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11.16.2016

Agroecologia Cubana é Modelo de Sustentabilidade para o Planeta

  • ‘Modelo agroecológico cubano poderia salvar o mundo’, diz Raj Patel, conhecido escritor indiano

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| Foto: TeleSur
Escritor indiano premiado e defensor dos modelos sustentáveis de agricultura, Raj Patel concedeu recentemente entrevista a emissora TeleSur, em que fala sobre como o modelo agroecológico cubano – que cultiva alimentos mais intensamente, recicla nutrientes através da terra, não cultiva apenas uma única colheita, mas várias, constrói a fertilidade do solo e maneja os recursos hídricos, usando menos fertilizantes e pesticidas – poderia ajudar a tornar o mundo mais sustentável se adotado por outros países.
Por outro lado, avalia que este modelo pode estar ameaçado devido ao fato de que multinacionais pressionam para entrar na ilha com a normalização das relações diplomáticas entre a ilha e os EUA.
Confira a íntegra da entrevista:
TeleSur: Você acha que o futuro do modelo agroecológico em Cuba pode estar comprometido se a normalização das relações diplomáticas com os EUA servir para o setor agrícola norte-americano empurrar seus produtos nos mercados cubanos?
Raj Patel – Estou bastante preocupado, como todos os cubanos deveriam estar. O modelo que floresceu em Cuba é um modelo de sustentabilidade, onde os cientistas são diretamente responsáveis pelos agricultores, e os agricultores são tratados não como cobaias, mas como parceiros no campo que experimentam e inovam. E a grande genialidade do experimento cubano foi ter democratizado o conhecimento, a competência e o poder.
Minha grande preocupação sobre os EUA é que já temos muitos relatos, com os documentos do Wikileaks, que os funcionários do governo estão sendo pressionados pela Monsanto e outras empresas do tipo. Os cidadãos cubanos precisam saber o que está em jogo – assim como os demais – que este belo exemplo poderá ser extinto em breve, e acho que temos que fazer tudo que pudermos para evitar isso.
Por causa das circunstâncias – o colapso da URSS e o bloqueio dos EUA – os agricultores cubanos tiveram de adaptar e produzir comidas sem pesticidas ou fertilizantes. A produção foi capaz de garantir a segurança alimentar para todos os cubanos?
Patel – Cuba não produziria o suficiente para alimentar a população se ela quisesse se alimentar como os norte-americanos. Ou seja, a dieta dos EUA requer muito em termos de água, combustível etc, por causa do alto nível de consumo de carne. Mas isso não é um defeito no modelo de agricultura cubana, e sim um defeito no modelo de consumo norte-americano: consomem muita carne.
Eu acho que é injusto culpar Cuba por não ser capaz de sustentar a dieta norte-americana. Se todos comessem o tanto de carne que os norte-americanos comem precisaríamos de sete planetas a mais para alimentar todos. É a dieta dos EUA que é insustentável, antes de o modelo de agricultura em Cuba ser subprodutivo.
Cuba ainda depende de importações de alimentos, como cereais?
Patel – Eles importam arroz. Mas produzem a maioria de suas frutas e vegetais. É difícil executar um modelo justo, porque agora, com o petróleo da Venezuela (desde que Hugo Chávez foi eleito em 1999), há muito mais agricultura industrial. Isso significa um retorno aos antigos modelos e é difícil saber a situação atual em Cuba para reforçar um modelo sustentável em oposição ao modelo insustentável, porque há uma grande mistura na conjuntura atual. Não é um estudo de caso puro.
Mas o que sabemos é que o modelo de agroecologia – que cultiva alimentos mais intensamente, recicla nutrientes através da terra, não cultiva apenas uma única colheita, mas várias, constrói a fertilidade do solo e maneja os recursos hídricos, usando menos fertilizantes e pesticidas – vai bem, pelo que sabemos. Há muito mais sustentabilidade associada a este modelo e muito mais comida por área que o cultivo no centro-oeste dos EUA. Isso tudo é sustentado por dúzias de estudos comparando a agroecologia com a agricultura industrial.
E é também mais uma prova de desastre, um ponto crucial para entender os desastres naturais causados pelo aquecimento global?
Patel – Sem dúvida. Particularmente agora pouco tivemos um furacão atravessando o Caribe e há mais deles no caminho. Sim, é importante lembrar que se você tiver um portfólio diverso de culturas, há uma gama de opções caso uma colheita seja atingida. Não temos ainda evidências, mas os agricultores dizem que o solo agroecológico é muito melhor para resistir às inundações, pois há muito mais “solo vegetal”, não alaga tanto.
Poderia o modelo agroecológico implementado há três décadas em Cuba ser transportado hoje para outras partes do mundo, que enfrentam novos desafios como mudança climática e urbanização?
Patel – Muito países já estão adotando este modelo, na América Latina (ver os trabalhos da SLOAS) e também em Laos, Malawi, onde eu vi resultados incríveis no combate à subnutrição em terras poucos férteis graças à adoção da agroecologia.
Mas as pessoas precisam perceber também que a história da agroecologia não é apenas sobre “você precisar plantar milhos, feijão e etc”! O que define a agroecologia é o entendimento de ecologia que você está inserido e a utilização dos conhecimentos para desenvolver sistemas apropriados que combinem com seu lugar no mundo. Agroecologia é sobre princípios, não é uma receita.
Não só pode ser trabalhada em outros lugares do mundo, como já está funcionando, porque muitos agricultores estão sofrendo com as mudanças climáticas. Exige uma mudança no consumo de carne, por exemplo, consumindo menos, mas com melhor qualidade.
É claro que é possível ter uma produção insustentável de – digamos – alface, não precisa envolver animais para se ter uma agricultura insustentável, por exemplo; basta você plantar apenas alface com toneladas de produtos químicos e uma enorme quantidade de água. Mas isso não é uma comparação justa e, na verdade, muitos sistemas agroecológicos incluem carne, de forma reduzida. Não é uma questão de carnívoros x vegetarianos, é sobre sustentável x insustentável.

* Tradução Cauê S. Ameni
http://www.sul21.com.br/jornal/modelo-agroecologico-cubano-poderia-salvar-o-mundo-diz-raj-patel/

Não Haveriam Tantos Presos no Brasil Se a Justiça Fosse Séria

  • ‘Se houvesse um trabalho sério de classificação penal, sobrariam vagas nos presídios’

10/11/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Entrevista com o promotor Leandro Pretto. Foto: Guilherme Santos/Sul21
O promotor Luciano Pretto, em seu gabinete, em Porto Alegre (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
por Fernanda Canofre para site Sul21 - Sociedade e Injustiça Social (fonte no final)
Luciano Pretto é o titular da Promotoria de Justiça e Execuções Criminais de Porto Alegre há 12 anos. Há mais de uma década, peregrina fiscalizando a situação de quase 20 presídios, penitenciárias e casas prisionais da Capital e de parte dos municípios da região metropolitana. A violência, a miséria, o que olhos desacostumados com o que acontece dentro do nosso sistema prisional chamaria de “horror”, são rotina nos relatórios dele. 

“Dificilmente um preso enxergue a minha careca e não saiba quem eu sou”, conta ele enquanto recebe a reportagem do Sul21 para uma entrevista em seu gabinete. Luciano Pretto diz que, assim como alguns colegas do Ministério Público e Sidinei Bruzska, juiz da Vara de Execuções Penais, ganhou a confiança dos presos com o tempo. Muitas vezes, a presença deles dentro da cadeia também evitou situações de violência contra quem está cumprindo pena. 

No momento em que o sistema prisional gaúcho vive uma de suas piores crises – a pior que o promotor diz ter visto em sua carreira – ele ainda não pensa em se aposentar. “Eu poderia me aposentar em dois anos, mas tem uma coisa que é…Tem alguma coisa melhor do que o retorno que tu recebes? Isso alimenta a gente”, diz.
Durante pouco mais de uma hora, o promotor falou sobre a crise dentro dos presídios e o quanto a sociedade tem de responsabilidade em tudo isso. Confira:
Sul21: Como a situação do sistema prisional gaúcho chegou a esse ponto?
Luciano Pretto: A maneira como os governos que se sucedem há muitos anos tratam o sistema penitenciário é bem parecida. Com raríssimas exceções e normalmente quando havia esse tipo de situações, de caos absoluto. O que a gente vê sempre é o seguinte: um secretário de segurança que não entende da matéria, não entende de segurança pública e – isso não é nenhuma crítica demeritória às pessoas, eu estou falando o que a gente percebe – que recebe um problema imenso nas mãos e normalmente as providências não são tomadas. Com isso, um resolve combater a criminalidade prendendo, como foi caso do secretário anterior e que aparentemente continua, essa política de prender, prender, prender. Ninguém está dizendo que não tem que prender, não é nada disso, mas é preciso que haja um planejamento de como prender, onde prender. Ora, as penitenciárias de Porto Alegre já vinham superlotadas e já estavam interditadas há muitos anos. A interdição do Presídio Central tem 22 anos. Não existe nada de novo.
Mas a solução nunca é “vamos construir presídios”, porque dentro do que a gente percebe, não é um assunto simpático para a sociedade. Só que hoje precisa construir presídio. Ainda mais que nós não temos, como deveria existir, tratamento penal. O que nós fazemos há décadas – e eu me incluo nisso – é amontoar pessoas nas cadeias e ponto final. Não há um tratamento penal como um todo: psicológico, de assistência social, buscar as famílias, aquilo que a Lei de Execuções Penais (LEP) manda fazer não é feito. Atendimento médico é bem menos do que deveria, com bem menos médicos do que deveria, bem menos hospitais do que deveria. A situação é sempre no limite, pra menos. Aí a população carcerária no Rio Grande do Sul cresceu em torno de 5 ou 6 mil em poucos meses, nós já estávamos com déficit de 10 mil vagas e é só fazer a conta.  
10/11/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Entrevista com o promotor Leandro Pretto. Foto: Guilherme Santos/Sul21
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Sul21: As soluções apresentadas pelo governo do estado em uma coletiva recente falam sobre expansão das vagas, entrega de obras que estão atrasadas e prevê investimentos em centros de triagem. Como funciona isso atualmente?
Luciano Pretto:Hoje, o sujeito é preso e a Susepe (Superintendência de Serviços Penitenciários) tem que levá-lo para algum local. Antes era o Presídio Central, até que estourou completamente e já não tem mais condições. Até recebi um e-mail hoje dizendo que não estão recebendo nem mais os presos sem PEC. O que é preso sem PEC? É preso que não tem condenação, PEC é “processo de execução criminal”, o provisório. O preso condenado tem que ir pra alguma cadeia, que também não tem mais lugar. Os de primeira entrada, o sujeito que nunca cometeu um crime, esse ainda tem vaga em Canoas, na Penitenciária Estadual de Canoas I (PECAN I). Recentemente, houve presos que foram levados a Dom Pedrito [a 347 km de distância de Porto Alegre], porque o Ministério Público entrou com uma ação, quando percebeu que os presos estavam ficando nas delegacias e a Susepe não levava e veio a determinação de que os presos passassem a ser levados para onde tivesse vaga. Com isso, a Susepe já não é mais obrigada a manter o sujeito próximo ao local do crime.
Sul21: O secretário Cezar Schirmer usou muito as palavras “emergencial”, “provisório”. Há alguns anos, no fim do governo Yeda Crusius (2006-2010), o Estado também investiu em vagas emergenciais construindo albergues para atacar o problema – com custo de aproximadamente R$ 700 mil cada – mas que duraram pouco. Há um erro na gestão de recursos?
Luciano Pretto: Gestão de segurança pública e, claro, gestão de recursos. O que se ouve? O Estado não quer gastar. O orçamento da Susepe é X. Ora, esse orçamento foi baseado para menos de 30 mil presos, hoje o Estado tem mais de 35 mil presos e [o orçamento] diminuiu. Como é que vai gerir com valores que não chegam sequer a atender a necessidade atual? E aí, claro, tranca neste problema financeiro, por isso que eu disse que não dá para falar hoje do problema do sistema penitenciário, esquecendo para trás. Isso é um problema antiquíssimo.  
Sul21: Uma das possibilidades com as quais a SSP trabalha agora é de instalar contêineres para abrigar os presos. Em outros estados que adotaram essa prática, especialmente Santa Catarina, apontada como modelo pelo secretário, o uso dessas estruturas tem sido bastante criticado e foi quase abandonado. Como o Ministério Público está avaliando essa questão?
Luciano Pretto: A gente já está tomando providências para saber antes que tipo de contêiner é esse. Nós somos a Promotoria de fiscalização, se nós entendermos – não apenas os promotores de Justiça, mas também os técnicos, porque o Ministério Público tem gente capacitada para isso – que não é, que não atende uma condição de mínima dignidade humana, vamos tomar [providências] . Como existe contêiner de tudo que é tipo, estamos buscando ver, mas ainda não sabemos como é esse material.
Isso não é novidade para nós. Há uns seis anos houve isso aí [proposta de adotar contêineres] e a gente cortou na época. Era uma caixa fechada que eles pretendiam fazer, sem ventilação nenhuma.
10/11/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Entrevista com o promotor Leandro Pretto. Foto: Guilherme Santos/Sul21
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Sul21: O senhor e alguns colegas criaram recentemente uma espécie de “dossiê”, com fotos tentando mostrar um pouco do que é a realidade dentro do sistema prisional do Rio Grande do Sul. Pode falar um pouco sobre esse documento?
Luciano Pretto: A gente foi em várias casas. Nessa oportunidade, a gente foi nas casas [Presídio] Central, PEJ (Penitenciária Estadual do Jacuí), [Penitenciária Estadual] Modulada e PEC [Penitenciária Estadual de Charqueadas] para mostrar a realidade do que estava acontecendo naquele momento. Na época, houve uma autoridade do Estado que disse que “não sabia que estava daquele jeito”. Ah, não. Assim não. Por determinação superior do Ministério Público, a gente vai mensalmente em todas as casas, fotografa tudo e manda sempre para o governador, para o superintendente da Susepe e para o comandante da Brigada, nas casas controladas pela Brigada Militar. Como é que uma autoridade, um secretário vai dizer que desconhecia essa realidade?
E também, o objetivo na época, porque nós mandamos para vários secretários de Estado, não mandamos apenas para o de Segurança – mandamos para ele, para o secretário de Planejamento, secretário da Fazenda, governador, vice-governador, procurador geral de Justiça, presidente do Tribunal de Justiça – para dizer: olha, a situação das casas prisionais é essa, o senhor na sua pasta, podendo contribuir, por favor faça alguma coisa.
Sul21: De quantos deles vocês tiveram resposta?
Luciano Pretto: Nenhum. Nenhuma resposta.
Sul21: Se o problema vem se acumulando independente do partido que está no governo, através de vários secretários de Segurança Pública, não existe também uma falta de vontade política para enfrentar os problemas do sistema prisional?
Luciano Pretto: Eu acho que, o dia que um governo disser “nós vamos resolver isso aqui”, a primeira coisa que vai fazer será chamar algum técnico para ser o secretário de Segurança, alguém que entenda da matéria, alguém que já tenha se debruçado. E isso tem muita gente capacitadíssima. Agora não pode chegar e dizer pro cara: é contigo, mas sem dinheiro. Porque é preciso fazer uma série de coisas e não é só construir. Se houvesse um trabalho bem sério de classificação penal, pegar preso por preso para saber a história, o Estado ia ter que construir hospitais, clínicas contra drogadição e ia sobrar vaga no presídio. Eu não tenho a menor dúvida disso, porque eu estou lá dentro conversando com eles.
Aqui no Presídio Central tem uma galeria que a gente chama de E1. O E1 são presos que entraram no programa de reabilitação. Eles vão para o hospital Vila Nova e passam 21 dias se desintoxicando e voltam para o E1. Porém, esse espaço é exclusivo para presos do Central. No E1 não entra droga, no E1 não tem celular, mas no E1 tem trabalho de assistência social, trabalho de voluntariado. O problema é que é só no Central. Nos outros lugares o preso passa os 21 dias, volta limpo, mas volta para o inferno, porque hoje todo mundo sabe que quase 100% das cadeias têm droga.
Sul21: E como fica a questão das drogas e a dificuldade de ter uma conversa em torno da política de drogas, no Brasil? Porque a droga é um problema nas ruas, onde a lei não define claramente qual o limite mínimo para você ser considerado usuário e traficante, e também dentro dos presídios, onde há mortes súbitas de presos com traços de cocaína no sangue. Se isso fosse tratado, daria para resolver ao menos uma porcentagem do problema?
Luciano Pretto: É bem sério isso. Droga dentro do presídio significa dinheiro. Dinheiro significa poder. A situação dos presídios hoje…No Central, algumas galerias estão com cerca de 400% de excesso de lotação. Isso também faz com que o Estado fique latindo e não fazendo muito, porque não tem a menor condição. Quem manda nas cadeias do portão para dentro são os presos. Com raríssimas exceções. Uma exceção, por enquanto, para ter uma ideia, é a Penitenciária de Canoas I (PECAN I). Por quê? Porque a partir de um grupo formado por Judiciário, Ministério Público, Procuradoria Geral do Estado, Defensoria Pública, OAB, Susepe, nós selecionamos o preso que vai para lá. São presos com perfil. O sujeito que é preso na rua e nunca esteve em cadeia nenhuma vai para lá. Até porque ele não fica preso por muito tempo, porque é preso preventivo. Em Canoas, pelo menos por enquanto, o Estado está fazendo a sua parte. Não entra comida na cela, a comida que a família leva é só para o consumo no dia da visita, o Estado dá roupa, dá uniforme, dá roupa de cama, é tudo organizado, não tem superlotação. Tem uma série de cuidados com aqueles 390 presos, perto da lotação total que é de 400. Eles têm aula sempre, têm biblioteca, têm atividades sempre. Algumas instituições já estão lá dentro dando cursos para eles e tu ouve dos presos que aquilo é muito bom.
10/11/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Entrevista com o promotor Leandro Pretto. Foto: Guilherme Santos/Sul21
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Sul21: O senhor falou sobre a questão da comida, como ela é controlada no Presídio de Canoas. Porém, em outros locais ela tem sido uma ferramenta para que as facções possam cooptar pessoas.
Luciano Pretto:Nos últimos tempos houve isso de faltar comida mesmo. Recentemente houve isso em virtude dessa disparada de prisões e aí, claro, a Susepe tinha lá uma previsão de orçamento para um número determinado de presos, um crescimento razoável X, que foi absolutamente superado. E deu problema. Mas não é regra faltar comida. O que acontece é o seguinte: como expliquei, quem manda dos portões da galeria para dentro são os presos. Como a comida normalmente é servida? Panelões, que os paneleiros levam até o portão da galeria, e passam para os outros presos. Como as galerias são, via de regra, superlotadas, existe o que eles chamam de prefeitura. São em torno de 10, 20, 30 homens presos – depende do número total de presos da galeria – que comandam a galeria. Um deles é o chefe. E no meio disso tem os presos mais pobres, o “preso caído” que eles chamam, que é quem está lá no fundo da galeria, nas piores celas, nas piores condições, aquele nem sempre come. Não é porque não tinha pra ele, mas porque ficou no final. Esse preso caído vai depender da família, que nem sempre tem, e é aí que entra a cooptação. A palavra que eles usam é essa: “vou te apoiar”. E depois que tu sair, tu vai ter que me apoiar. Porque eu tenho 100 anos de cadeia e tu tem 6, quando tu sai vai trabalhar para mim. E vai trabalhar mesmo, porque as famílias são…Vocês não tem noção do que a gente ouve em dia de atendimento aqui, de mães, de familiares, sobre como a coisa funciona…
Sul 21: Pode dar alguns exemplos?
Luciano Pretto: Eles ligam, cobram, pedem pra “fazer a mão” e não tem conversa. Se não faz vai morrer.
Sul 21: Como o Estado perdeu o controle dessa maneira?
Luciano Pretto: Porque a gente vem há anos nessa situação e nunca demos bola para isso. A gente não dá bola para instituição, a instituição também faz como pode, nós estamos tratando de gente, tudo é gente e existe gente boa e gente ruim. Tanto no Ministério Público, quanto na Susepe, na Polícia, no jornalismo, em tudo. Porque estamos falando de gente e cada um tem sua maneira de conduzir a vida. Por isso que eu disse, quando tu não tens alguém que pensa no todo e não simplesmente para passar os quatro anos [de mandato] e tchau, vai ser isso aí. Só que cada vez agravando mais.
Sul21: Como funciona essa questão das facções no RS? A Susepe reconhece oficialmente a existência de três grupos, quando na verdade, pessoas que trabalham dentro dos presídios falam em um número muito maior. Como elas conseguem cooptar membros?
Luciano Pretto: Não, tem mais. Tem os Manos, Abertos, Unidos Pela Paz, essa de agora o Comando Pelo Certo, os Bala na Cara, só aqui já deu cinco. Tem os V7. Claro que nem todas têm muita gente, mas tem muito mais que três e tem muita gente envolvida.
Sul21: Qual seria a solução para lidar com toda essa gente? Quando o governo do Estado colocou a Brigada Militar dentro do Central, nos anos 1990, tentou assumir o controle através das facções, não?
Luciano Pretto: Naquela época era o seguinte, o Central tinha mil e poucos presos, só que era largado. Tinha meia dúzia de funcionários da Susepe ali. Quando a BM assumiu, assumiu para botar força. Tipo assim, agora é ordem. Mas com o passar do tempo, para ver como é uma coisa louca, como estava em ordem foram colocando todos os presos lá. Hoje, nós temos um prédio a menos – que é o C, parcialmente demolido mas está totalmente inutilizado [era o pavilhão apelidado de “inferno” e que deu ao Central o título de “pior presídio do Brasil”, depois da vistoria da CPI da Câmara dos Deputados, em 2008] – e a gente já está quase chegando na lotação máxima de antes, de 4.550. Antes chegou a quase 5 mil com um prédio a mais. Agora, com um prédio a menos está quase a 5 mil. Isso porque o governo entregou a cadeia para o preso. Óbvio que tu não vai ouvir isso do diretor do presídio. Ele vai dizer que não, que ele entra na galeria a hora que ele quiser. Não é bem assim. Eu não falo para desdenhar deles, mas é que não dá mais para continuar.
Eu não sei quantas vezes li essa frase dentro de muitas cadeias: “só os fortes sobrevivem”. Quando eu comecei aqui na promotoria, essa caixinha de entrada [aponta para a bandeja de papéis em cima da mesa] era cheia de papel, hoje não tem nada de papel, é tudo no computador, tudo tecnologia. Mas aí tu vai lá [no presídio] e vê o que a gente está fazendo com quem, às vezes, cometeu um crime até sem violência.
Vou contar uma história para vocês. Ontem, eu atendi uma senhora. O filho dela é homossexual e está com todos os papéis encaminhados para fazer uma cirurgia de mudança de sexo. Esse menino, em Viamão, teve uma discussão com uma mulher que a mãe do menino nem sabe quem é. Uma vez eles tiveram uma discussão por um motivo qualquer, parece que ele olhou para o namorado dela, uma bobagem assim. Na primeira semana de outubro, ele estava indo com outro guri para uma sessão de umbanda, ele é um guri que trabalhava com uma empresa de mudanças – a mãe me apresentou abaixo-assinado, declarações do empregador, pessoas dizendo que conhecem o guri desde sempre e que é uma excelente pessoa. A caminho da sessão de umbanda a mulher começou a provocá-lo, chamá-lo de “bicha”, “viado”, e ele claro revidou em palavras. A mulher pegou o telefone e começou a chamar gente. Não sei quantos, muito menos quem, porque a mãe também não sabia. As pessoas vieram e desmancharam os dois guris a laço. Uma senhora que viu a cena chamou a polícia. Quando os policiais chegaram, a outra mulher disse: eles estavam apanhando porque ele tentou me roubar o telefone. Os dois estão no Central presos por assalto. Ela me contou: meu filho estava com a cabeça desse tamanho doutor, não sei se ele vai resistir. E sabe que idade o guri tem? 20 anos. Cheio de sonhos, ela me trouxe diplomas de cursos de teatro que ele frequentou até. Fiz encaminhamento como pude, espero que o desembargador enxergue. Fiz porque ela só seria atendida na Defensoria Pública dia 29 de novembro, já vai estar fazendo quase dois meses que ele está dentro do Central.
Tu pensa que só ele está na cadeia nessa situação? Pensa que ele é o único? Tem muitas pessoas lá que seguram o tráfico porque o dono da vila manda e nós aqui [pensamos], que apodreçam.
10/11/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Entrevista com o promotor Leandro Pretto. Foto: Guilherme Santos/Sul21
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Sul21: Casos de esquartejamentos viraram praticamente rotina em Porto Alegre, este ano. Execuções de mulheres e crianças, que não eram comuns em disputa de tráfico, também. Existe uma guerra de facções e isso parece mostrar que o que acontece lá dentro, tem sim efeitos aqui fora. Como o que acontece dentro dos presídios se reflete nas ruas?
Luciano Pretto: Nós falamos com um preso que disse o seguinte: “é assim, doutor, antes o João me aprontava uma, eu mandava um meu lá da rua e mandava matar o João. Mas se o João não estava, eles iam embora e procuravam pelo João depois. Hoje não. Hoje eles chegam lá, se não está o João, mas está o filho do João, a mulher do João, matam todos. Daí o João vai fazer a mesma coisa com os meus e é isso que está acontecendo”. Por outro lado, traficante não pode pedir dinheiro no banco para comprar outra boca. Então, eles tomam. É bem complicado e isso tudo é um ciclo.
Eu não quero só falar das coisas horríveis que a gente vê na cadeia, porque isso todo mundo sabe. Eu quero mostrar o quanto nós todos temos responsabilidade sobre isso, no momento que a gente não quer saber ou só quer que se exploda mesmo. Porque eles não vão explodir. Eles vão sair dali. A maioria vai receber uma pena pequena e em pouco tempo vai estar na rua, mas aprendeu ou deve fazer coisas na rua e vai fazer. É preciso que a gente quebre o ciclo de ódio. Não vai ser uma coisa simples, mas tem que começar, de alguma maneira tem que começar.
Sul21: O senhor trabalha há 12 anos na fiscalização dos presídios de Porto Alegre e da região metropolitana. Se pudesse contar o que já viu dentro das prisões gaúchas, para alguém que nunca se aproximou dessa realidade, o que contaria?
Luciano Pretto: Se a gente mantiver esse pensamento, de que “bandido bom é bandido morto”, que os caras “tem que sofrer”, nós estamos jogando contra nós mesmos. Essa conta a sociedade precisa fazer. Não é a favor da sociedade manter a situação que os presídios estão hoje, é exatamente o contrário. Hoje ouvi um repórter [no rádio] dizendo, “ah, mas é melhor no contêiner do que na viatura, do que na delegacia”. O que ele sabe disso? O que a gente vai fazer para solucionar o problema? Só punir não vai resolver.
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Efeitos das mudanças climáticas já prejudicam brasileiros, aponta Greenpeace

por Camila Boehm da Agência Brasil, para site Sul21 - Sociedade e Desequilibrio Ambiental (fonte no final)
Redução da vazão dos rios é uma das consequências das mudanças do clima, segundo Greenpeace | Foto: Divulgação Chesf
Redução da vazão dos rios é uma das consequências das mudanças do clima, segundo Greenpeace | Foto: Divulgação Chesf
Dez anos depois da publicação do último relatório do Greenpeace sobre os prejuízos decorrentes das mudanças climáticas, novo documento da entidade mostra que pouca coisa mudou. “O que tem de mais emblemático é que, dez anos depois, ainda não conseguimos arrumar uma solução para evitar as mudanças climáticas. Continua uma discussão muito grande, as coisas não saem do papel e os efeitos já estão acontecendo”, avalia o coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, Márcio Astrini.
“Uma década depois ainda tem acordos sendo discutidos, de quem é a responsabilidade, que tem que ajudar mais com dinheiro. Enquanto isso o clima, na vida real, vai alterando e já prejudicando a vida das pessoas”, completa. Um efeito concreto na rotina das pessoas, segundo Astrini, é a chamada bandeira tarifária, que traz uma variação na cobrança da energia elétrica aos consumidores.
Pelo modelo de bandeiras tarifárias, quando a energia vem das usinas hidrelétricas, a tarifa tem um valor, mas se o governo precisa utilizar as termelétricas – que são mais poluentes e mais caras – o consumidor paga um valor adicional pela eletricidade que chega à sua casa.
“O Brasil produz muita energia de hidrelétrica, que depende do rio corrente para gerar energia. Tem chovido de forma desregular, quer dizer, tem horas que aquele rio está muito cheio e tem horas que está muito seco”, disse Astrini sobre uma das previsões ligadas ao aquecimento global apontadas no relatório, que é a tendência de redução da vazão dos rios. Como 64% da eletricidade do país vêm das hidrelétricas, menos água nos rios significa menos produtividade e risco de energia mais cara.
“Isso impacta diretamente na conta de luz das pessoas. Muita gente está sentindo isso na conta”, acrescenta.
Soluções
Astrini aponta duas soluções que podem evitar o agravamento de prejuízos causados pelas mudanças climáticas: implementar energias renováveis – como solar, eólica e biomassa – e acabar com o desmatamento. As medidas, segundo o ambientalista, não só contribuem para o combate ao aquecimento global, como tornam o Brasil mais resistente a essas mudanças.
“Precisamos bolar outras formas de gerar energia no país e eletricidade para a casa das pessoas. Temos muito sol, temos muito vento, temos uma capacidade de produção de agricultura muito grande, e essas três coisas podem dar pra gente energia solar, eólica e biomassa. O Brasil investe muito pouco nisso”, pondera. Segundo o coordenador do Greenpeace, variar a matriz energética pode dar ao país maior segurança no setor, sem precisar recorrer a opções poluentes como as termelétricas a carvão e a gás.
A segunda ação seria sobre as florestas. “Se o Brasil eliminar o desmatamento – que é a nossa maior fonte de emissões de gás de efeito estufa –, além de diminuir as emissões globais, ele também preserva uma floresta como a Amazônia e o Cerrado”, disse.
Além do benefício direto para a conservação do bioma, Astrini destacou a importância da Amazônia como regulador climático. “Alguns estudos dizem que, devido à existência da Amazônia, é que tem a regularidade da quantidade de chuvas no sul, no sudeste e no centro-oeste do país, que são exatamente os lugares que mais produzem agricultura. Então, se a gente desmata essa floresta, temos um efeito contrário duplo: vamos emitir muito carbono e retirar do país esse regulador climático.”
http://www.sul21.com.br/jornal/efeitos-das-mudancas-climaticas-ja-prejudicam-brasileiros-aponta-greenpeace/