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1.04.2016

Leonardo Boff: o que nos vale é a nossa superabundância de esperança

  • O Annus nefastus de 2015 não invalida a esperança de um annus propicius

Por Leonardo Boff * - Sociedade e Acontecimentos em 2015 (fonte no final)
O ano que acaba de 2015 merece esta qualificação latina: annus nefastus. Outros o chamam de annus horribilis. Ocorreram tantas calamidades que além de espanto nos  causam  preocupações.
A primeira delas é o Dia da Sobrecarga ou da Ultrapassagem da Terra (Earth Overshoot Day) ocorrido no dia 13 de setembro. Isto significa: neste dia a Terra revelou que seu estoque de suprimentos para manter sistema-vida o sistema-Terra ultrapassou os limites. Ela perdeu sua biocapacidade. A Terra é o pressuposto de todos os nossos projetos. Como a Terra é um Super-ente vivo, os sinais que nos envia de que não aguenta mais, são as secas, as enchentes, os tufões e o aumento da violência no mundo. Tudo está ligado a tudo, como nos repete insistentemente  o Papa Francisco em sua encíclica.
Associado a este fato é ilusório o consenso alcançado no   dia 12 de dezembro com  a COP21 em Paris: o aquecimento deveria ficar abaixo de 2º Celsius rumando para 1,5º até meados do século. Isso implica uma troca de paradigma de civilização não mais baseada em combustíveis fósseis, sabendo que todas as energias alternativas juntas não chegam a 30% do que precisamos. Essa conversão, as grandes petroleiras e os fornecedores de gás e carvão não têm condições de fazer e nem a querem. A ideia é retórica.
O terceiro evento nefasto é a violência terrorista na Europa, na África, os milhares de refugiados e a guerra que as potências militaristas, todas juntas, movem contra o Estado Islâmico e contra outros grupos armados na Síria. Fontes seguras nos atestam a vitimação de milhares de civis inocentes.
Outro evento nefasto é a transformação dos EUA num estado terrorista. Com suas 800 bases militares distribuídas no mundo inteiro, intervém, direta ou indiretamente, lá onde percebem seus interesses imperiais ameaçados. Internamente, o “ato patriótico”não foi abolido e representa a suspensão de direitos fundamentais. Não é sem razão que a polícia americana matou em 2015 cerca de mil pessoas desarmadas, 60% das quais eram negros ou latinos.      
Outro fato horribilis é o rompimento da barreira de dejetos de minério da Samarco em Minas, poluindo o Rio Doce por quase 700 km no maior desastre ecológico de nosso pais.  Não bastasse esta desgraça, surgiu  entre nós uma onda de ódio, de raiva e de preconceito especialmente após a descoberta da corrupção milionária, ligada à Petrobrás, onda já presente  depois das eleições presidenciais de 2014. Não é de se admirar, pois o Brasil é cheio de contrastes, como o viu bem Roger Bastide (Brésil, terre des contrastes, Hachette 1957) mas antes dele Gilberto Freyre que escreveu:”considerado em seu conjunto, a formação brasileira foi um processo de equilíbrio entre antagonismos”.
Esse antagonismo, quase sempre mantido sob o manto ideológico do “homem cordial”, saiu do armário agora e se mostra claramente de modo particular pela mídia social. O “homem cordial” que Sergio Buarque de Holanda, tomou do escritor Ribeiro Couto, é geralmente muito mal compreendido. Não tem nada a ver com a civilidade e polidez. Tem a ver sim com a nossa aversão aos ritos sociais e aos salamaleques; somos pela informalidade e a proximidade.
Trata-se de um comportamento brasileiro que se rege antes pelo coração que pela razão. Ora, do coração nasce a gentileza e a hospitalidade. Mas como bem acentua Buarque de Holanda:”a inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade nisto que uma e outra nascem do coração”(nota de rodapé 157 da p. 106-107).
Esse equilíbrio frágil se perdeu em 2015 e irrompeu a cordialidade negativa como ódio, preconceito e raiva contra militantes do PT, contra nordestinos e negros. Nem as figuras constitucionalmente respeitáveis como a Presidenta Dilma Rousseff foi poupada. A internet abriu  as portas do inferno da injúria, do palavrão, da ofensa direta das pessoas, umas contra as outras.
Tais expressões apenas revelam nosso atraso, a ausência de cultura democrática, a intolerância e a luta de classes. Não se pode negar que verificou-se em certos setores, raiva dos pobres e dos que ascenderam socialmente, graças às politicas sociais compensatórias (mas pouco emancipatórias) do governo do PT. Os antagonismos brasileiros se mostraram claramente, não harmonizados e agora de rédeas soltas uns contra os outros em verdadeira luta (chamem de classes, de interesses, de poder, não importa). Mas há uma ruptura social no Brasil que nos custará muito para costurá-la. No meu entendimento, só a partir de uma real democracia participativa que vá além da atual farsesca, pois representa antes os interesses dos grupos  beneficiados do que os do povo como um todo.
O que nos vale é a nossa superabundância de esperança que supera o annus nefastus na direção de um annus admirabilis.  Que Deus nos ouça.
* Leonardo Boff é articulista do JB on line e escritor
http://www.jb.com.br/leonardo-boff/noticias/2016/01/04/o-annus-nefastus-de-2015-nao-invalida-a-esperanca-de-um-annus-propicius/

Patrocinadores definem futuro da CBF



  • Jornal 'El País': A velha CBF resistirá a 2016?

  • Queda do grupo à frente do futebol no Brasil pode ser acelerada a depender dos patrocinadores

Por Jornal do Brasil - Sociedade e Futebol Brasileiro (fonte no final)

Matéria publicada neste domingo (3/dez/2016) no jornal El País se inicia com uma aspas: “Não acredito em corrupção no futebol brasileiro”. A frase não foi dita num show estilo stand-up, apesar de tudo o que aconteceu em 2015 na cúpula do futebol brasileiro. Ela saiu da boca do recém-eleito vice-presidente da CBF, Antônio Carlos Nunes, o Coronel Nunes, de 79 anos, em dezembro, alguns dias depois de o então presidente da entidade, Marco Polo Del Nero, ter se licenciado do cargo após ter sido indiciado pelo Departamento de Justiça dos EUA por crimes de corrupção.
A frase do futuro comandante da CBF, no entanto, combina perfeitamente com a conjuntura que o levou ao poder. Presidente da Federação Paraense de Futebol há mais de 20 anos, Coronel Nunes ganhou a eleição para vice da confederação porque Marco Polo Del Nero precisava de alguém de sua confiança para gerir a entidade durante seu afastamento. O estatuto da CBF diz que o vice mais velho deve assumir, e, para desespero de Del Nero, o primeiro na linha de sucessão era seu principal rival, Delfim Peixoto, presidente da Federação Catarinense de Futebol, de 74 anos. O chefão da entidade convocou eleições, driblou a Justiça, que chegou a proibir o pleito, e elegeu o sucessor que melhor lhe convinha, e com a idade adequada.

Antônio Carlos Nunes, o Coronel Nunes
Antônio Carlos Nunes, o Coronel Nunes, atual presidente da CBF
A história é o retrato que resume a luta dos dirigentes antigos para se manterem no poder depois do pesadelo que viveram em 2015. Perseguidos pela FBI, presos, acusados de corrupção e escrutinados em suas contas particulares para pagar multas milionárias, dinossauros do mundo da bola como Ricardo Teixeira, José Maria Marín e Marco Polo Del Nero vão, aos poucos, perdendo capacidade de manobra. O trio de ex-presidentes da entidade é acusado de estar envolvido em esquemas envolvendo mais de 200 milhões de dólares em subornos e propinas. Só na CBF, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, o FBI apontou um esquema que rendeu 120 milhões de reais. É, portanto, no mínimo estranho (para não dizer desesperador) o fato de o novo vice da entidade dizer que não acredita em corrupção por aqui.
Apesar de todo o cerco que tem sido feito a Marco Polo Del Nero, o cartola mostrou que ainda tem poder, até na CPI do Futebol. Em depoimento prestado em 16 de dezembro, o dirigente só foi incomodado de verdade por dois parlamentares: os senadores Romário (PSB), presidente da Comissão, e Randolfe Rodrigues (Rede). Os outros integrantes praticamente assistiram ao embate entre Del Nero e os dois senadores. O cartola alegou ser inocente, disse que pretende voltar à presidência quando for liberado pela Justiça dos EUA e foi chamado de “corrupto, ladrão e mentiroso” por Romário. Ainda assim, o silêncio dos demais presentes mostrou que a influência da CBF dentro do senado ainda é grande. A comissão volta aos trabalhos em fevereiro do ano que vem para que os membros apreciem os requerimentos. O inquérito deverá ser concluído em agosto de 2016.
Nem mesmo um movimento liderado por atletas foi capaz de ferir verdadeiramente os chefões da entidade. Liderado pelos ex-jogadores Raí e Alex, o Ocupa CBF foi para a frente da sede da confederação, no Rio de Janeiro, e pediu a pediu a “renúncia definitiva de Marco Polo Del Nero e sua diretoria”. “A crise de corrupção é a face mais visível de um profundo problema estrutural, que travou o desenvolvimento do futebol brasileiro em todas as suas dimensões”, diz o manifesto elaborado pelo grupo, que entregou um documento ao secretário-geral da entidade, Walter Feldman. Apesar do protesto feito pelos atletas, o apoio dos clubes na eleição do coronel Nunes aponta que, por enquanto, será difícil um novo grupo político chegar ao poder.
A única saída, por enquanto, parece ser esperar para que se repita no Brasil o cenário que derrubou os mais altos dirigentes na FIFA, entre eles o presidente do órgão, Joseph Blatter, suspenso por oito anos das atividades relacionadas ao futebol. O movimento do comitê de ética da entidade só ganhou força após as ameaças dos principais patrocinadores da FIFA, que se posicionaram contra os casos de corrupção que culminaram no indiciamento de 40 dirigentes, entre eles os três brasileiros da CBF. Diante da catástrofe política que foi 2015 e dos dias complicados que esperam pela CBF em 2016, se os resultados dentro de campo também continuarem ruins, é grande a chance de os patrocinadores começarem a agir.
http://www.jb.com.br/esportes/noticias/2016/01/03/el-pais-a-velha-cbf-resistira-a-2016/

Frei Betto quer renascer em 2016



  • Bem sei que teremos ano novo de rinhas eleitorais, disputas políticas, juras de campanhas
  • Será um ano difícil para alguns, mas acima de tudo, com boas esperanças

Chego ao início do ano e constato que, entre mortos e feridos, cascatas de pedras a atulhar esperanças, frente à enxurrada de mazelas, estou vivo. Estar vivo é milagre constante. Por muito pouco a vida se esvai: um coágulo de sangue no cérebro, um tropeção, o vírus, o tiro, o acidente de trânsito, um acaso.
A cada manhã se repete o renascer. Agora sei por que o bebê faz manha à hora em que o sono começa a vencer-lhe a resistência. Teme a morte, a segregação do aconchego, o retorno às cavernas uterinas. O sono apaga-lhe os sentidos, a consciência, o (con)tato com mãos e olhares afetuosos.
Crescer é dormir sem medo. Confiante de que se vai acordar no dia seguinte. Agora, sei que acordei em 2016. Espero que não apenas do sono pós-Réveillon. Também dessa letargia que me acossa, desse propósito de inconsistência que me assalta, dessa lúgubre angústia de viajeiro que, além de perder o mapa, perdeu-se no mapa.
Adeus, 2015. No ano que findou, por vezes me julguei um idiota dostoievskiano, entre crime e castigo, porém como se tudo dependesse da destreza semântica do jogador.
A cada manhã se repete o renascer
A cada manhã se repete o renascer
Contudo, não sucumbi. Feito bambu, envergo mas não quebro. De minhas ranhuras brota delicado som de flauta. Sei que a vida é uma aposta. Todas as minhas fichas estão colocadas no tabuleiro dos deserdados. Jogo ao lado dos perdedores. É apenas isto que me interessa: ao faminto, o pão e a paz. De que valem todos os poderes do mundo se não enchem um prato de comida? Não sou empalhador de pássaros. Quero-os vivos, livres, o voo arisco enrugando ventos. Quero-os saltitantes entre as flores que cultivo em meu canteiro íntimo. Quero-os gorjeando melodias todas as manhãs.
Bem sei que teremos ano novo de rinhas eleitorais, disputas políticas, juras de campanhas. Prefiro assim à ordem canhestra das ditaduras e ao genocídio da guerra que supõe impor democracia por força das armas. Só não sei quando o meu povo se erguerá da desolação, os jovens deixarão de ser meros espectadores, de novo ruas e praças serão ocupadas, desalojando a política de seus palácios e de seus redutos parlamentares e tornando-a, de fato, esse exercício coletivo de imprimir futuro ao futuro, por mais que a expressão pareça apenas uma redundância.
Chega de golpes! Quero a vida despontando na cidadania inelutável. Tenhamos todos acesso à vida, distribuída à farta como pão quente pela manhã, sem jamais temer as intermitências da morte.
Frei Betto é autor do romance policial ‘Hotel Brasil’ (Rocco)
http://www.correiodobrasil.com.br/renascer-em-2016/ 

Maioria quer mudanças na economia, e não na Previdência Social, diz pesquisa

  • Pesquisa Vox Populi encomendada pela CUT ouviu 2 mil pessoas em todos os estados
  • Quase 90% condenam adoção de medidas que dificultem aposentadorias
  • Para 83%, juros altos atrapalham o país
 Por Redação de Rede Brasil Atual - Sociedade e Aposentadoria Justa  
Roberto Stuckert Filho/PR
Dilma e centraisCentrais e empresários entregam documento "Compromisso para o Desenvolvimento" a Dilma, em 15 de dezembro
São Paulo – Eventuais mudanças nas regras da Previdência Social são rejeitadas pela maioria dos trabalhadores de todas as faixas de renda, idade e escolaridade de todas regiões do país, segundo pesquisa feita pelo instituto Vox Populi, a pedido da CUT. O levantamento identifica ainda uma elevado nível de rejeição a cortes em programas sociais, especialmente na Região Nordeste, onde 90,5% dos pesquisados reprovam que recursos de programas sejam reduzidos para socorrer as contas dos governos.
A pesquisa mostrou que os trabalhadores identificam o momento ruim da economia e apoiam medidas de estímulo à criação de empregos, como aumento da oferta de crédito para fortalecer o mercado consumidor, programas de incentivo a empresas que mantenham postos de trabalho e de apoio a pequenas e médias empresas.
Segundo a CUT, a pesquisa serviu para verificar em que medida a opinião pública se identifica com a agenda política e de mobilizações da central, resultado dos debates realizados em seu último congresso, em outubro. Na ocasião, ficou acentuada a resistência ao ajuste fiscal que afeta o crescimento e ameaça conquistas e direitos alcançados nos últimos anos.
O presidente da CUT, Vagner Freitas, observa que essa é a primeira pesquisa de opinião feita por uma central sindical brasileira para saber o que os trabalhadores pensam sobre as medidas que estão sendo debatidas na área econômica do governo. “Só os empresários faziam pesquisa. Agora, isso acabou. Também precisamos de um instrumento como esse para saber se nossas propostas são aprovadas e também para definir estratégias de luta para defender os direitos da classe trabalhadora”, diz Vagner.
Para o sindicalista, o levantamento aponta para uma sintonia da sociedade com propostas da central – que levaram, entre outras iniciativas, à produção do documento “Compromisso para o Desenvolvimento”, apoiado por entidades sindicais e empresariais e entregue à presidenta Dilma Rousseff no último dia 15. “É um sinal de que a prioridade do governo deve ser a substituição imediata da atual política econômica que só tem causado recessão e desemprego por uma que priorize os interesses da classe trabalhadora.”
http://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2015/12/maioria-quer-mudancas-da-economia-e-nao-na-previdencia-social-4565.html
(Ver reportagem completa no endereço eletrônico acima) 

"A herança dos últimos 15 anos foi a ascensão dos excluídos"

Entrevista com Jessé de Souza, presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas

  • Presidente do Ipea critica os vícios do pensamento brasileiro
  •  
  • A classe média tradicional é um dos três pilares da atual “gramática do golpe”. Os outros dois são a mídia e a Justiça, que substituiu as Forças Armadas nesta aliança sórdida
 
Por Miguel Martins, para revista Carta Capital - Sociedade e Classes Sociais (fonte no final)

Na entrevista a seguir, Souza também critica o conceito de nova classe média criado por seu antecessor no Ipea, Marcelo Neri. Os setores médios tradicionais, argumenta, possuem privilégios não materiais inacessíveis aos novos trabalhadores. Essa classe média tradicional, acrescenta, é um dos três pilares da atual “gramática do golpe”. Os outros dois são a mídia e a Justiça, que substituiu as Forças Armadas nesta aliança.
CartaCapital: No livro A Tolice da Inteligência Brasileira, o senhor critica a perenidade dos mitos nacionais. A busca dessa identidade teria reforçado preconceitos sobre o brasileiro ser corrupto, levar tudo “no jeitinho”, ser hospitaleiro e amável, entre outros estereótipos. Neste ano de recrudescimento conservador no País, os mitos estão mais fortes?
Jessé de Souza: Os jornalistas, os professores e os livros no Brasil ainda recorrem a intelectuais que moldaram nossa interpretação em torno dessas questões. São ideias equivocadas, não valem um vintém do ponto de vista científico, mas convencem e mandam no País. Sempre que um governo popular chegou ao poder, as elites recuperaram o pensamento culturalista formulado desde 1933.
CC: O ano do lançamento de Casa-Grande e Senzala.
JS: Exato. A genialidade de Gilberto Freyre foi interpretar o País em uma comparação com os Estados Unidos, o grande outro do Brasil. Ele valorizou o encontro de raças e o classificou como um encontro de culturas. Como sempre perdíamos na comparação com os norte-americanos, era preciso criar um mito positivo, algo que a população pudesse aceitar e incorporar. Formulou-se então um mito que valoriza nosso corpo, sentimento e sexualidade. Embora absurdo, tendemos a aceitar que os norte-americanos e os europeus representam o espírito, a racionalidade, são mais produtivos e confiáveis, não são corruptos. Em Freyre, isso ainda é ambíguo.
Quando Sergio Buarque de Holanda reproduz esse mito no homem cordial, acaba por absorver apenas a parte negativa do antecessor, ao opor o homem cordial brasileiro ao homem racional norte-americano. Para pintar o Brasil como o país do atraso, os conflitos reais têm sido postos na sombra em nome de uma disputa entre Estado e mercado que passa a ser incensada. Não existe esse conflito. Cria-se esse falso certame para silenciar a luta de classes, na qual quem monopoliza o conhecimento e domina o capital cultural são as elites e a classe média.
CC: Embora não se veja dessa forma, a classe média brasileira é privilegiada?
JS:  Sem dúvida. Apesar de não ter acesso ao capital econômico do 1% mais rico, a classe média tem uma herança invisível, como estímulos emocionais e a capacidade de concentração, algo que os pobres não têm. Muitos entram na escola como potenciais analfabetos funcionais, antes mesmo de sua trajetória escolar. O liberalismo defende que a escola pode resolver os problemas sociais. A questão não é, porém, apenas a qualidade do ensino, mas toda uma construção emocional, sentimental, de estar aberto ou não ao pensamento abstrato, ao cálculo, ao pensamento prospectivo. Nada disso é natural, é um privilégio. A classe média tem tempo para planejar sua carreira ao longo da vida. Por batalharem demais no presente, os trabalhadores precarizados não têm essa perspectiva. 
Golpismo
A dita classe média se une à mídia e à Justiça, substituta dos militares/ Créditos: Paulo Pinto/Fotos Públicas
CC: Há uma crítica no livro à prevalência do economicismo nas análises de Marcio Pochmann e Marcelo Neri, seus antecessores no Ipea, sobre a ascensão social dos últimos anos. Esse foco excessivo na criação de empregos e na distribuição de bens materiais tem pago um preço neste momento de crise econômica?
JS: Esse é o ponto principal. Até 2010, só se falava em nova classe média. Passei a defender então o conceito de nova classe trabalhadora precarizada. Os trabalhadores tradicionais têm diminuído, enquanto o capitalismo financeiro ergue uma classe trabalhadora para suas próprias necessidades, não somente no Brasil, mas na China, na Rússia, em todos os locais onde há quem se disponha a fazer de tudo por muito pouco. E são esses precarizados que cresceram entre nós.
Os governos petistas não fomentaram a formação de uma nova classe média. Os batalhadores continuam sem qualquer privilégio de nascimento. A grande herança desses últimos 15 anos foi a manutenção desse processo de ascensão dos excluídos para uma classe trabalhadora, mesmo precarizada. Há inclusão no mercado, emprego formal e a possibilidade de investimento em educação para os filhos dos batalhadores. É preciso mudanças consequentes para se formar uma classe trabalhadora qualificada com alta produtividade, o grande desafio para o Brasil deixar de ser um exportador de matéria-prima. 
CC: Muitos dos novos trabalhadores têm ficado alheios à atuação sindical, e explicam sua ascensão social mais por méritos próprios ou pela intervenção divina do que pelo sucesso de políticas públicas. Isso fragiliza a base de apoio a um governo popular?
JS: Se a esquerda não construir uma alternativa, a única narrativa válida para os batalhadores será o pentecostalismo, que atrela em grande medida essa classe aos interesses de mercado. Isso não é, contudo, chapado. No Nordeste, essa classe percebe a relação da ascensão com os programas sociais, até porque lá a miséria anterior era muito maior. Sabem que devem a Lula. No Sudeste, a visão de que Deus ou o mérito pessoal foram mais relevantes é mais forte. Têm uma visão egoísta de mundo, atrelada a interesses de mercado. Essa própria classe não percebe quem são seus aliados políticos. O que mostra a pobreza de narrativa da própria esquerda. 
CC: Sobre as manifestações de junho de 2013, seu livro afirma que o dia 19 foi a grande virada, com a formação de um novo pacto conservador. Como o senhor interpreta a atual crise política em face desse pacto?
JS: Existe uma estrutura, uma gramática do golpe no Brasil. Ele mudou, modernizou-se, mas mantém a mesma estrutura. O golpe precisa do “bumbo” tocado pela imprensa conservadora, do suporte da classe média e de um elemento constitucional para dar a aparência de legalidade à captura da soberania popular. Nos governos democráticos de Getúlio Vargas e João Goulart, esse elemento eram os militares, pois a Constituição previa a intervenção das Forças Armadas em caso de desordem. Essa gramática modernizou-se: não está ancorada mais na botina do general, mas na toga da lei. O elemento constitucional atual são as agências de controle, a Polícia Federal, os juízes justiceiros, postos para além do bem e do mal. 
CC: Vivemos um momento crucial?
JS: É uma esquina da nossa história. Ou aprofundamos o que conquistamos nos últimos 15 anos, um processo abortado há 60 anos, ou voltamos a um Brasil governado para 20%, aquele erguido pelo golpe de 1964. 
Conclui-se que o atual presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o sociólogo Jessé de Souza é conhecido pelo pensamento agudo e a argumentação desassombrada. Seu novo livro, A Tolice da Inteligência Brasileira, confirma essas características. Ao analisar o desenvolvimento do pensamento no e sobre o País, Souza não poupa ninguém, nem mesmo Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Segundo ele, o pensamento culturalista brasileiro tornou-se um instrumento das elites para influenciar a classe média na demonização das instituições e da classe política, o que esconderia a verdadeira intenção da parcela mais rica do País: apropriar-se novamente do Estado brasileiro. 
*Entrevista publicada originalmente na edição 876 de CartaCapital, com o título "O demolidor"
http://www.cartacapital.com.br/revista/876/o-demolidor-8459.html