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7.24.2023

Brasil: os Principais Culpados pela Tragédia no Trânsito são as Fábricas de Automóveis

 Indústria de carros vende velocidade e potência como sinônimo de sucesso. Por causa disso 33 mil brasileiros morrem todo ano em acidentes com automóveis. É preciso enfrentar o “feitiche do voo” sobre quatro rodas e construir outra visão de mobilidade, que priorize pessoas e não os automóveis

Em São Paulo, segundo o Detran,  93% das mortes no trânsito são causadas por homens. A sensibilidade masculina atende ao apelo do glamour da velocidade das fábricas de automóveis de maneira muito mais expressiva, do que a feminina (deixa-se convencer mais fácil)

por Sérgio Avelleda na Revista Piauí e Outras Palavras – Sociedade e Trânsito que Mata Brasileiras/os


 Imagem no site Outras Palavras

Participei da administração pública da cidade de São Paulo como secretário de Mobilidade entre 2017 e 2018. No rol das atribuições formais do cargo, uma me chamou a atenção logo que assumi: autorizar ou não o fechamento de ruas para o trânsito de veículos. Eram muitos os pedidos que chegavam. Fiquei curioso para saber a origem de tantas solicitações. Descobri que boa parte delas vinha de agências de publicidade, com o propósito de utilizarem o espaço para a gravação de filmes de propaganda. Quando um assistente me informou que a maioria dos pedidos era para gravar comerciais de automóveis, lembrei que não se vê anúncio de carro (na televisão ou em redes digitais) que tenha trânsito. O veículo destinado a encantar os consumidores está frequentemente rodando, soberano (único), por ruas vazias. Publicidade não costuma rimar com realidade – a pessoa compra o automóvel e quando sai da concessionária para no primeiro de muitos engarrafamentos que encontra pelo caminho. Penso que esse tipo de anúncio mereceria uma reprimenda do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), uma vez que se assemelha ao que chamam de “propaganda enganosa”.

Mas, não é apenas essa falsa realidade que a indústria automobilística utiliza para vender seus carros-chefes (top’s de linha). Há também o uso da velocidade elevada como atrativo para a comercialização dos veículos. Atributos como potência, torque (força) e capacidade de chegar a 100 km/h em um átimo (fração de segundos) são sempre evidenciados em propagandas de automóveis pelas fábricas. Vende-se carro para que se corra muito com ele.

Nos anos 1980, uma poderosa representante americana dessa indústria instalada no país, usava a imagem de um astro do automobilismo nacional para vender a versão esportiva de um de seus modelos. O piloto ligava o veículo e dizia: “Quando ouço o motor, sinto o desempenho, a raça.” Em outro anúncio da mesma montadora, sua picape se deslocava velocíssima, saltando no solo, enquanto um helicóptero a sobrevoava, até que o carro dava um cavalo de pau, ao som de uma trilha típica de blockbuster (campeão de venda) de super-herói. Puxando pela memória, alcanço a propaganda de uma concorrente daquela fábrica, na qual uma canção dizia que o coração bate mais alto dentro de um veículo de tal marca, que media forças com um jatinho. Também me vem à mente o comercial de uma montadora europeia gabando-se que um de seus automóveis passava de 0 a 100 em 8,2 segundos, e que sua velocidade final era de 220 km/h. “Os outros não fazem nem sombra”, concluía a peça publicitária da montadora européia.

Essa mesma indústria, que reforça o tempo todo o atributo de aceleração, potência e velocidade máxima de seus produtos, é a grande fomentadora das competições esportivas entre carros. São elas que ajudam a referenciar o “voo” sobre quatro rodas como sinônimo de ousadia, habilidade e, acima de tudo, sucesso.

A minha geração, a de nascidos nos anos 1970, foi embalada pelas vitórias de brasileiros na fórmula um (F1) nas manhãs ensolaradas – ou chuvosas – de domingo. De fato, o glamour ao redor das corridas nos contagiava. Queríamos ir ao fliperama gastar nossas fichas em simuladores de GPS ou passar tardes nos videogames também simulando velocidade, ultrapassagens, recordes e – imagine – acidentes!                     Os mais velhos vão se recordar dos autoramas e das disputas para estabelecer os mais rápidos naquelas pistas de brinquedo.

Vivemos bombardeados por diversas mensagens enaltecendo a velocidade como se fosse um elemento formador do caráter e, especialmente, da masculinidade (aquela de ser mais homem). As questões de gênero e a violência no trânsito estão intimamente ligadas a isso.

O discurso do glamour da velocidade sempre foi muito mais dirigido aos homens do que às mulheres. Automóveis foram concebidos para homens para serem adquiridos por outros homens (estereotipo de masculinidade). Um estudo recente mostra que as mulheres são mais propensas a mortes e ferimentos quando estão dentro dos veículos do que os homens. Os carros são desenhados para serem mais eficientes na proteção a eles (motoristas) do que a elas (acompanhantes).

Em São Paulo, segundo o Detran,  93% das mortes no trânsito são causadas por homens. A sensibilidade masculina atende ao apelo do glamour da velocidade de maneira muito mais expressiva do que a feminina (deixa-se convencer mais fácil). A grande maioria das mulheres não enxerga automóveis como elementos de poder. São simples instrumentos de transporte (o ir e vir). Homens, inebriados pela publicidade tóxica e enganosa da indústria de veículos, são induzidos a comprar carros e a potencializar sua masculinidade através da velocidade e da agressividade.

Nos dias de hoje, as redes sociais se tornaram as grandes impulsionadoras do culto à velocidade (são mais procuradas que a televisão). Uma delas monetiza e permite monetização por meio da exaltação da velocidade e até de crimes de trânsito – como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Já denunciei vários vídeos com esse conteúdo. Em um deles, o indivíduo desce a serra vindo de Campos do Jordão em direção a São Paulo ultrapassando diversos automóveis irregularmente e em alta velocidade, guiando um veículo de marca alemã. Na Rodovia Carvalho Pinto, o contumaz criminoso de trânsito ultrapassa os 230 km/h e chega a disputar um racha com motocicletas. Todas as denúncias que fiz sobre essa postagem foram ignoradas pela plataforma digital que divulga esse vídeo na internet.

Ela tem também diversos vídeos de crimes de trânsito cometidos na Estrada dos Romeiros (SP), onde há tráfego de ciclistas e pedestres. Em vez de tomar providências, a plataforma prefere seguir ganhando dinheiro com publicidade e permitir que os criminosos de trânsito participem dos lucros, incentivando um comportamento que é a maior causa de mortes entre jovens no planeta (surreal). Não por coincidência, as empresas desse segmento gastam fortunas em lobbies na administração pública estadual e principalmente federal, para evitar a regulação de suas atividades.

O consumo de cocaína é considerado um ilícito no Brasil. Logo, não esperamos encontrar uma loja anunciando a comercialização da droga nas esquinas das cidades brasileiras. Conduzir veículos nas vias públicas nacionais é atividade regulada pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Lá está definido que a velocidade máxima em tais vias é de 120 km/h. Ou seja, do mesmo modo que consumir cocaína é um ilícito, guiar acima desse limite também é um ilícito. Contudo, não nos espantamos com o fato de as concessionárias venderem produtos que podem facilmente ultrapassar os 120 km/h, atingindo velocidades acima de 200 km/h. Mais do que isso, naturalizamos que comerciais desses carros enalteçam (super valorizem) essa possibilidade como elemento sedutor para vendas. Claro que toda vida é valiosa, porém vale observar que a cocaína mata menos de 100 pessoas por ano no Brasil, contra 33 mil mortes no trânsito.                                             Objetivamente: qual droga é mais perigosa? Não é intenção comparar carro com cocaína, mas apenas observar nossa preocupação extremada e correta com a droga e nosso conformismo com algo muito mais letal, a violência do trânsito devido ao excesso de velocidade.

Muitas medidas poderiam ser adotadas para melhorar a percepção quanto ao risco da velocidade – e também para conter a exposição a esse risco.

Desde cedo, nas escolas, as aulas de ciências deveriam demonstrar às crianças que velocidade é o maior risco no trânsito e nas demais atividades humanas. Aulas de física deveriam destacar o perigo ao qual um corpo é submetido quando exposto à velocidade.

Na formação de condutores, a velocidade deveria ser apresentada como a maior responsável por lesões e mortes. Poucos motoristas sabem que um pedestre tem quase 90% de chances de sobreviver quando atingido por um carro a 30 km/h. E que essa chance se reduz à medida em que aumenta a velocidade do veículo, caindo para 60% quando o carro está sendo conduzido a 50 km/h!                                                                  Ou seja, a sensação de uma pequena variação de velocidade para quem está dentro do automóvel elimina quase integralmente a possibilidade de sobrevivência de um pedestre (ou mesmo de um ciclista ou motociclista).

Deveria haver inspiração na bem-sucedida política adotada na publicidade de cigarros. Há mais de vinte anos as embalagens desses produtos divulgam fotos chocantes que alertam os usuários sobre os riscos do fumo, que convenceu muitas pessoas a deixarem de fumar e está salvando vidas. Semelhante medida deveria ser adotada no caso dos carros. Junto a qualquer peça de propaganda de carros poderiam vir imagens de sinistros de trânsito. Essa seria uma forma de a indústria contribuir para diminuir o uso indevido dos veículos devido ao excesso de velocidade, algo que provoca tantas mortes e severas sequelas por causa da publicidade das fábricas de automóveis e o empoderamento absurdo dos motoristas nas propagandas.

Na gestão como secretário na cidade de São Paulo, determinei que todos os ônibus urbanos, vinculados à prestação do serviço de transporte público de passageiros, tivessem suas velocidades limitadas a 50 km/h. Em menos de sessenta dias, mais de 14 mil ônibus foram parametrizados (regulados) para cortar a aceleração em caso de ultrapassagem daquele limite. Bastaria uma simples resolução do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) para determinar a parametrização (regulação) da velocidade máxima dos veículos a serem vendidos no país destinados ao trânsito em vias públicas. Naturalmente, qualquer um poderia comprar um carro para alcançar qualquer velocidade desejada, desde que somente em pistas fechadas (semelhantes a pista de corrida), sem risco a pedestres, ciclistas ou motociclistas. Trata-se, porém, de uma discussão que nem sequer é cogitada nos órgãos de trânsito do Brasil. Parece óbvio: nenhum automóvel apto a ser licenciado para trafegar em vias públicas deveria estar habilitado a ultrapassar o limite de velocidade máxima previsto no Código de Trânsito Brasileiro. Do mesmo modo, o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) deveria ter editado normas para a publicidade de veículos, proibindo qualquer alusão a potência, velocidade, manobras arriscadas ou quaisquer outros elementos que induzam a comportamentos ilícitos e perigosos no trânsito.

Não há dúvida de que medidas assim exigem coragem da administração pública federal para enfrentar uma indústria gigantesca, que, como foi descrito anteriormente, sempre fez da velocidade um elemento de atração para a venda dos seus produtos. Também não será pouca a resistência de toda uma geração de motoristas alimentada pelo glamour da velocidade.                                                                                                                                                     Mas, diante da perda de vidas e sequelas as vítimas no trânsito, a tragédia que acontece cotidianamente no Brasil, qual a alternativa para solucionar esse genocídio?

Vejo muitas montadoras de automóveis fazendo propagandas sublinhando sua responsabilidade social. Por que não se reúnem e decidem, em conjunto, limitar a velocidade de seus produtos, protegendo e salvando milhares de vidas? Até quando o discurso que se apresenta enaltecido e empoderado conviverá com a realidade da comercialização de veículos, que são verdadeiras máquinas de matar?

Já passou da hora de a indústria automobilística e de os governos em todos os níveis de administração pública se conscientizar de que a velocidade é o principal elemento causador das mortes e sequelas no trânsito. É preciso que eles ajam imediatamente, para acabar com a rotina de carnificina nas vias públicas – que rouba o futuro das vítimas, devasta familiares e envergonha o país.

Publicado em Outras Palavras: 21/07/2023

Fonte: https://outraspalavras.net/outrasmidias/o-glamour-da-velocidade-que-vende-e-mata/

 

7.20.2023

Rotativo, Consignado e Crediário: Mulheres Relatam Impacto de Juros Altos no Orçamento Familiar

Quanto mais alto o valor da Selic, maior são os juros cobrados em financiamentos, empréstimos e cartões de crédito e menor é o estimulo ao consumo, pois os preços estão mais elevados para a população

por Jaqueline Deister no Brasil de Fato – Sociedade e Endividamento das Famílias Brasileiras

De acordo com a Peic, entre as modalidades de dívida, 87,2% dos consumidores chegaram em maio de 2023 endividados no cartão de crédito - Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

O percentual de famílias brasileiras com dívidas segue um patamar estabilizado, porém alto de 78,3%. O levantamento da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) de maio deste ano aponta que a cada cinco famílias, uma indica que não conseguirá pagar uma dívida já atrasada. 

“Os juros elevados dificultam o pagamento da dívida atrasada, pois acirram as despesas financeiras. Com isso, o volume de consumidores com atrasos por mais de 90 dias segue em tendência de alta. Do total de inadimplentes, 45,7% estão com atrasos por mais de três meses, maior percentual em três anos”, destaca o relatório da Peic. 

Por trás desses números há histórias como a da Mariana Queiroz. A moradora de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro, ficou desempregada durante a pandemia e em 2020 precisou utilizar o cartão de crédito para a compra de bens de primeira necessidade. Em quase três anos, a dívida da jovem de 24 anos aumentou em mais de 15 vezes se comparada ao valor original. 

“Eu fiquei endividada na pandemia, fiquei desempregada, eu trabalhava como operadora de caixa num supermercado. A minha dívida é do cartão de crédito que usei na época para comprar fralda e alimentação, eu estava me divorciando, que foi um processo difícil, eu tinha perdido a minha renda e não podia contar com ele, a dívida era de R$ 1.139 e hoje está R$ 17.342”, contou ao Brasil de Fato

Mariana atualmente trabalha como assistente administrativa e recebe cerca de um salário mínimo por mês, ou seja, R$ 1.320. Segundo ela, a tentativa de negociação com a operadora do cartão de crédito não foi bem sucedida. 

”Já tentei negociar quando eu consegui o meu novo emprego, mas era sempre para pagar à vista e o valor superior ao meu salário, quando era para parcelar, os juros ficavam altos e eu teria que comprometer parte da renda para pagar, o que não fica viável levando em consideração as despesas do mês”, desabafa. 

O caso de Mariana é o tipo de endividamento mais comum entre os brasileiros. De acordo com a Peic, entre as modalidades de dívida, 87,2% dos consumidores chegaram em maio de 2023 endividados no cartão de crédito,  esse foi o maior volume em um ano.

Empréstimo Consignado que Não se Consegue Pagar

Assim com a assistente administrativa, a professora da rede municipal do Rio de Janeiro Priscila Mendes, de 41 anos, também não consegue quitar a dívida dos empréstimos consignados que contraiu há 15 anos. A modalidade é popular entre aposentados, pensionistas e funcionários públicos, pois tem as parcelas descontadas diretamente da folha de pagamento ou do benefício. 

“Eu comecei a fazer esses empréstimos pouco tempo depois que eu entrei para o município. A renda não era compatível com o meu custo de vida. Tenho vários empréstimos. Peguei cerca de R$ 40 mil e estou pagando R$ 100 mil”, explica a professora que conta ter 40% do salário comprometido pelas dívidas. 

A remuneração de Priscila é a principal da família. Além das despesas da sua casa, onde moram o marido e a filha mais nova, a professora auxilia a primogênita e o neto. O salário mensal da professora, sem os descontos, totaliza R$ 8 mil. 

“Nunca tentei negociar [a dívida], poderia pagar as parcelas de trás pra frente sem juros, mas nunca consigo”, afirma. 

Banco Central Brasileiro e O Efeito “Selic”

A chamada Selic, cuja sigla significa Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, é a taxa básica de juros da economia brasileira. É o principal instrumento de política monetária utilizado pelo Banco Central (BC) para controlar a inflação. Ela influencia todas as taxas de juros do país. Hoje, a taxa está em 13,75%, um valor considerado alto por analistas.

Quanto mais alto o valor da Selic, maior são os juros cobrados em financiamentos, empréstimos e cartões de crédito e menor é o estimulo ao consumo, pois os preços estão mais elevados para a população, com essa lógica, a inflação é puxada para baixo.  

Marieta dos Santos sente no dia a dia o impacto na restrição do consumo causado pela Selic. A senhora de 78 anos tem como única fonte de renda o Benefício de Prestação Continuada (BPC) que recebe do governo. O valor de um salário mínimo acaba exigindo que a moradora da ocupação Habib´s, localizada na zona portuária do Rio de Janeiro, faça uma ginástica no orçamento financeiro. 

“É um pouco difícil, mas vendo que não tem jeito a gente tem que aguentar. Sempre vem os netos aqui passar uns dias, mas eles vivem na casa dos pais. Ficam metade da semana aqui e o resto com os pais. Eu vou ao mercado e compro as coisas ‘pouquinhas’ . Eu vou limitando a vida para evitar de ficar devendo para os outros”, conta.  

Ela relata à reportagem que prefere comprar à vista. “O dinheiro é pouco e eu não uso cartão de crédito. Eu mesma não gosto de crediário. É tudo à vista. Junta um pouquinho aqui e acolá até conseguir comprar alguma coisa”, detalha. 

De acordo com a Peic o risco de inadimplência vem aumentando mais na classe média, já que as famílias de baixa renda estão assistidas pelo Bolsa Família com valores maiores e mais beneficiários e também são o principal foco de renegociações atualmente. 

*A Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) é apurada mensalmente pela CNC desde janeiro de 2010. Os dados são coletados em todas as capitais dos estados e no Distrito Federal, com aproximadamente 18 mil consumidores.

Edição no BdF: Mariana Pitasse

Publicado no BdF: 14 de Junho de 2023

 Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2023/06/14/rotativo-consignado-e-crediario-mulheres-relatam-impacto-de-juros-altos-no-orcamento-familiar