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3.27.2015

Entrevista com Simone Gebara: "Cabe a mulher revolucionar seu papel na igreja"

Papa tem boa vontade, mas não pode revolucionar papel da mulher da igreja
Paulo Emanuel Lopes - Adital - Sociedade e Gênero
"Falar em igualdade significa buscar, a cada novo contexto e a cada novo momento da história, sanar o egoísmo visceral que nos leva a preferir sempre nossos interesses em detrimento dos outros. Criamos a escravidão de todos os tipos, estabelecemos cores e etnias superiores umas às outras, sexos superiores a outros, orientações sexuais mais normais do que outras. E quem está do lado do poder e da normalidade não hesita em manter relações excludentes e culpabilizar "os diferentes" por muitos males do mundo"
Simone Gebara, teóloga feminista.

Estes e outros diálogos foram narrados a Paulo Emanuel, nesta entrevista que aprofunda o "ver" a pessoa na sociedade, na família, no trabalho, na escola.
O que se passa hoje dentro das relações da mulher com as comunidades e na igreja também fica fácil de ser entendido neste "papo" descontraído, mas atento.
reproducao
Teóloga feminista Ivone Gebara afirma que tradição masculina da Igreja ainda é muito forte.


Ivone esclarece, inclusive, ser errôneo falar em ‘uma maior participação da mulher na Igreja’, como se as mulheres não estivessem entre aqueles que a constroem diariamente. "Não se trata, portanto, de reinserção das mulheres na Igreja, como se as mulheres tivessem que inserir-se num lugar que não é o seu. Dá até a impressão de que a Igreja é uma realidade fora de nós”.
Para além da discussão sobre feminicídio e outras formas de violência contra a mulher no Brasil, a estudiosa mostra que essa análise não deve ser superficial, mas chegar à raiz da questão. "[Os estados e as religiões] Não percebem que a reprodução da violência contra as mulheres está ainda muito presente nos processos educacionais (...) O que nós, pensadoras feministas, fazemos é alertar as pessoas para não estabelecerem modelos teóricos e idealistas e mostrá-los como metas absolutas a serem alcançadas. Isto não funciona”.
Para o Dia Internacional da Mulher de 2015, celebrado domingo passado, 08 de março, apesar do aparente retrocesso observado no mundo, nesses últimos anos, é preciso reconhecer as conquistas e os avanços do movimento feminine, na visão da teóloga. "[Neste 08 de março de 2015] Temos que celebrar os enfrentamentos políticos de muitas mulheres que não hesitam em levantarem suas vozes contra a violência da ‘cultura política’ vigente. Temos que celebrar as inúmeras redes feministas que continuam seu labor de denunciarem os abusos dos poderosos e a manipulação dos nossos corpos. Temos que celebrar as mulheres que frequentam as igrejas e que são capazes de dizerem ao padre ou ao pastor ‘não estou de acordo com o senhor’".
Confira a entrevista que a teóloga Ivone Gebara concedeu com exclusividade à Adital.
Adital: Observamos pronunciamentos do Papa Francisco em apoio a uma maior participação da mulher na vida sacerdotal, embora saibamos que, em muitos casos, sua vontade esbarra no conservadorismo da Cúria Romana. Podemos esperar alguma mudança concreta nesse sentido para seu papado?
Ivone Gebara: Creio que, antes de falarmos dos pronunciamentos do Papa Francisco sobre as mulheres, é preciso lembrar três pontos para que tenhamos um pouco mais de clareza sobre a situação atual da Igreja Católica Romana. O primeiro deles tem o objetivo de recordar que a função das leis eclesiásticas e dos dogmas é de também exercerem uma certa contenção na vida dos fiéis. Determina-se o que deve ser objeto de crença para evitar a multiplicidade de interpretações e conflitos, que fragmentaram e fragmentam a comunidade de fiéis. Entretanto, não se pode esquecer que leis, dogmas e interpretações nascem em contextos históricos determinados. Estes são mutáveis e nunca deveriam ser estabelecidos como normas absolutas ou como vontade divina, como tem acontecido. Decorre daí o segundo ponto que se refere ao fato de se legitimarem essas novas leis e crenças como vontade de Deus ou de Jesus Cristo. Essas vontades, segundo muitos, são imutáveis. Estabelece-se assim um argumento de autoridade pronunciado ou promulgado pelo magistério da Igreja. E o último ponto que pode ser claramente observado é que esse magistério é masculino e, em geral, idoso e celibatário. As mulheres não participam diretamente dele como se, por ordem divina, elas devessem ser excluídas. Essa estrutura e interpretação patriarcal, considerada sagrada, dificulta mudanças mais significativas na atual cultura eclesiástica transmitida ao povo. A partir daí, se pode situar a questão em relação às mulheres.
O Papa Francisco tem boa vontade, procura entender algumas reivindicações vividas pelas mulheres, mas não tem condições de, vivendo dentro de uma tradição sagrada masculina, dar passos revolucionários para, de fato, promover a inovação necessária para o mundo de hoje. Ele é fruto do seu tempo, da sua formação clerical e dos limites que a englobam. Ouso dizer que é a comunidade cristã e, no caso, a católica romana, espalhada por tantos lugares, que deveria, a partir de suas vivências, ir exigindo de seus líderes mudanças de comportamento. Começar por baixo, embora os de cima também possam ajudar, na medida em que forem mais sensíveis e acolhedores aos sinais de cada tempo e de cada espaço, é um caminho para nos ajustarmos às necessidades atuais das mulheres e dos homens do nosso tempo.
Adital: Em seu novo livro "Evangelho e instituição", o monge Marcelo Barros afirma que a Igreja Católica deveria retornar a suas origens (primeiros séculos), quando as mulheres exerciam um papel mais ativo na Igreja. Na sua opinião, como deveria ser essa reinserção?
IG: Penso que a ideia de "retorno", no caso, retorno às origens cristãs, deve ser revisitada, pois, muitas vezes, podemos cair em anacronismos, mesmo involuntários. A referência às origens é uma espécie de saudade de algo bom que se gostaria de ter. É uma esperança em forma de discurso sobre as origens. Em geral, pensamos que o antes, o passado, as origens são sempre mais coerentes e verdadeiras. A volta ao útero materno, por exemplo, é uma aspiração de pretensa paz do desejo humano, como se 'naquele tempo' tudo estivesse bem. Na realidade, nas origens, podemos encontrar muitas coisas, inclusive aberrações e inadequações para o nosso tempo. Cada tempo é um tempo e tem suas grandezas e suas misérias. O tempo "que se chama hoje" é o nosso tempo real e é nele que devemos buscar novas formas de convivência, tendo ciência de que este é, como outros, um tempo limitado. Não se trata, portanto, de reinserção das mulheres na Igreja, como se as mulheres tivessem que inserir-se num lugar que não é o seu. Aliás, a linguagem eclesiástica e a linguagem de muitos de nós evidencia a dificuldade de acolhermos a Igreja como comunidade de irmãs e irmãos vivendo na diversidade de situações. Às vezes, tenho a impressão de que o termo igreja significa, para muitos, prioritariamente, a hierarquia, as funções de poder e autoridade.
É preciso afirmar que o que está acontecendo hoje tem a ver com um movimento cultural e social mundial, que vem mostrando um protagonismo e um papel feminino diferente daquele que conhecíamos até poucos anos atrás. Ser apenas mãe, ou filha ou esposa ou ocupar-se de prendas domésticas já não corresponde à realidade atual das mulheres. As identidades femininas estão passando por uma mutação muito grande. Outro aspecto importante é o de perceber os limites da pergunta sobre em que Igreja nós mulheres queremos nos inserir ou reinserir. Dá até a impressão de que a Igreja é uma realidade fora de nós. Por isso, muitos afirmam que "nós somos Igreja" e querem viver na prática esta afirmação. Seria ela apenas retórica? A meu ver, sim e não. Sim, na medida em que o discurso de muitos não corresponde aos comportamentos vividos no cotidiano das relações humanas. Não, na medida em que se percebe o compromisso de muitos em buscar caminhos de maior participação e igualdade nas relações da comunidade eclesial. A questão da igualdade entre os seres humanos é insolúvel.
Falar em igualdade significa buscar, a cada novo contexto e a cada novo momento da história, sanar o egoísmo visceral que nos leva a preferir sempre nossos interesses em detrimento dos outros. Criamos a escravidão de todos os tipos, estabelecemos cores e etnias superiores umas às outras, sexos superiores a outros, orientações sexuais mais normais do que outras. E quem está do lado do poder e da normalidade não hesita em manter relações excludentes e culpabilizar "os diferentes" por muitos males do mundo. Não há uma pré-definição da igualdade. O que nós pensadoras feministas fazemos é alertar as pessoas para não estabelecerem modelos teóricos e idealistas e mostrá-los como metas absolutas a serem alcançadas. Isto não funciona. O que parece que tem surtido algum efeito é colocarmo-nos em estado de educação contínua, uma educação que desperte em nós o valor de cada ser, sem a tentação de querer justificar a partir de visões hierárquicas pré-estabelecidas.
reproducao
Papa Francisco já defendeu uma maior participação feminina na igreja, mas descartou a permissão das mulheres exercerem o sacerdócio.


Adital: O que é a Teologia Feminista? Como essa corrente de pensamento entende o mundo atual? Quais os desafios nesse início de século XXI?
IG: O grande esforço da maioria das teologias feministas tem sido o de denunciar o absolutismo das interpretações bíblicas e teológicas do passado e ainda vigentes na maioria das Igrejas. Interpretações absolutistas são aquelas que usam Deus e as Escrituras para justificarem sua ideologia de manutenção de poderes e privilégios religiosos, muitas vezes disfarçados com capas de santidade e solidariedade. Esses poderes são exercidos em nome de Deus e são controladores dos corpos femininos, tanto em nível individual quanto cultural e social. O controle religioso dos corpos se dá, em primeiro lugar, no interior da dimensão simbólica da vida simbólica, ou seja, na estrutura subjetiva, em que valores e culpas se entrelaçam e tornam a pessoa cativa de um imaginário imposto de fora para dentro. Jogar com a vontade de Deus para manipular corpos querendo manter uma ordem imaginária denominada divina é impedir o direito ao pensamento e à liberdade.
Afirmar Deus como masculino, afirmar que existe uma vontade poderosa pré-existente, justificar o sacerdócio masculino a partir do sexo de Jesus, valorizar o corpo masculino como o único capaz de representar o corpo de Deus são afirmações teológicas ainda vigentes que tocam, de forma especial, os corpos femininos. Estas afirmações são, muitas vezes, produtoras de violência, de exclusão e do cultivo de relações de submissão ingênua à autoridade religiosa. Infelizmente, nesse começo de século, o espaço dado às teologias feministas é bem restrito. Seu acesso aos centros de formação teológica oficial na América Latina é bastante limitado. Por isso, está havendo uma migração significativa dos lugares de produção teológica para fora das instituições oficiais, visto que as formas de controle eclesiástico parecem desconhecer os avanços vividos pelas mulheres em nível nacional e mundial.
aleteia.org.
Para Ivone Gebara, o espaço na igreja para as teologias feministas ainda é muito restrito.


Adital: O mundo ainda convive com os feminicídios (muitos dos quais acabam impunes), mutilações genitais, pouca participação feminina na política... Quais os principais obstáculos para a plena dignidade feminina hoje?
IG: A produção da violência cultural e social contra grupos considerados inferiores por razões as mais diversas é uma constante nas culturas humanas. A afirmação da superioridade de uns em relação aos outros, as hierarquias de raça, gênero, cultura, de saberes e poderes são parte da história humana. As mulheres foram e são, em muitas culturas, consideradas seres subalternos, dependentes, objetos da vontade masculina, muito embora, hoje, os discursos oficiais dos Estados e das religiões falem de igualdade na diferença. Muitos adeptos dos discursos igualitários são capazes se denunciarem, por exemplo, a mutilação genital, sem dúvida, uma aberração e um crime, mas não são capazes de perceberem a produção da violência contra os corpos femininos nos discursos de bondade veiculados pelas diferentes expressões do Cristianismo. Denunciam os assassinatos de mulheres, a violência física direta, os feminicídios, mas não percebem que a reprodução da violência contra as mulheres está ainda muito presente nos processos educacionais.
A marca hierárquica excludente, presente em nossas relações, sem dúvida, necessária à continuidade da atual forma de capitalismo, mantém socialmente essa violência. Precisa dela e de outras para continuar a fabricar novas formas de privilégio e exclusão social. As mulheres apesar das muitas conquistas dos últimos anos ainda são no imaginário da cultura capitalista econômica e social bons bodes ou cabras expiatórias para serem acusadas de incompetência nos assuntos públicos. Essa cultura excludente, presente nas instituições sociais e culturais, é, sem dúvida, obstáculo para que homens e mulheres construam novas relações e reconheçam seus diferentes dons e saberes.
Adital: Alguns movimentos feministas, de forma a obterem espaço, utilizam, como estratégia, chocar a sociedade, expondo o corpo nu, autodenominar-se de "vadias"... Como você entende essa forma de protesto? É válida, válida com ressalvas ou colabora negativamente com o movimento feminista?
IG: Há uma ingenuidade dos analistas dos movimentos sociais na medida em que pretendem limitar os protestos e reivindicações às suas próprias concepções de decência, do permitido e do proibido. É claro que nos chocamos com a quebradeira dos grupos nas manifestações de rua e reclamamos quando isso atrapalha a nossa vida cotidiana. É claro que o diálogo sobre as reivindicações seria o melhor caminho. Mas nem sempre o sistema capitalista reconhece o melhor caminho e ele mesmo incita à violência sem controle, aquela que deixa sair o pior de nós contra os outros, aquela que é capaz de bombardear campos de arroz e destruir obras de arte milenares, aquela que me leva a roubar meu melhor amigo e mandar matar aquele que atrapalha meus planos políticos. Muitas formas radicais de protesto das mulheres chocam-nos porque não estamos habituados a um comportamento público das mulheres, sobretudo quando expõem o corpo nu como forma de protesto.
O corpo nu das mulheres continua sendo exposto para vender mercadorias masculinas, para excitar desejos, mas esse nu é suportável pela maioria. Esse nu aprovado pelo mercado dá dinheiro e favorece empreendimentos econômicos, pode ser no máximo criticado por alguns religiosos puristas. Entretanto, quem se perguntou por que esse grupo de mulheres se autodenominou de "vadias"? Qual a sua história? Do que reclamam com sua irreverência? O Google pode até dar uma resposta breve a essas pertinentes perguntas. Essas formas de protesto, penso, não atingem o movimento feminista mundial, visto que este é plural e tem formas variadas de expressão.
Adital: Durante as últimas eleições brasileiras, alguns analistas políticos afirmaram que uma das razões enfrentadas por Dilma Rousseff para sua reeleição deveu-se ao fato dela ser mulher. A afirmação soa um pouco estranha, haja vista a presença de mulheres na Presidência de países como Argentina, Chile, Alemanha... Na sua opinião, essa afirmação faz sentido? Nós, brasileiros, ainda somos um país machista?
IG: Creio que, na maioria dos países do mundo, mesmo as figuras femininas tradicionais fortes como Margaret Tachter e Indira Gandhi viveram os limites do poder impostos pela condição feminina. De fato, há um certo susto de se ter uma mulher no topo do poder de uma nação. De reclusa nos limites da vida privada para a ascensão pública o percurso é grande demais. Talvez o título de rainha seja até mais suportável porque envolvido com todos os aspectos fantasiosos do passado e da atual diminuição real desse poder. Nesse sentido, é quase espontâneo se atribuir ao governo de uma mulher deficiências, fraquezas e outras coisas no estilo.
Dilma Rousseff enfrenta, como outras mulheres, as dificuldades de estar no topo político da nação. Entretanto, o que a maioria das pessoas não vê é que a política de um país não depende apenas da/do presidente, mas depende, igualmente, das forças econômicas e políticas em jogo, assim como da participação dos cidadãos. Combinar políticas e propinas, interesses corporativos e bem comum, partidos de interesses sectários com a administração de um país de proporções continentais é um difícil jogo de xadrez. De fato, o machismo persiste no Brasil, mas a falta de caráter e de visão do bem comum é uma doença bem mais difundida e perigosa. Assola políticos e empresários, contagia a classe média e as classes populares, se instala nas instituições sociais e nas igrejas como praga a ser combatida diariamente.
Adital: No fim do ano passado, assistimos à infeliz declaração de um parlamentar brasileiro, que afirmou que "não estupraria" uma colega parlamentar "porque não queria". Como você analisa esse e outros casos parecidos?
IG: A falta de caráter e de visão do bem comum torna homens e mulheres cegos a qualquer visão humanista de respeito a cada ser humano na igualdade e diferença de uns em relação aos outros. O parlamentar brasileiro que usou essa e outras expressões durante sessões da Câmara mantém-se no poder porque a cultura política brasileira permite. Ele é útil ao' vale tudo', que se pode assistir nas ações e discursos dos políticos. A falta de decorro parlamentar é moeda de troca de privilégios políticos e satisfaz aqueles que buscam a justiça e a injustiça com as próprias mãos. Nessa situação, as mulheres não estão isentas desses pecados, embora os cometam com menor intensidade pública. Somos todas e todos essa mistura contraditória e paradoxal e é dentro dela que podemos encontrar caminhos que tornem a vida cidadã mais respeitada.
Papa tem boa vontade, mas não pode revolucionar papel da mulher da igreja

http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=84349


Paulo Emanuel Lopes

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O negro no futebol e o drible da liberdade

O conceito de drible e o drible do conceito: analogias entre a história do negro no futebol brasileiro e do epistemicídio na filosofia

Renato Noguera*

Fonte: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/o-conceito-de-drible-e-o-drible-do-conceito-analogias-entre-a-historia-do-negro-no-futebol-brasileiro-e-do-epistemicidio-na-filosofia/

Em quase toda a produção sobre a história do futebol brasileiro encontram-se três momentos narrativos integrados ou amalgamados que falam da chegada do futebol inglês e elitista ao Brasil, da sua popularização e do papel central do negro nesse processo. O primeiro momento narra a chegada do futebol e enfatiza a segregação dos negros e dos pobres, o segundo relata suas lutas e resistências e o terceiro descreve a democratização, ascensão e afirmação do negro no futebol (Soares, 1999, p.119).

Pré-jogo: apresentando o problema

Convido leitoras e leitores para um ensaio. Ou ainda, para um treino numa alusão explícita ao futebol. Por meio de uma genealogia do drible, este trabalho vai apresentar as linhas mestras da filosofia afroperspectivista. Em outras palavras, a relevância do conceito de drible para habilitar a legitimidade da produção filosófica africana e afrodiaspórica  a partir de uma genealogia do drible no futebol brasileiro. Na história do futebol brasileiro os jogadores negros sofreram inúmeras restrições por parte dos clubes, das regras de jogo e das associações oficiais de futebol, o que teria, segundo diversas hipóteses, gerado o drible brasileiro. Por outro lado, nos manuais e compêndios de história da filosofia, a produção fora do que se denomina Ocidente tem tido pouco ou nenhum reconhecimento. Com efeito, para uma significativa parcela de historiadores(as) da filosofia, a produção filosófica africana praticamente inexiste. Ou ainda, os povos negro-africanos sequer seriam capazes de filosofar. O filósofo alemão Hegel é, entre outros, tais como Kant, um exemplo dessa mentalidade racialista do século XIX:
A principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis […] negro representa, como já foi dito, o homem natural, selvagem e indomável […]. Neles, nada evoca a ideia do caráter humano […]. Entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos — ou, para ser mais exato, inexistentes (Hegel, 1999, p. 83-84).

A epígrafe de Antônio Jorge Soares afirma que a literatura acadêmica e jornalística, assim como a oralitura[1], sobre a história do futebol convergem para a ideia de que jogadores negros (pretos e pardos)[2] não tinham espaço nos times de futebol até a década de 1930 e, mesmo quando foram “aceitos”, a arbitragem tinha regras diferentes de tratamento para negros e brancos. Uma fonte maravilhosa de piso antropológico, sociológico e histórico da situação de jogadores negros é o livro O negro no futebol brasileiro, de Mário Filho. Esse vigoroso trabalho foi publicado pela primeira vez em 1947 e recebeu mais dois capítulos em 1964. Existem outros trabalhos a respeito e todos parecem concordar com um aspecto: os árbitros não marcavam faltas de jogadores brancos em jogadores negros, mas o inverso era rigorosamente punido. “Quando começaram a jogar o futebol por aqui, os negros não podiam derrubar, empurrar, ou mesmo esbarrar nos adversários brancos, sob pena de severa punição: os outros jogadores e até os policiais podiam bater no infrator” (Soares, 1999, p. 134-135). Pois bem, diante desse cenário a hipótese que se popularizou foi simples, jogadores negros precisaram encontrar novos espaços e maneiras de conduzir a bola que evitassem que eles esbarrassem nos brancos e fossem punidos. Como os jogadores negros não podiam tocar nos jogadores brancos, a hipótese foi o surgimento do drible como alternativa para que os jogadores negros pudessem se movimentar em campo. O drible, neste caso, é uma invenção negra. No entendimento de Mário Prata (1998), o drible é uma determinada transposição dos passes e ginga do samba para o interior das quatro linhas do jogo de futebol.
Ronaldinho foi considerado o melhor jogador do mundo em duas ocasiões vestindo a camisa do Barcelona com dribles incríveis.
Ronaldinho foi considerado o melhor jogador do mundo em duas ocasiões vestindo a camisa do Barcelona com dribles incríveis.
Neymar foi revelado pelo mesmo Santos do maior jogador de todos os tempos, Pelé. Santos que também revelou Robinho, autor das pedaladas.
Neymar foi revelado pelo mesmo Santos do maior jogador de todos os tempos, Pelé. Santos que também revelou Robinho, autor das pedaladas.
Robinho pedalando para cima dos adversários.
Robinho pedalando para cima dos adversários.

A primeira partida de futebol em terras brasileiras data de 1874, o jogo foi uma exibição para a Princesa Isabel. Em 1916, começa a efetiva profissionalização com a criação da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e a respectiva filiação à Confederação Sul-Americana de Futebol (Comembol) e à Fifa (Federação Internacional de Futebol). Nessa ocasião, apenas sócios de clubes, ou seja, membros da alta sociedade podiam jogar, o que fazia do futebol um esporte muito elitista. Gordon Jr. (1995) comenta que até 1918 era formalmente vedada pela Federação Brasileira de Sports a inscrição de negros nos clubes de futebol.
O caso de homens brancos de classe média e classe popular era bem diferente dos negros. Caso aqueles tivessem um “padrinho” o acesso ao clube era possível porque bastaria seguir as normas do clube, passando-se como um homem de “boa família”. Isso era impossível para os negros interessados em jogar nos clubes de futebol. Somente a partir de 1919 e 1920, alguns clubes começaram a aceitar jogadores negros. As restrições impostas aos jogadores negros diferiam muito das que eram colocadas aos brancos pobres. Com efeito, brancos trajados com uniformes não tinham nada que atestasse suas origens, o que conferia sua aceitação era o fenótipo étnico-racial. Sem dúvida, os sócios em geral não aceitavam negros no time de futebol, muito menos circulando livremente pelos clubes. Isso foi uma das motivações dos sócios (brancos) para profissionalizar o esporte na década de 1930 nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, pois era mais confortável pagar salários e torná-los funcionários.

O 1º tempo do jogo: a genealogia do drible no futebol brasileiro

Na década de 1920, as restrições impostas aos jogadores negros eram maiores nos clubes mais elitistas. Por exemplo, o Fluminense no Rio de Janeiro aceitou o jogador Carlos Alberto com a condição de que a maquiagem o tornasse “branco”; no Rio Grande do Sul, o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, fundado em 1903, só aceitou um jogador negro em 1952, com a entrada do consagrado Tesourinha, ex-jogador do Vasco da Gama e do Internacional. Não são raras as notícias referentes às maquiagens que procuravam embranquecer os jogadores negros. Por outro lado, a popularidade de clubes como o Bangu, o Vasco da Gama e o Botafogo, todos do Rio de Janeiro, fortaleceu-se pela inclusão de jogadores negros. Na década de 1920, o Vasco da Gama se notabilizou por ter sido vitorioso num campeonato no qual o seu elenco era assumidamente multiétnico e plurirracial.
O clube do Vasco da Gama foi o primeiro time campeão com jogadores negros. Negrito e Cleuci — dois jogadores negros — marcaram os gols na final do Campeonato de 1923. Para Mário Filho (1964), a conquista vascaína do campeonato da cidade do Rio de Janeiro de 1923 foi um motivo decisivo para o seu desligamento do clube da Liga de Futebol. Existem outros exemplos de restrições de cunho racial. Em 13 de maio de 1914, num jogo entre o Fluminense e o América, Carlos Alberto Fonseca, ex-jogador do América, estava no elenco do tricolor. As restrições aos jogadores negros era regra no Fluminense. Por isso, Carlos Alberto passava um bom tempo fazendo uma maquiagem que servia de disfarce para deixá-lo “branco”; mas, como era de se esperar, no decorrer da partida o suor fazia a maquiagem ceder e ele aparecia como era: negro. O que fez a torcida do América gritar em tom provocativo que o referido jogador era pó de arroz!
Arthur Friedenreich é outro bom exemplo dos disfarces que todos os afrodescendentes empreendiam dentro dos clubes na década de 1910. Friedenreich era paulistano, filho de uma mulher negra brasileira e um estrangeiro branco alemão, jogou em vários clubes de São Paulo, no Flamengo e fez 23 partidas pela seleção brasileira. O seu ritual incluía alisar o cabelo, além de fazer uma maquiagem que contava com muito pó de arroz. Com efeito, todas essas situações, a desfiliação do Vasco, a restrição do Grêmio aos jogadores negros até 1952, a maquiagem dos jogadores Carlos Alberto e Friedenreich, são exemplos de um ideal dos clubes em manter o futebol como “coisa de branco”.
Arthur Friedendreich (1892-1969)
Arthur Friedendreich (1892-1969)

Conforme Mário Filho, as décadas de 1930 e 1940 foram o início da “naturalização” da inclusão de jogadores negros nos clubes brasileiros, embora por acordo tácito, a arbitragem continuasse usando “dois pesos e duas medidas”. O racismo, que antes impedia que negros jogassem e que depois já “aceitava” jogadores negros desde que parecessem brancos, nas duas décadas seguintes se organizou mais em torno da arbitragem. As faltas dos brancos em negros não eram punidas, enquanto as faltas de negros em brancos recebiam sanções severas. Pois bem, aqui surge o momento para dar curso à nossa articulação chave. O que consta na oralitura sobre futebol e relações étnico-raciais, tal como os relatos gravados de Domingos da Guia[3], e se tornou objeto de pesquisa do documentarista moçambicano Victor Lopes, é que a restrição informal imposta aos jogadores negros provocou os usos dos passes do samba dentro de campo. O documentarista retoma e explicita a hipótese que teria começado com Mário Filho.
A defesa aqui impetrada não recusa que o drible existisse fora do Brasil; mas reivindica que a invenção do drible no Brasil inaugura um modo distinto de driblar, o que pode ser entendido como a efetiva “invenção do drible”, e que isso se deve à regra informal dentro de campo que retratava as restrições étnico-raciais da sociedade brasileira. A hipótese é de que o drible rateado, a mudança de ritmos com que a bola é conduzida “presa” e volta a ser colocada em movimento, foi uma invenção de jogadores negros brasileiros. É interessante notar que existem duas perspectivas acerca da etimologia da palavra “drible”. Por um lado, dribble, que em inglês significa babar e por extensão gotejar ou pingar, já aparecia no futebol em 1863. Ao mesmo tempo, existe a palavra dibo que na língua kikongo significa tanto o nome de uma planta quanto um tipo de dança, ou ainda, radical da palavra “dibotar”, que significa discursar, palavrear. A minha interpretação é que o drible derivado de dibo tem vários sentidos, tanto dançar quanto palavrear. Sendo assim, podemos interpretar que o sentido de discursar em Kikongo remete a dançar com as palavras, rodopiar com as letras ou ter molejo com o que se diz para conduzir quem ouve para onde se deseja.
Num programa feito pelo jornalista Pedro Bial[4], o filme de Victor Lopes foi contestado por vários jornalistas. A tese mais corrente é de que o drible teria nascido com o próprio futebol. Conforme vários relatos, o jogador Charles Miller já driblava na Inglaterra. Mas uma reportagem da imprensa na Copa do Mundo realizada na França em 1938 parece reforçar a hipótese de Victor Lopes. O jornal Le Miroir de Sports disse que os jogadores brasileiros pareciam malabaristas; sobre Leônidas da Silva foram elencadas uma série de expressões como: “diabo preto”, “acrobata”, “dado a fazer piruetas”, capaz de “plantar bananeira”, capaz de “saltar como carpa”. Todo esse repertório se referia aos dribles de Leônidas, também conhecido como Diamante Negro, o inventor da “bicicleta”[5]. Ou seja, ainda que o drible existisse no futebol, um jogador negro brasileiro  surpreendia. Nós acreditamos que a surpresa se deve ao tipo de drible made in Black Brazil.
Com efeito, nossa defesa é que o drible no Brasil feito pelos jogadores negros nasceu com uma singularidade, ainda que o jogador branco brasileiro Charles Miller também driblasse, devido à regra informal que permitia punição aos jogadores negros que cometessem faltas contra os jogadores brancos e, por isso, tornava importante não tocá-los. Domingos da Guia, exímio jogador da seleção brasileira de 1938, foi eleito o melhor zagueiro da competição naquele ano e numa entrevista foi categórico. Conforme arquivos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)[6], Domingos disse que tinha medo de jogar futebol porque assistia aos jogadores negros serem agredidos por faltas ostensivas dos brancos sem restrições da arbitragem. O relato de Domingos que segue elucida bastante o cenário do futebol nesse período:
Ainda garoto eu tinha medo de jogar futebol, porque vi muitas vezes jogador negro, lá em Bangu, apanhar em campo, só porque fazia uma falta, nem isso às vezes (…) Meu irmão mais velho me dizia: “Malandro é o gato que sempre cai de pé… Tu não é bom de baile?” Eu era bom de baile mesmo, e isso me ajudou em campo… Eu gingava muito… O tal do drible curto eu inventei imitando o miudinho, aquele tipo de samba (Domingos da Guia, vídeo Núcleo/UERJ, 1995).
Domingos da Guia (1912-2000)
Domingos da Guia (1912-2000)

O ex-zagueiro da seleção disse que levou o samba miudinho para dentro de campo, relatando que seus dribles eram a transposição dos passos de sambista para dentro de campo. Em outras palavras, o corpo passou a ser usado integralmente nas jogadas. Mesmo que a palavra tenha origem na língua inglesa, o drible cunhado pelos pés (negros) brasileiros é mais herdeiro do dibo do que do dribble.
Vale a pena recapitular os dois aspectos gerais da genealogia do drible no Brasil. O primeiro é a regra informal, tácita e não registrada que foi a bússola da arbitragem. O segundo aspecto, os usos dos passes do samba e quiçá da capoeira dentro de campo como forma de finta, defesa e, ao mesmo tempo, tática de ataque diante das limitações impostas pelas regras do futebol.

O 2º tempo: o conceito de drible na filosofia afroperspectivista

Cheik Anta Diop foi um pesquisador brilhante que atuou em diversas áreas: filosofia, história, antropologia, física etc. Sempre ocupado com a reabilitação dos povos negro-africanos diante do racismo epistêmico, deu visibilidade para material escrito por africanos com datação anterior aos textos gregos que são tratados de filosofia.
Cheik Anta Diop foi um pesquisador brilhante que atuou em diversas áreas: filosofia, história, antropologia, física etc. Sempre ocupado com a reabilitação dos povos negro-africanos diante do racismo epistêmico, deu visibilidade para material escrito por africanos com datação anterior aos textos gregos que são tratados de filosofia.
Molefi Asante tem uma pesquisa muito elucidativa que se transformou no livro <em>The Egyptian philosophers: ancient African voices from Imhotepto Akhenaten</em>. É um grande catálogo sistematizado de filósofos egípcios com textos que antecedem os primeiros filósofos gregos.
Molefi Asante tem uma pesquisa muito elucidativa que se transformou no livro <em>The Egyptian philosophers: ancient African voices from Imhotepto Akhenaten</em>. É um grande catálogo sistematizado de filósofos egípcios com textos que antecedem os primeiros filósofos gregos.

A parte final deste trabalho é a transposição do drible como quesito do futebol para um terreno filosófico. Por que razões tomar o conceito de drible emprestado? Cabe explicitar de início o que entendemos por filosofia afroperspectivista. A expressão conceitual — filosofia afroperspectivista — surgiu a partir da dinâmica de pesquisa do Grupo de Estudos de Filosofia Africana que integra o Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções (Afrosin), registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e sediado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Desde 2010, esse grupo tem se reunido para realizar pesquisas que buscam recensear, conhecer e dar visibilidade às produções filosóficas africanas e afrodiaspóricas no cenário mundial. O termo afroperspectivista funciona de dois modos: 1) Um conceito guarda-chuva que indica o conjunto de trabalhos realizados por filósofas(os) africanas(os) e afrodiaspóricas(os), sobretudo, pesquisas que partem dos universos culturais africanos ou têm esses universos como referências-chave; 2) Um projeto de pesquisa na grande área de conhecimento da filosofia, que opera de modo intercultural e é organizado por princípios que levam em conta a riqueza cultural e a herança dos povos africanos no Brasil e no mundo da afrodiáspora. Nessa segunda definição surge um trabalho de pesquisa que tem operado com algumas questões específicas, entre elas, a do surgimento da filosofia.
Angela Davis é uma filósofa afro-americana que tem feito um notável trabalho de crítica das relações culturais e da <em>hegemonia</em> política, examinando os conceitos de classe, raça e gênero dentro do que chamamos filosofia afroperspectivista.
Angela Davis é uma filósofa afro-americana que tem feito um notável trabalho de crítica das relações culturais e da <em>hegemonia</em> política, examinando os conceitos de classe, raça e gênero dentro do que chamamos filosofia afroperspectivista.

A orientação deste trabalho está na comparação das restrições sofridas pelos jogadores negros dentro do futebol brasileiro nas primeiras décadas do século XX com a postura da historiografia filosófica “oficial” — dos manuais e compêndios — que desconsidera a produção negro-africana. Nesse sentido, a filosofia afroperspectivista é uma crítica à colonialidade do poder[7], ao epistemicídio[8], ao processo de invisibilidade das vozes que não são ocidentais. O drible é o exercício de encontrar canais para a visibilidade do pensamento filosófico africano, assim como da filosofia afrodiaspórica. Um traço do drible é desvincular a filosofia dos seus modos de preservação e transmissão. Omorogme recomenda: “nós devemos distinguir entre filosofia e os modos de transmiti-la e preservá-la. Reflexões filosóficas podem ser preservadas e transmitidas de diversas maneiras” (Omoregbe, 1998, p. 70). O drible é um modo de encontrar saídas, alternativas para a interdição de espaço. É, nesse caso, a possibilidade de adentrarmos no exercício filosófico, encontrando e legitimando a existência de modos de circulação de ideias filosóficas africanas:

Nós temos fragmentos de suas reflexões filosóficas e suas perspectivas foram preservadas e transmitidas por meio de outros registros como mitos, aforismos, máximas de sabedoria, provérbios tradicionais, contos e, especialmente, através da religião […] Além das mitologias, máximas de sabedoria e visões de mundo, o conhecimento (filosófico) também pode ser preservado e reconhecido na organização político-social elaborada por um povo (Omoregbe, 1998, p. 74).

Ao invés de submeter o pensamento filosófico africano, assim como o afrodiaspórico, as mesmas formas da filosofia ocidental, podemos operar com outras plataformas. Dito de outro modo, se antes entendíamos que a filosofia só pode ser reconhecida em textos que obedecem a uma determinada estrutura, diante das estratégias do drible é plausível considerar que a filosofia pode estar registrada em formas diferentes que não se organizam pelas normas de um texto de filosofia ocidental.
Entre os escritos do Ptah-Hotep foram preservadas 37 máximas de sabedoria de vida disponíveis no Papiro Prisse, além de outros dois papiros com fragmentos atribuídos ao mesmo autor. Conforme os estudos de vários egiptólogos, o material foi escrito aproximadamente 2.200 anos Antes da Era Comum. As máximas foram organizadas primeiro por Christian Jacq, no livro <em>Les Maximes de Ptah-Hotep, l’enseignement d’un sage au temps des pyramides</em> (2004).
Entre os escritos do Ptah-Hotep foram preservadas 37 máximas de sabedoria de vida disponíveis no Papiro Prisse, além de outros dois papiros com fragmentos atribuídos ao mesmo autor. Conforme os estudos de vários egiptólogos, o material foi escrito aproximadamente 2.200 anos Antes da Era Comum. As máximas foram organizadas primeiro por Christian Jacq, no livro <em>Les Maximes de Ptah-Hotep, l’enseignement d’un sage au temps des pyramides</em> (2004).

Pois bem, qual seria o primeiro argumento de uma filósofa ou filósofo ocidental que acredita que a filosofia nasceu na Grécia? Sem dúvida, diria: então por que chamar esse pensamento de filosofia? Aqui outro aspecto do drible. Numa sociedade marcada pela colonialidade, a recusa da filosofia a alguns povos precisa ser revisitada criticamente. Nós estamos de acordo com o filósofo sul-africano Mogobe Ramose: a dúvida sobre a filosofia africana “é, fundamentalmente, um questionamento sobre o estatuto ontológico acerca do estatuto ontológico da humanidade de africanos” (Ramose, 2011, p.8). Para Ramose (2011), a escravização negro-africana foi o resultado de um imperativo prático que passou a satisfazer “logicamente” as necessidades psicológicas e materiais dos colonizadores europeus. Em outros termos, a humanidade negro-africana seria menor, inferior, inclusive (ou, sobretudo?), porque os africanos não seriam capazes de produzir filosofia. Afinal, o filósofo ganense Anthony Kwame Appiah acerta em suas considerações ao dizer que: “‘Filosofia’ é o rótulo de maior status no humanismo ocidental. Pretender-se com direito à filosofia é reivindicar o que há de mais importante, mais difícil e mais fundamental na tradição do Ocidente” (Appiah, 1997, p. 131).
Na historiografia filosófica hegemônica da antiguidade, os trabalhos africanos são terminantemente desconhecidos ou “esquecidos”. Então, se faz necessário um esforço de ruptura com esse esquecimento. O drible é a problematização da filosofia como uma atividade exclusivamente ocidental, um exercício de justificação da filosofia como atividade pluriversal. Vale explicitar melhor o que denominamos, na esteira do filósofo sul-africano Mogobe Ramose, de pluriversal. Para Ramose (2011), o conceito de universo coube na ciência moderna, a saber: um paradigma que tinha como referencial o cosmos dotado de um centro e periferias. Em seu ensaio ele diz: “optamos por adotar esta mudança de paradigma e falar de pluriverso, ao invés de universo” (2011, p. 10). Afinal, se a pluriversalidade (Ramose, 2011) rompe com a dicotomia, podemos compreender que o universalismo (europeu) não dá conta de todas as formas de fazer filosofia, tal como nós não podemos reduzir a música enquanto expressão pluriversal a um gênero como o jazz, a música erudita ou o samba. Em suma, o pluriversal é um paradigma que inclui o universal, entendendo-o como um sistema local entre outros. O pluriversal é a reunião das universalidades, dos sistemas locais que se pretendem únicos, mas coabitam e coexistem com outros. É equívoco tomar a filosofia como sinônimo de sua versão ocidental.
O conceito de drible, por sua vez, é uma objeção com caráter propositivo. Primeiro, objeta e recusa a invisibilidade da filosofia afroperspectivista — africana e afrodiaspórica — e propõe o reconhecimento de outras plataformas para formulação e circulação da filosofia. Se, por um lado, o futebol foi um palco de restrições aos jogadores negros no início do século XX, por outro, o mundo acadêmico, o circuito em rede de produção de conhecimento (filosófico) tem permanecido blindado, seja em maior ou menor grau, para o que não é ocidental. A filosofia afroperspectivista tem sido negada pela história oficial da filosofia. O passe do miudinho foi tirado das rodas de samba por Domingos da Guia para evitar a violência consentida que jogadores negros sofriam. Do mesmo modo, a violência do racismo epistêmico pode ser driblada através do reconhecimento das máximas africanas de sabedoria de vida que existem há aproximadamente 3.000, 4.000 anos como enunciados filosóficos que em nada devem às formulações ocidentais.
Como exemplo e conclusão, trazemos um trecho das Máximas de Ptah-Hotep compiladas por Jacq (2004). O filósofo egípcio, ignorado pelos manuais e compêndios de filosofia, viveu por volta de 2200 anos antes da Era Comum e deixou, antes dos primeiros filósofos gregos, um conjunto de máximas filosóficas pouco conhecidas. Ele se ocupava de temas como a liberdade e definia o coração como lugar dos pensamentos e das emoções, como o filósofo Epicuro de Samos (314 a.E.C – 270 a.E.C) se ocupava de reflexões sobre a arte de uma vida feliz e deixou a Carta a Meneceu também chamada de Carta sobre a felicidade. Disse Ptah-Hotep: “As palavras sábias são mais raras do que as pedras preciosas e podem provir até de jovens escravas” (Jacq, 2004, p. 53). Reconhece que a sabedoria, a capacidade de pensar adequadamente é rara; mas, acessível a todas as pessoas. O mesmo foi dito séculos mais tarde no Mênon de Platão, quando Sócrates demonstra que um escravo consegue resolver um teorema. O ligeiro exemplo está longe de solucionar o debate, mas dá inicio a um novo encaminhamento.
Por fim, num futuro próximo, em outros jogos, novas jogadas aparecerão. O esquema tático do jogo permanecerá sendo considerar a pluriversalidade e os dribles que são inerentes à atividade filosófica. Ptah-Hotep e outros filósofos antigos surgirão detidamente comentados.

* Renato Noguera é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor de Filosofia do Departamento de Educação e Sociedade (DES) e do Colegiado de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Leafro) e do Laboratório “Práxis filosófica” de Análise e Produção de Recursos Didáticos e Paradidáticos para o Ensino de Filosofia da UFRRJ.
[1] Conforme Juan José Prat Ferrer, “o conceito de oralitura se contrapõe ao de literatura ao se referir a expressão oral (recitação, dramatização ou atuação) das produções artísticas verbais” (FERRER, 2010, p. 26). As primeiras pessoas a trabalharem com o conceito de oratura ou oralitura foram o linguista ugandense Pio Zirimu, além de uma dupla nascida no Quênia, o escritor keniano Ngũgĩ Wa Thiong, professor de literatura comparada da Universidade da Califórnia, e a professora de Artes Micere Mugo. “Se a escrita é a ação e efeito de escrever, a oralidade é ação e efeito de falar, se a literatura é a arte e a teoria da composição escrita assim como o conjunto de obras produzidas de acordo com esta arte, a oralitura é a arte e teoria da composição oral assim como o repertório de obras produzidas de acordo com esta arte” (Ferrer, 2010, p. 27).
[2] O IBGE aplica estas duas categorias em suas pesquisas (pretos e pardos), o conceito negro é usado como a soma de pretos e pardos. Para fins de elucidação, a “distinção” entre pretos e pardos é a pigmentação, ambos são afrodescentes. Esta explicação é necessária para que leitoras e leitores entendam que não usamos aqui termos como mestiços e mulatos. Essas categorias (mulatos e mestiços) aparecem em muitas referências bibliográficas sobre o assunto. Porém, a nossa opção teórica e metodológica faz uso de três categorias: pardos (negros menos pigmentados), pretos (negros mais pigmentados) e negros — o somatório de pretos e pardos. Pretos e pardos são as categorias oficiais do Estado. Negros é uma categoria que foi construída politicamente pelos movimentos sociais e pesquisas acadêmicas antirracistas. Por isso, por jogadores negros se deve entender a soma de pretos e pardos — as duas categorias oficiais do Estado brasileiro.
[3] Domingos da Guia nasceu em 19 de novembro de 1912 e faleceu em 18 de maio de 2000. Revelado pelo Bangu — seu nome integra o hino do Clube —, ele jogou em times como Vasco, Nacional (Uruguai), Boca Juniors (Argentina), Flamengo e foi zagueiro da Seleção Brasileira de Futebol. O relato foi recolhido em um trabalho feito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), disponível em www.ludopedio.com.br/rc/upload/files/052346_1233.pdf / www.youtube.com/watch?v=7pmIlxf7Hdc acessado em 31 de outubro de 2011.
[4] http://globotv.globo.com/globo-news/globo-news/v/qual-a-origem-do-drible-no-futebol/1278014/ acessado em 20 de julho de 2012.
[5] Bicicleta no futebol é uma jogada em que o atleta fica de costas para o gol adversário, gira o corpo e chuta a bola por cima da cabeça.
[6] www.youtube.com/watch?v=7pmIlxf7Hdc acessado em 31 de outubro de 2011.
[7] A colonialidade do poder é o eixo que organizou e continua organizando a diferença colonial, a periferia como natureza e a cultura ocidental, o capitalismo e os seus dispositivos como “civilização” normativa e centro.
[8] Epistemicídio aqui é entendido como injustiça cognitiva que destrói territórios epistêmicos não hegemônicos.

Referências:
APPIAH, Kwame Anthony. Na Casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
ASANTE, Molefi. The Egyptian philosophers: ancient African voices from Imhotep to Akhenaten. Chicago: African American Images, 2000.
DAMO, Arlei. Do dom à profissão: uma etnografia do futebol de espetáculo a partir da formação de jogadores no Brasil e na França. Tese de doutorado. Porto Alegre: UFRGS/PPGAS, 2005. Disponível em: www.biblioteca.ufrgs.br/ Bibliotecadigital.
FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1994.
GUEDES, Simoni. “Malandros, caxias e estrangeiros no futebol: de heróis e anti-heróis”. In: GOMES, Laura; DRUMMOND, José. O Brasil não é para principiantes. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 126-42.
GUEDES, Simoni. “De Criollos e Capoeiras: notas sobre futebol e identidade nacional na Argentina e no Brasil”. Exposição realizada no XXVI Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu (MG), 22 a 26 de outubro de 2002.
GUEDES, Simoni. O Brasil no campo de futebol. Niterói: Editora da UFF, 1998.
GUTERMAN, M. O futebol explica o Brasil. São Paulo: Contexto, 2009.
JACQ, Christian. Les maximes de Ptah-Hotep: l’enseignement d’un sage au temps des pyramides. Fuveau: La Maison de Vie, 2004.
JAMES, George G. M. Stolen legacy: The Greek Philosophy is a stolen Egyptian Philosophy. Drewryville: Khalifah’s Booksellers & Associates June, 2005.
LEITE LOPES, José S. “Fútbol y classes populares en Brasil. Color, clase e identidad a través del deporte”. In: Nueva Sociedad. Venezuela, nº 154, mar-abr, 1998, p. 124-46.
LEITE LOPES, José S. “Les origines du jeu à la Brésilienne”. In: HÉLAL, Henri e MIGNON, Patrick (orgs). Football, jeu et société. Les cahiers de L’INSEP, nº 25, 1999, p. 65-84.
LEITE LOPES, J. Sérgio e FAGUER, Jean Pierre (1994). “L’invention du style brésilien”. In: Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Nº 103, p. 27-35.
SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, p. 313-340.
NEGREIROS, Plínio. “O futebol e identidade nacional: o caso da Copa de 1938”. In: Lecturas: Educación Física y Deportes. Buenos Aires, ano 3, nº 10, maio de 1998. Disponível em: www.efdeportes.com/efd10/copa38.htm
NOGUERA, Renato. Ensino de filosofia e a lei 10639. Rio de Janeiro: Ceap, 2011.
OMOREGBE, Joseph. “African Philosophy: yesterday and today”. In: EZE, Emmanuel Chukwudi (org.). African Philosophy: an anthology. Oxford: Blackwell Publishers, 1998.
RAMOSE, Mogobe. African philosophy through ubuntu. Harare: Mond Books, 1999.
RAMOSE, Mogobe. “Globalização e Ubuntu”. In: SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, p. 175-220.
RAMOSE, Mogobe. “Sobre a legitimidade e o estudo da filosofia africana”. Trad. Dirce Eleonora Nigo Solis, Rafael Medina Lopes e Roberta Ribeiro Cassiano. In: Ensaios Filosóficos, Volume IV, Outubro de 2011.
SOARES, Antônio Jorge. “História e a invenção de tradições no futebol brasileiro”. In:
HELAL, Ronaldo, SOARES, Antônio e LOVISOLO, Hugo. A invenção do país do futebol. Rio de Janeiro: Mauad, 2001, p. 77-99.

3.26.2015

Encontro de teólogo com ex-presidente e seu fusquinha

Uma experiência de choque: o encontro com José Mujica
Leonardo Boff
 
Agência Adital - Sociedade e Pessoas
 
Participando de um congresso ibero-americano sobre Medicina Familiar e Comunitária, realizado em Montevidéo dos dias 18-22 de março, tive a oportunidade sempre desejada de um encontro com o ex-presidente do Uruguai José Mujica. Finalmente foi possível no dia 17 de março por volta das 16.00 horas. Tal encontro deu-se em sua Chácara, nos arredores da capital Montevidéo.

 
Encontramos uma pessoa que vendo-a e ouvindo-a somos imediatamente remetidos a figuras clássicas do passado, como Leon Tolstoi, Mahatma Gandhi, Chico Mendes e até com Francisco de Assis. Aí estava ele com sua camisa suada e rasgada pelo trabalho no campo, com uma calça de esporte muito usada e sandálias rudes, deixando ver uns pés empoeirados como quem vem da faina da terra. Vive numa casa humilde e ao lado, o velho fusca que não anda mais que 70 km a hora. Já lhe ofereceram um milhão de dólares por ele; rejeitou a oferta por respeito ao velho carro que diariamente o levava ao palácio presidencial e por consideração do amigo que lho havia dado de presente. Rejeita que o considerem pobre. Diz: "não sou pobre, porque tenho tudo o que preciso para viver; pobre não é não ter; é estar fora da comunidade; e eu não estou”.
Pertenceu à resistência à ditadura militar. Viveu na prisão por treze anos e por um bom tempo dentro de um poço, coisa que lhe deixou sequelas até os dias de hoje. Mas nunca fala disso, nem mostra o mínimo ressentimento. Comenta que a vida lhe fez passar por muitas situações difíceis; mas todas eram boas para lhe dar sábias lições e por e fazê-lo crescer.
Conversamos por mais de uma hora e meia. Começamos com a situação do Brasil e, em geral da América Latina. Mostrou-se muito solidário com Dilma especialmente em sua determinação de cobrar investigação rigorosa e punição adequada aos corruptos e corruptores do caso penoso da Petrobrás. Não deixou de assinalar que há uma política orquestrada a partir dos Estados Unidos de desestabilizar governos que tentam realizar um projeto autônomo de país. Isso está ocorrendo no Norte da África e pode estar em curso também na América Latina e no Brasil. Sempre em articulação com os setores mais abastados e poderosos de dentro do país que temem mudanças sociais que lhes podem ameaçar os privilégios históricos.
Mas a grande conversa foi sobre a situação do sistema- vida e do sistema-Terra. Ai me dei conta do horizonte vasto de sua visão de mundo. Enfatizava que a questão axial hoje não reside na preocupação pelo Uruguai, seu pais, nem por nosso continente latino-americano, mas pelo destino de nosso planeta e do futuro de nossa civilização. Dizia, entre meditativo e preocupado, que talvez tenhamos que assistir a grandes catástrofes até que os chefes de Estado se deem conta da gravidade de nossa situação como espécie e tomar medidas salvadoras. Caso contrário, vamos ao encontro de uma tragédia ecológico-social inimaginável.
O triste, comentava Mujica, é perceber que entre os chefes de Estado, especialmente, das grandes potências econômicas, não se verifica nenhuma preocupação em criar um gestão plural e global do planeta Terra, já que os problemas são planetários. Cada país prefere defender seus direitos particulares, sem dar-se conta das ameaças gerais que pesam sobre a totalidade de nosso destino.
Mas o ponto alto da conversação, sobre o qual pretendo voltar, foi sobre a urgência de criarmos uma cultura alternativa à dominante, a cultura do capital. De pouco vale, sublinhava, trocarmos de modo de produção, de distribuição e de consumo se ainda mantemos os hábitos e "valores” vividos e proclamados pela cultura do capital. Esta aprisionou toda a humanidade com a ideia de que precisamos crescer de forma ilimitada e de buscar um bem estar material sem fim. Esta cultura opõe ricos e pobres. E induz os pobres a buscarem ser como os ricos. Agiliza todos os meios para que se façam consumidores. Quanto mais são inseridos no consumo mais demandas fazem, porque o desejo induzido é ilimitado e nunca sacia o ser humano. A pretensa felicidade prometida se esvai numa grande insatisfação e vazio existencial.
A cultura do capital, acentuava Mujica, não pode nos dar felicidade, porque nos ocupa totalmente, na ânsia de acumular e de crescer, não nos deixando tempo de vida para simplesmente viver, celebrar a convivência com outros e nos sentir inseridos na natureza. Essa cultura é anti-vida e anti-natureza, devastada pela voracidade produtivista e consumista.
Importa viver o que pensamos, caso contrário, pensamos como vivemos: a espiral infernal do consumo incessante. Impõe-se a simplicidade voluntária, a sobriedade compartida e a comunhão com as pessoas e com toda a realidade. É difícil, constatava Mujica, construir as bases para esta cultura humanitária e amiga da vida. Mas temos que começar por nós mesmos.
Eu comentei: "o Sr. nos oferece um vivo exemplo de que isso é possível e está no âmbito das virtualidades humanas”.
No final, abraçando-nos fortemente, lhe comentei:”digo com sinceridade e com humildade: vejo que há duas pessoas no mundo que me inspiram e me dão esperança: o Papa Francisco e Pepe Mujica”. Nada disse. Olhou-me profundamente e vi que seus olhos se emudeceram de emoção.
Sai do encontro como quem viveu um choque existencial benfazejo: me confirmou naquilo que com tantos outros pensamos e procuramos viver. E agradeci a Deus por nos ter dado um pessoa com tanto carisma, tanta simplicidade, tanta inteireza e tanta irradiação de vida e de amor.
Fonte: leonardoboff.wordpress

Leonardo Boff

Doutorou-se em teologia pela Universidade de Munique. Foi professor de teologia sistemática e ecumênica com os Franciscanos em Petrópolis e depois professor de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Conta-se entre um dos iniciadores da teologia da libertação. É assessor de movimentos populares. Conhecido como professor e conferencista no país e no estrangeiro nas áreas de teologia, filosofia, ética, espiritualidade e ecologia. Em 1985 foi condenado a um ano de silêncio obsequioso pelo ex-Santo Ofício, por suas teses no livro Igreja: carisma e poder (Record).
A partir dos anos 80 começou a aprofundar a questão ecológica como prolongamento da teologia da libertação, pois não somente se deve ouvir o grito do oprimido, mas também o grito da Terra porque ambos devem ser libertados. Em razão deste compromisso participou da redação da Carta da Terra junto com M. Gorbachev, S. Rockfeller e outros. Escreveu vários livros e foi agraciado com vários prêmios.

3.24.2015

Os brasileiros(as) tem as informações verdadeiras?

" Liberdade de informação tem a ver com o cidadão, não com o dono do jornal", Roberto Savio, jornalista italiano.

"O Brasil está muito atrasado nesta matéria. Ao oligopólio econômico corresponde um oligopólio de opiniões, de análise. Então, você não pode ter uma efetiva liberdade com restrições econômicas tão grandes à expressão do pensamento, das diferentes correntes, dos diferentes setores, dos diferentes grupos, dos mais variados. A regulação da mídia é um passo fundamental para a democratização da sociedade brasileira", salienta o professor Armando Boito Junior da Unicamp de São Paulo.

                                  http://guiadoestudante.abril.com.br/blogs/pordentrodasprofissoes/files/2015/03/465556922.jpg Jornalistas disputam espaço em entrevista coletiva        (Imagem: Getty Images). Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/blogs/pordentrodasprofissoes/tag/jornalismo/   

Os debates sobre a necessidade de regulação da mídia no Brasil já vêm há muito tempo. Estados Unidos, França, Reino Unido, Alemanha, Canadá, Espanha e até Argentina, mesmo contra a força do grande conglomerado de mídia que significava o Clarín, já passaram pelo processo. No Brasil, quando se fala no assunto, ainda se remete, na maioria dos debates, à ideia de que haveria um objetivo escondido de controlar a imprensa e tolher a liberdade de expressão. A ação, contudo, se baseia em questões legais para garantir justamente o contrário, destacam especialistas. Como se trata também, todavia, de combater monopólios e oligopólios de mídia, natural que o debate seja desvirtuado, completam.
Antes mesmo do anúncio dos novos ministros do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, a grande imprensa noticiava que Ricardo Berzoini seria colocado no Ministério das Comunicações para tocar o projeto de regulação da mídia. A nomeação realmente veio e, logo no início de janeiro, o novo ministro da pasta declarou que o governo iria apresentar proposta de regulação no segundo mandato da presidente.
"Já existem dispositivos, premissas e princípios. É preciso discutir se está bom, ou não está bom. Claro que nós temos uma conjuntura tensa, difícil, mas vamos saber conduzir com tranquilidade. Não temos uma crise institucional. Temos é uma tentativa de fomentar uma crise política", disse Berzoini à Rádio Brasil Atual no início deste mês.
Para a advogada Veridiana Alimonti, do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, por mais que dificuldades surjam para que o projeto vá à frente, é importante que o assunto não saia de pauta. Ela explica do que se trataria uma regulação econômica no setor, que seria a implementada no país conforme sinalizações do governo, e ainda o que poderia vir a ser uma regulação de conteúdo, que poderia ser descartada por aqui, mas que ainda assim seria importante, ela frisa.
"A situação (política) é complicada, prevê que essa pauta mais uma vez sofra um revés, como já sofreu no primeiro mandato do governo Dilma. No final do governo Lula, já tinha um projeto para ser discutido, que a gente não chegou a conhecer, mas já tinha uma pauta mais elaborada que não foi para frente, e agora essa situação pode dar mais força para aqueles que sempre estão presentes para dizer que isso não deve ser feito. Mas não sou eu que vou descartar a pauta, cabe pressionar para que ela continue na agenda", destaca.
Veridiana salienta que o discuso de que a regulação dos meios de comunicação é uma censura, na verdade, é  uma inversão do seu real objetivo, pois é algo que faz parte, principalmente, da Constituição Federal, mas que ainda não se reflete nas normas infraconstitucionais (norma, preceito, regramento, regulamento e lei hierarquicamente abaixo da Constituição Federal) de uma maneira detalhada.
De acordo com a advogada, o Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, que chegou a receber alterações como a de 1967 que trata de limites de propriedade, tem limitações pequenas sobre concentração de empresas nesse mercado. Limita apenas quantas emissoras de rádio ou de televisão uma mesma empresa ou uma mesma pessoa pode ter, não fala em grupo empresarial. Não garante, ainda, um controle da existência de propriedade cruzada, que é quando uma empresa tem uma determinada quantidade de diferentes meios de comunicação. A Constituição também fala da importância de produção independente e regionalização da produção, mas não há detalhes estabelecendo porcentagem ou critérios.
"É interessante dizer que, quando a gente fala da regulação dos meios de comunicação, a gente está tratando, principalmente, de rádio e televisão, que são serviços públicos, de acordo com a Constituição Federal e com a regulação infraconstitucional. É uma concessão de serviço público que deve atender a um interesse público, tanto o rádio quanto a televisão."

A Constituição Federal veda monopólio e oligopólio nos meios de comunicação social, e o artigo que estabelece isto é justamente o que garante a liberdade de expressão na comunicação social. "A estrutura jurídica do estado democrático brasileiro reconhece que a liberdade de expressão só consegue ser garantida na comunicação social se não houver oligopólio e monopólio. Como a gente combate oligopólio e monopólio? Com regulação. O mercado sozinho, embora alguns acreditem que sim, não combate a concentração. Ele, muitas vezes, tende, sim, a se concentrar, se não houver mecanismos de controle em relação a isso."
A regulação da mídia, então, deve funcionar tanto para estabelecer limite da propriedade no mesmo meio de comunicação, cadeia de produção ou diferentes meios, o que já é previsto na legislação de outros países como Estados Unidos, na Europa e na América Latina, e ainda estabelecer critérios dentro da própria programação de uma emissora, explica Veridiana. Não é só garantir que existam diferentes agentes prestando serviço, mas também que na prestação do serviço existam regras para garantir a diversidade dessa programação ou, pelo menos, estimular essa diversidade.
Outra questão que uma regulação econômica da mídia trataria seria a regionalização da produção. Hoje, no país, grandes emissoras  -- Globo, SBT, Band, Record -- têm concessões só para alguns municípios, mas se organizam em redes pelo Brasil com afiliadas, que são outras emissoras, com outros proprietários. Embora sejam emissoras regionais, elas acabam passando praticamente toda a programação das grandes. "A regionalização da produção é também uma maneira de fazer com que a programação da própria emissora seja mais diversa, mostre outras pessoas, produtores, roteiristas, diretores."
Veridiana aponta também a questão da complementaridade dos sistemas, que também tem laços com a Constituição Federal. Esta diz que a radiodifusão tem de observar o princípio da complementaridade de sistemas, entre sistema privado, estatal e público. O estatal seriam os canais de poder público que falam das atividades do poder público, como a TV Justiça e a TV Senado, que funcionam como uma prestação de contas da atividade do poder público. O sistema privado, por sua vez, está muito ligado ao sistema comercial, que é o que se tem no Brasil como hegemônico, e o sistema público tem relação com emissoras educativas ligadas à pastas do governo como secretarias de cultura e educação, mas que não fazem prestação de contas do Estado, têm um caráter diferenciado de programação.
"O ideal seria que as outorgas fossem divididas entre os três (sistemas), mas o que a gente vê é a predominância das três partes", aponta a advogada, falando ainda da necessidade de superar desafios do sistema público de comunicação brasileiro, que foi estruturado com a criação da Empresa Brasil de Comunicação, mas que precisa ainda se consolidar em termos de financiamento e autonomia.
Além desses pontos referentes à regulação econômica, Veridiana destaca a importância da regulação de conteúdo, que vem sendo deixada um pouco de lado e que não deveria ser encarada como censura. "A regulação de conteúdo está longe de ser censura, a gente já tem regulação de conteúdo na nossa legislação atual, já tem horário para programas educativos, publicidade. Regulação de conteúdo não é avaliar previamente o que está sendo transmitido e decidir se vai ao ar ou não, claro que não. É ter mecanismos para responsabilizar as emissoras e agentes específicos caso haja alguma ofensa à legislação, o que, claro, vai se pautar em critérios democráticos. É também um desvirtuamento do debate dizer que regulação de conteúdo é censura."
Armando Boito Junior, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, também é favorável à regulação da mídia, por ser a única maneira de garantir uma efetiva liberdade de expressão a um regime democrático. O que o Brasil tem hoje, acredita o professor, é uma exagerada concentração dos meios de comunicação, onde o mesmo grupo detém diferentes tipos de meios, e transmite, publica e vende.

"O Brasil está muito atrasado nesta matéria. Ao oligopólio econômico corresponde um oligopólio de opiniões, de análise. Então, você não pode ter uma efetiva liberdade com restrições econômicas tão grandes à expressão do pensamento, das diferentes correntes, dos diferentes setores, dos diferentes grupos, dos mais variados. A regulação da mídia é um passo fundamental para a democratização da sociedade brasileira", salienta o professor.
Para ele, os grupos que tentam sustentar a tese de que a regulação econômica da mídia é contrária à liberdade de expressão são justamente os grandes meios de comunicação que, por intermédio do poder econômico e dessa situação de ausência de regulação, têm condições de expressar seus pensamentos e opiniões em todos os grandes meios, gerando uma espécie de pensamento único.
"Por exemplo, O Globo, Estadão e Folha, os estudiosos que acompanham essas publicações costumam evidenciar a uniformidade das manchetes. São sempre as mesmas, não só dando o fato mas também emitindo uma opinião, e esse fato e essa opinião são sempre os mesmos, nos três principais jornais do país. Será que há uma unanimidade no Brasil sobre quais são os principais fatos a serem destacados numa manchete, há uma unanimidade no Brasil sobre como avaliar esses fatos? Eu creio que não", alerta.
Exemplos do vizinho e além
A advogada Veridiana Alimonti destaca o exemplo da Argentina, que conseguiu, inclusive, decisões favoráveis no tribunal diante de ofensivas de emissoras contra a regulação, principalmente do grupo Clarín. Um exemplo é a divisão do espectro, entre sistema estatal, público e privado. A Argentina dividiu em três, para que as concessões levem em consideração de forma igual esses três sistemas. Outro ponto importante foi estabelecer a criação, em relação à regulação de conteúdo, de uma figura chamada defensor do público, que seria quem recebe e dá andamento a denúncias em relação à programação e provoca também a discussão em relação a esta. Além de outros limites de concentração de propriedade, tanto nacionais quanto locais.
Na França, existem limites para que um mesmo grupo não tenha uma emissora de rádio, uma emissora de televisão e um jornal num mesmo município, por exemplo. A legislação americana, durante muito tempo, foi bastante restritiva também com relação à concentração de propriedade dos meios de comunicação. Na década de 1990, houve uma liberalização e o país passou a discutir alguns critérios, mas houve limites que proibiam, por exemplo, que uma empresa tivesse uma emissora de televisão no município e um jornal também, destaca Veridiana.
"As organizações ao redor do mundo estabelecem diferentes mecanismos de controle do poder econômico e de comunicação de grupos empresariais. A gente tem que se inspirar nisso para aprofundar a nossa democracia, e não ameaçá-la. A regulação econômica dos meios de comunicação aprofunda a democracia brasileira, ao trazer mais vozes, ao trabalhar melhor essas concessões, e não o contrário", conclui a advogada.
Fórum na Tunísia
A regulação dos meios de comunicação será um dos temas da Carta da Mídia Livre, principal documento do Fórum Mundial de Mídia Livre que acontece na Universidade El Manaer, em Túnis, capital da Tunísia, entre os dias 22 e 28 de março.
Bia Barbosa, coordenadora do Intervozes, falou durante o evento ao Portal EBC sobre a importância de que esta carta seja utilizada para reivindicar um novo marco regulatório para as comunicações no Brasil. "Nós estamos no meio da luta por uma nova legislação das comunicações. Essa reivindicação, sem dúvida, poderá aproveitar a força desse encontro internacional."

Para o italiano Roberto Savio, fundador e presidente emérito da Inter Press Service, agência internacional de jornalistas colaborativa, a regulação dos meios é fundamental para criar um sistema mais justo de informação, em que o cidadão seja parte do processo.
" Liberdade de informação tem a ver com o cidadão, não com o dono do jornal. Os donos dos meios falam da liberdade da informação para manterem a liberdade de serem donos do meio de informação", disse a EBC.

http://www.jb.com.br/pais/noticias/2015/03/24/regulacao-da-midia-aguca-democracia-nao-o-contrario-alertam-especialistas/

Drogas: para o adolescente, parece que o proibido é mais gostoso

PAULO LISBOA/BRAZIL PHOTO
Drogas: discurso realista é mais eficaz que proibição Cerca de 3,8% dos jovens brasileiros usam maconha
  • Drogas: discurso realista é mais eficaz que proibição

  • É importante conversar com os adolescentes sobre as características e efeitos de cada droga

Por Thais Paiva - Sociedade e Juventude
Curiosidade, rebeldia, necessidade de afirmação perante um grupo, desejo de vivenciar novas experiências. São diversos os motivos que podem levar os adolescentes a procurar as drogas. O fácil acesso ao álcool, tabaco e outras substâncias psicoativas antes mesmo da maioridade e, portanto, em idade escolar, torna a questão ainda mais delicada. De acordo com o Segundo Levantamento Nacional de Álcool e Drogas - Comportamentos de Risco Entre Jovens, realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com apoio do CNPq e da Fapesp, é pouco antes dos 15 anos de idade que os brasileiros experimentam as primeiras doses de álcool e fumam os primeiros cigarros.
 
Ainda segundo o estudo, 35% dos jovens com idades entre 14 e 25 anos são usuários de álcool – dessa taxa, 18% menores de idade – e perto de 3,8% dos garotos menores de 18 anos e quase 18% dos homens jovens (com idade entre 18 e 25 anos) são fumantes. Entre as drogas ilícitas, chama atenção o uso da maconha: aproximadamente 3,8% da população jovem afirmou usar a substância – uma taxa relativamente baixa quando comparada a outros países.
 
O contato inicial ocorre, muitas vezes, dentro dos próprios muros da escola ou o problema adentra os portões de tantas outras maneiras que torna-se fundamental a preparação da equipe pedagógica para lidar com o tema, contemplado pelo Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) dentro dos chamados “temas transversais”. Primeiramente, é preciso ter claro que diferentes tipos de drogas, situações, níveis de consumo e contextos familiares exigem também abordagens distintas. Em qualquer caso, porém, um diálogo coerente e franco prova-se indispensável.
 
“Muitas escolas pecam por fingir que não está acontecendo nada, que o problema não existe ou então por ter essa posição radical de expulsar o jovem que está usando. Isso não funciona. Pais e alunos precisam ter a segurança de que podem abrir situações com a escola e que esta tentará ajudar ao máximo e não julgá-los ou entregá-los de alguma maneira”, defende Ilana Pinsky, psicóloga e autora do livro Álcool e Drogas na Adolescência (Ed. Contexto, 2014), ao lado do educador Cesar Pazinatto.
 
De acordo com Ilana, é comum que os pais procurem a escola em busca de orientação e, nesse sentido, um posicionamento repressor da instituição, em vez de auxiliar, acaba intensificando o problema. “Muitos pais pensam ‘se meu filho está usando, é porque eu errei’ e não é bem assim. Além disso, há uma série de preconceitos que acabam dificultando o tratamento da situação com clareza.” O ideal é estabelecer um canal de conversação e confiança entre os pares. Ao se sentir escutado, será muito mais fácil para o adolescente escutar alguém mais experiente que possa ajudá-lo a tomar suas decisões de forma mais racional e consequente.
 
Para Cesar Pazinatto, por conta das crianças e adolescentes passarem um tempo expressivo de suas rotinas diárias dentro da escola, este espaço desempenha um papel fundamental no trabalho de prevenção de riscos e promoção da saúde, passando pela questão da saúde sexual a das drogas. “É preciso dar voz ao jovem, pois já é sabido que as famílias nunca são a primeira fonte de informação que eles têm sobre o assunto, geralmente são os próprios colegas e a mídia”, explica. Em muitos casos, inclusive, os adolescentes se mostram mais informados sobre o tema do que os adultos.
 
Para Eduardo Mendes Ribeiro, psicanalista e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), ainda há uma enorme distância entre o discurso pedagógico normalizador praticado pelas escolas e a realidade dos adolescentes. “Enquanto eles não puderem discutir abertamente, sem recriminações e repressão, no ambiente escolar não só suas relações com as drogas, mas também sua sexualidade, suas visões de mundo e seus ideais, todo o discurso “escolar” lhes parecerá alheio, não lhes tocará”, explica.
 
Nesse contexto, um ponto importante é estabelecer uma conversa realista sobre as características e efeitos de cada droga, evitando recorrer à exageros e demonizações. Segundo os especialistas, programas de prevenção baseados em discursos de amedrontamento como “não experimente, se não irá se viciar” ou imagens e informações chocantes vêm se provando ineficazes. “Tudo indica que essa abordagem não é eficaz, pois menos de 1% das pessoas que experimentam alguma droga se torna dependente. Seria como dizer que não devemos andar de automóvel porque corremos o risco de nos acidentar. E os jovens sabem disso”, diz Ribeiro.
 
Fernanda Gonçalves Moreira, psiquiatra e pesquisadora do Núcleo de Estatística e Metodologia Aplicadas (Nemap) da Unifesp, concorda. Ela lembra que o adolescente a partir dos 12, 13 anos já tem capacidade de formular e testar suas próprias hipóteses. “Você pega uma campanha na televisão que compara o adolescente que fuma maconha a um cacto e este jovem tem um amigo que fuma e não enxerga nele nada disso, ele vai confrontar esse dado, colocar em descrédito todas as informações associadas a essa propaganda”, explica.
 
É preciso deixar claro, entretanto, que uma abordagem com menos excessos não deve ser sinônimo de uma interpretação que desdenha do poder e riscos das drogas, lembra Pazinatto. “Também não dá para minimizar os efeitos do uso, mas tem que ser de uma forma que converse com a realidade do jovem”, diz. Outro erro comum é colocar todas as drogas ilícitas em uma mesma categoria, tratando, por exemplo, a maconha da mesma forma que o crack. “Toda e qualquer abordagem que menospreze a capacidade intelectual dos jovens não vai dar certo. O jovem sabe observar, a droga está nas ruas. É algo que eles veem. Não dá para falar com o adolescente como você falasse com crianças pequena”, resume Fernanda.
 
O neurocientista americano Carl Hart, professor da Universidade de Columbia, é um dos maiores defensores dessa abordagem que ele define como “uma política de drogas baseada em fatos, não em ficção”. Em seu livro Um Preço Muito Alto (Ed. Zahar, 2014), Carl afirma que a maior parte da população está iludida ou desinformada em relação ao que as drogas fazem ou deixam de fazer ao corpo humano. “Há tempos vem sendo orquestrada uma tentativa de exagerar os riscos de drogas como cocaína, heroína e metanfetamina. Os mais empenhados nessa tentativa são os cientistas, os responsáveis pelo cumprimento da lei, os políticos e os meios de comunicação”, diz.
 
O grande problema desta visão dramática sobre as substâncias psicoativas, diz o professor, é que ela estigmatiza de forma equivocada aqueles que usam drogas, além de levar à adoção de políticas erradas. “Essa desinformação nos leva a tomar iniciativas que prejudicam as pessoas e comunidades às quais supostamente deveríamos ajudar”, diz. Por meio de experimentos com ratos, Hart concluiu que quando são oferecidas apenas drogas a cobaias, elas se viciam, mas quando lhes são oferecidas outras opções de entretenimento elas não escolhem sempre usar as drogas, muitas vezes preferindo as outras opções. Em outras palavras, garantir acessos e oportunidades a todos os cidadãos seria uma forma muito mais adequada de enfrentar o problema do abuso.
 
Para Ribeiro, é importante frisar com os alunos que são as pessoas que procuram as drogas e não o contrário. “Se alguém toma um cálice de vinho ou uma dose de uísque, regularmente, ou fuma um cigarro de maconha, de vez em quando, ou mesmo consome uma droga sintética eventualmente, não há porque afirmar que ele se tornará um dependente. Mas, se frente a qualquer forma de mal estar, alguém decide recorrer ao consumo de alguma substância com propriedades psicoativas, seja ela a maconha, a cocaína, o álcool, ou mesmo medicamentos, ela tenderá a produzir uma relação de dependência, sem enfrentar as fontes de seu sofrimento”, explica.
 
Assim, vale fazer a distinção entre o que é experimentação e uso problemático, que geralmente culmina em prejuízos na vida social e acadêmica. “A pessoa pode usar um pouco ou de vez em quando, mas se tiver uma consequência negativa, um prejuízo para ela ou para quem estiver perto como amigos e familiares, é uma dependência”, comenta Arthur Guerra, psiquiatra da USP e do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool. “Não é uma questão de frequência, nem de quantidade, mas de efeitos negativos.”
 
Apesar de não existir um consenso a respeito do modelo de prevenção mais eficiente, pode-se afirmar que quanto maior e mais diversa forem as opções de cultura, informações, entretenimento e conhecimento que este jovem tiver acesso, menor será a chance de envolver-se com as drogas. “Se ele for ouvido em sua totalidade, tiver um lugar de sociabilidade, acesso a fontes de prazer outras que não as drogas, a maconha, por exemplo, vai ser uma opção em muitas. Não vai ser a única opção”, explica Fernanda. Daí o vício e incidência assustadora entre as populações mais vulneráveis como moradores de rua e outros grupos socialmente marginalizados. “Acaba sendo a única saída que eles encontram.”
 
Além disso, é preciso que a escola formule sua própria política de prevenção de acordo com a realidade que está inserida. “Para mim, cada escola tem que descobrir o seu próprio modelo, o que funciona ou não ali dentro”, diz Cesar. O educador lembra, porém, que quanto mais cedo começar este trabalho, melhor serão os resultados.
 
Conversas dinâmicas e projetos multidisciplinares envolvendo o tema pode ser um caminho. Ao invés de criar um horário para falar sobre drogas, dissociada das outras conversas, mais interessante é entrelaçar o tema com outros assuntos escolares. “Quando vamos falar de consumo, já podemos falar da estrutura urbana, da favela, do tráfico de drogas. Quando falamos de ecologia, porque não falar da relação das substâncias naturais e artificiais? Um papo sobre drogas integrado a outros papos é muito mais interessante e não acende aquele holofote ‘oh, drogas’, que só atrapalha o diálogo franco”, defende Fernanda.
Publicado na edição 93, de fev de 2015

http://www.cartanaescola.com.br/single/show/478

Uma escola que vê o aluno(a) como pessoa

Foto - DAVI RIBEIRO
 
Escolas ampliam participação dos alunos na gestãoDebater e reivindicar são palavras-chave na rotina da escola Manuel Bandeira

Escolas ampliam participação dos alunos no dia-a-dia

Baseadas em modelos de convivencia democrática, estudantes tornam-se também responsáveis pelas decisões do espaço educativo.
Por Thais Paiva -  Sociedade e Liberdade
 “A criança é estimulada a compreender outros pontos de vista, descentrar de sua perspectiva, compreender uma segunda e, em geral, construir uma terceira perspectiva que articule as várias envolvidas no embate”, explica. Isso permite um pensamento mais amplo e flexível, capaz de questionar e de produzir respostas, ao invés de apenas obedecer e executar o que outro determina. “Em uma escola democrática, a obediência - intelectual e moral – se dá por compromisso, por responsabilidade, no sentido dado pela participação do sujeito na decisão. Não é uma obediência cega”, conclui a profa. Ligia M. L. de Aquino.
Uma frase escrita a lápis pelas mãos de alguém recém-alfabetizado chama a atenção de quem passa pelo mural de recados do pátio central da Escola da Prefeitura de Guarulhos (EPG) Manuel Bandeira, localizada na região metropolitana de São Paulo. “Podemos traser liginhas de elástico”, lê-se em um cartaz que leva o título “Precisamos conversar”. Se o domínio da ortografia revela-se incerto, o mesmo não se pode dizer das intenções dos autores. “Eles querem mais elastiquinhos para fazer de pulseira, sabe?”, explica a diretora Solange Turgante.
 
A demanda é a primeira de uma lista que deve se avolumar com o passar dos dias e que será debatida na próxima assembleia escolar – reunião de alunos, professores, gestores e funcionários, de onde saem as decisões que viram regra para toda a escola. “Do cartaz, surge a maioria das pautas que debatemos depois juntos para chegar a um consenso. Por exemplo, se alguém reclama ali que tem muito papel higiênico jogado no chão do banheiro, na próxima reunião nós sentamos e discutimos isso para ver o que está acontecendo e o que pode ser feito”, conta a diretora.
 
Solange chegou à direção da escola em 2013 e, inspirada por projetos como o da Escola da Ponte, Emef Amorim Lima e Projeto Âncora, veio decidida a criar uma escola democrática. Logo percebeu que o objetivo só seria alcançado se houvesse a ampliação da participação dos alunos e pais nas decisões da escola. Foi assim que debater e reivindicar se tornaram palavras-chave da rotina da Manuel Bandeira, que atende alunos da Educação Infantil e do Ensino Fundamental I.
 
Além das assembleias-gerais, a escola organiza, uma vez por bimestre, o Conselhinho, um colegiado formado por representantes das turmas, eleitos pelos próprios colegas, que levam as decisões de cada classe sobre determinada pauta para os gestores. “A ideia é que as crianças tivessem mais autonomia e fossem protagonistas de seu estudo, aprendizagem”, conta. As pautas debatidas abrangem desde o material adquirido pela escola até as atividades pedagógicas a serem realizadas. Um modelo que se aplica a todas as turmas, do Maternal ao 5º ano.
 
A pouca idade dos alunos, longe de ser um empecilho, foi encarada como propícia para trabalhar a representatividade e outros valores democráticos. “Tem muita gente que diz ‘como assim, eles, tão pequenos, vão criar as próprias regras?’ Mas a verdade é que quando são eles que criam, acabam obedecendo mais, porque partiu do comprometimento deles”, diz Solange. Quando a turma não consegue chegar ao consenso, o conflito também é levado para a reunião. “Eles contam que metade da turma quer isso e a outra metade aquilo, e dialogando a gente tenta encontrar uma solução.” Já foram decididas dessa maneira a aquisição dos brinquedos do parque, as barracas que iria ter na festa junina e até mesmo o modelo de avaliações.
 
“No ano passado, eu fui escolhido representante”, conta Maykon Reynan Fernandes Cavalcanti, de 10 anos, sem conseguir esconder o orgulho. “Então eu perguntava para todo mundo da sala o que eles queriam melhorar, quais eram as sugestões ou que queriam aplaudir. Aí, anotava tudo e levava para o conselho”, explica o menino, que ainda não se decidiu se vai se candidatar para a vaga esse ano. “Eu gostava, era bem legal, mas também dava trabalho. Tudo que acontecia de errado meus colegas chamavam ‘Maykonnn, está acontecendo isso e isso’”, lembra.
 
Lincoln Dias Felix, também de 10 anos, diz gostar do novo modelo baseado na representatividade por ser mais prático e resolver as questões de forma mais direta. Para ele, é mais simples localizar e falar com o representante de sala do que com os gestores. “Teve um mês que a gente falou para o representante para ver se nós podíamos sair da sala sozinho para ir no banheiro. Aí teve a plaquinha de ocupado e livre. Quando a pessoa ia no banheiro a gente virava a plaquinha e saia sem precisar pedir para o professor”, conta. Para o professor Rodrigo de Mendonça Emidio, é esse tipo de atitude que pretende ser estimulado. “A ideia é que eles sejam preparados para enfrentar o mundo. A gente precisa formar pessoas que possam tomar suas próprias decisões e gerir sua própria vida. Então, nesse sentido, essa maneira dá muita autonomia.”
 
Professora de Artes na escola, Jaqueline Oliveira lembra do desafio inicial que foi implementar a gestão democrática. “Mexer na sua prática sempre causa uma certa insegurança, instabilidade. Mas eu acho muito válida qualquer proposta que coloque em xeque aquilo já engessado”. Da maneira como as coisas vêm acontecendo, diz, já são percebidos muitos frutos, principalmente, no sentido do diálogo. “A gente vê crianças trazendo coisas que afligem seu universo e que, para nós, adultos, parecem tantas vezes banais e não percebemos. E conversar sobre aquilo torna tudo mais leve.”
 
Pedagogia da escuta
 
Mas é possível ter uma escola mais democrática atendendo alunos de 0 a 3 anos? O CEI Suzana Campos Tauil, localizado na zona sul da cidade de São Paulo, é prova que sim. “Apesar de nós não termos a participação direta da criança, por conta da idade, nós temos a escuta da voz da criança. A gente leva em conta que todas têm saberes e, mesmo que não falem, elas nos mostram de diversas formas o que elas querem e o que precisam”, explica a diretora Márcia de Castro.
 
Para isso, a instituição desenvolve atividades e estratégias que possibilitem esta percepção, desde com os bebês até os mais velhos. “Por exemplo, procuramos comprar os brinquedos que as crianças gostam. Ontem mesmo veio uma criança aqui e ficou brincando com esse segura-porta em formato de tartaruga da minha sala. Aí pensei: por que não comprar vários desses segura-portas para eles brincarem? Eles gostam, estão me dizendo isso. Então trabalhamos com essa escuta sensível em cima do que eles nos mostram”, explica Márcia.
 
Há também rodas de conversa, um exercício de ouvir o outro, dar opiniões e contar casos. “É tão interessante porque eles trazem histórias e mais histórias. Então, às vezes, a gente aproveita a roda e pergunta ‘o que vocês estão precisando? o que a gente pode comprar?’”, conta a diretora. Foi assim que a equipe descobriu que os pequenos queriam os pratos e formas de alumínio, usados para brincar nos tanques de areia, também nos espaços internos.
 
Toda esta autonomia dada aos pequenos, acompanhada da percepção de que o espaço pertence a eles, tem se traduzido em uma série de benefícios como, por exemplo, a capacidade revelada de fazer a leitura de papéis sociais dentro da escola. “Eles sabem para quem pedir tal coisa, percebem os movimentos que ocorrem aqui dentro. As crianças nesta idade são muito capazes. Por isso, vejo que é desde a primeira infância que construímos a democracia e nas pequenas coisas. Se você não as escuta, perde esse primeiro exercício de interação com o outro”, diz.
 
Para Ligia Maria Leão de Aquino, professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), experiências como estas têm o potencial de desenvolver nos pequenos princípios e práticas solidárias. Além disso, do ponto de vista cognitivo, possibilitam a apreensão da capacidade de argumentação, debate e negociação, que pode estar presente desde situações cotidianas como escolha e partilha de brinquedos e espaços.
 
Publicado na edição 66, de março de 2015

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