­ci­tadas pela pan­demia se as­se­me­lham às de si­tu­a­ções de guerra. O go­verno Bol­so­naro, mo­ni­to­rado pelo FMI, havia apli­cado ao Brasil ri­go­roso ajuste fiscal co­roado pelo teto de gastos e os juros ele­vados. Desde a posse ale­gava não ter di­nheiro e pre­cisar pro­mover re­formas, como a da Pre­vi­dência, para poupar re­cursos.

Di­nheiro nunca falta quando se trata de pagar os juros da dí­vida pú­blica e sa­ciar o voraz ape­tite dos bancos. Desde que as­sumiu o Mi­nis­tério da Eco­nomia, Guedes trans­feriu para os bancos R$ 433 bi­lhões, di­nheiro do povo so­ne­gado da edu­cação, da saúde, do sa­ne­a­mento etc. O que vale mais, o lucro dos bancos ou a vida de mi­lhões de bra­si­leiros?

O com­bate à pan­demia exigiu me­didas ur­gentes e, como por mi­lagre, apa­receu R$ 1,3 tri­lhão! Re­cursos há, mas não von­tade po­lí­tica de quem qua­li­ficou a pan­demia de “gri­pe­zinha” e de­mons­trou não se im­portar com a morte em pro­por­ções ge­o­mé­tricas.

Deixo à nossa re­flexão o poema Es­pe­ranza, do cu­bano Alexis Valdés:

Cu­ando la tor­menta pase
Y se amansen los ca­minos
y se­amos so­bre­vi­vi­entes
de un nau­fragio co­lec­tivo.

Con el co­razón llo­roso
y el des­tino ben­de­cido
nos sen­ti­remos di­chosos
tan sólo por estar vivos.

Y le da­remos un abrazo
al primer des­co­no­cido
y ala­ba­remos la su­erte
de con­servar un amigo.

Y en­tonces re­cor­da­remos
todo aquello que per­dimos
y de una vez apren­de­remos
todo lo que no apren­dimos.

Ya no ten­dremos en­vidia
pues todos ha­brán su­frido.
Ya no ten­dremos de­sidia
Se­remos más com­pa­sivos.

Valdrá más lo que es de todos
Que lo jamás con­se­guido
Se­remos más ge­ne­rosos
Y mucho más com­pro­me­tidos

En­ten­de­remos lo frágil
que sig­ni­fica estar vivos
Su­da­remos em­patía
por quien está y quien se ha ido.

Extrañaremos al viejo
que pedía un peso en el mer­cado,
que no su­pimos su nombre
y si­empre es­tuvo a tu lado.

Y quizás el viejo pobre
era tu Dios dis­fra­zado.
Nunca pre­gun­taste el nombre
porque es­tabas apu­rado.

Y todo será un mi­lagro
y todo será un le­gado
y se res­pe­tará la vida,
la vida que hemos ga­nado.

Cu­ando la tor­menta pase
te pido Dios, ape­nado,
que nos de­vu­elvas me­jores,
como nos ha­bías soñado.

Publicado no Correio da Cidadania: 09/06/2020

Frei Betto - as­sessor de mo­vi­mentos so­ciais. Autor de 53 li­vros, edi­tados no Brasil e no ex­te­rior, ga­nhou por duas vezes o prêmio Ja­buti (1982, com "Ba­tismo de Sangue", e 2005, com "Tí­picos Tipos")

Fonte - https://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/14226-etica-em-tempos-de-pandemia