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8.17.2016

Por que parecem distantes os sonhos de uma internet capaz de resgatar a democracia?

  • A internet tragada pelo capitalismo de vigilância?

  • Há brechas para retomá-los? Debate essencial no site "Outras Palavras"
por Rafael Evangelista e Rafael Zanatta, entrevistados por Antonio Martins - Sociedade e Internet (fonte no final)

Protesto em LondresProtesto em Londres em 2012: "o capitalismo não está funcionando?"
Foto Alan Denney / Flickr: Occupy London
Em 2011, sob impacto da Primavera Árabe e da revolta dos Indignados na Espanha, o sociólogo catalão Manuel Castells anteviu a possibilidade de uma radicalização da democracia, para a qual a internet seria instrumento essencial. Havia razões para tanto.
Duas ditaduras árabes – Egito e Tunísia – haviam desmoronado graças a mobilizações facilitadas pelas redes sociais. Em todo o mundo, uma enorme galáxia de sites e blogs desafiava o pensamento monocórdio das velhas mídias, sempre atrelado ao poder.
Novas ferramentas digitais convidavam as sociedades a se apropriar de assuntos que haviam sido, sempre, privilégio da elite governante – os orçamentos públicos, por exemplo. Leis que tentavam restringir a rede – como a Sopa, nos Estados Unidos, ou o “AI-5 digital”, no Brasil, eram derrubadas a partir de mobilizações convocadas, sem a necessidade dos partidos políticos, por pequenos grupos conscientes e ativos. Em apenas cinco anos, quase tudo isso mudou.
Já em dezembro de 2012, Edward Snowden revelaria a contrapartida até então desconhecida do que pensávamos ser um esboço de controle social sobre o poder. Cada passo nosso na rede, cada ousadia era vigiada, registrada, classificada.
Quanto mais desafiadores, mais vulneráveis: Aaron Schwarz, um dos mais rebeldes, perderia a vida um ano depois, exatamente por isso. Mais grave: a contra-ofensiva não é feita apenas de controle policial. Em meia década, a internet emburreceu um século.
Bilhões de seres humanos entraram na rede, neste curto período. Mas tanto para eles, quanto para muitos dos antigos internautas, “navegar” resume-se hoje, na maior parte do tempo, a transitar de uma página a outra do Facebook. Todas cercadas, submetidas a censura, sujeitas a manipulação política explícita. Quanto mais somos seduzidos por este passatempo fácil, mais dados oferecemos a quem se dedica ou a controlar nossos passos, ou a vender, como mercadoria, o mapeamento de nosso desejo. Como regredimos tanto? Será possível um resgate?
Um debate sobre este tema crucial – e naturalmente omitido pela velha mídia – inaugura um novo gênero, nos experimentos que Outras Palavras realiza com produções em vídeo.
Há duas semanas, ouvimos, em nossa redação, dois pesquisadores que se dedicam há anos ao assunto – tanto no estudo acadêmico de profundidade quanto em ativismo qualificado. São eles o antropólogo Rafael Evangelista, professor da Unicamp e integrante da Rede Latino Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits); e o advogado Rafael Zanatta, que coordenou o Núcleo de Direito, Internet e Sociedade da USP e atua hoje no IDEC.
Durante uma hora e meia, conversamos sobre o presente e futuro da internet. Abordamos temas que parecem, às vezes, ter importância principalmente material – como o esforço das empresas de telecomunicações (as “teles”) para multiplicar a cobrança pelo aceso à rede. Eles expuseram o que significa a ameaça de mudar a composição do Comitê de Gestão da Internet (CGI-Brasil), em favor destas empresas. Avançamos para considerações sobre os graves sinais de retrocesso na rede e os possíveis caminhos para revertê-lo.
Uma possível síntese das informações e análises lançadas por Evangelista e Zanatta poderia destacar quatro pontos:
1) Na disputa pelo que será a Internet, as grandes corporações estão novamente na ofensiva. Elas voltaram a recuperar terreno quando o celular desbancou o computador de mesa e o “laptop”, como principal caminho de acesso à rede. Muito mais populares, os “smartphones” têm, no entanto, duas características perversas. Exigem “aplicativos” dedicados. Ao contrário dos antigos “navegadores”, eles são restritivos, porque não dão acesso ao conteúdo publicado por qualquer participante da Internet. Mais de 2 bilhões de pessoas já baixaram os “apps” criados pelo Google e Facebook. Porém, por meio deles, é possível acessar apenas os serviços oferecidos por estas duas mega-empresas. Além disso, por sua configuração física (som e imagem excelentes, mas teclado mínimo) os “smartphones” são muito menos interativos que seus predecessores. Reduzem o usuário a umconsumidor de conteúdos e inibem sua possibilidade de publicar.
2) Esta mudança apassivadora produziu o que o fundador do Wikileaks Julian Assange, qualifica como a redução da Internet a promotora doCapitalismo de Vigilância. Num mundo obsessivamente interligado, quem está na rede de forma passiva é reduzido a mero objeto, dado a ser vendido. Mas a gravidade deste retrocesso ainda não foi compreendida – nem pelos que estão mergulhados na rede, nem pela maioria dos que continuam a enxergá-la como um possível território de crítica e de articulação das sociedades. Superar este déficit – ou seja, perceber que a luta está sendo perdida – é um passo inicial e indispensável para buscar revertê-lo.
3) Brechas para tentar um resgate continuam a se abrir, mas precisam ser identificadas – porque não são as mesmas que conhecíamos há poucos anos. Na virada do século, por exemplo, os espaços de diversidade na Internet foram abertos porque o estouro da bolha “ponto.com”, na Bolsa de Nova York, devastou as grandes corporações que tentavam colonizar a rede. Isso projetou empresas então emergentes (como o Google).
Em sua disputa com os gigantes da época (a Microsoft, principalmente), eles foram obrigados a recorrer às comunidades do software livre. Hoje, no entanto, os principais executivos do Google são praticamente parte da estrutura do Pentágono e do Departamento de Estado em Washington, como relata Julian Assange numa entrevista recente.
4) A luta pelo futuro da Internet será longa e árdua – mas isso não é um convite ao imobilismo. É possível agir desde já, por meio de uma série de caminhos muito concretos. Preferir, ao Facebook, os sistemas de busca e agregação de conteúdos (por meio RSS) em que os critérios são definidos pelo usuário – não por um algoritmo desconhecido e manipulável. Usar software livre. Instalar, contra a vigilância, programas de criptografia, que são muito eficientes. Resistir contra a cobrança abusiva do uso da rede, pelas “teles”.
Garantir a integridade do Comitê Gestor da Internet (CGI), uma inovação brasileira de enorme repercussão internacional. Impedir a quebra da neutralidade da rede por meio de estratagemas que fingem assegurar “popularização”, mas criam um “apartheid digital”, por oferecer acesso limitado e paupérrimo. Defender a universalização do acesso integral, em projetos como o Plano Nacional de Banda Larga, abandonado porém cada vez mais necessário.
A entrevista com Evangelista e Zanatta é um sinal de que a luta não está perdida. Ela foi feita, e está sendo difundida, com orçamento baixíssimo. A chamada “convergência digital” reduziu drasticamente os preços dos equipamentos e do registro de som e imagem. Para produzir uma entrevista, basta uma pauta inteligente, ótimos interlocutores, uma fotografia competente, minimalista e criativa. As mesmas redes (Facebook e YouTube) que constroem o Capitalismo de Vigilância precisam – ao menos por enquanto – difundir também os conteúdos que as denunciam e buscam uma alternativa de sentido oposto. A luta não se faz fora do sistema, mas em suas entranhas.
Outras Palavras anima-se de apresentar mais esta iniciativa. Novas entrevistas virão, explorando as brechas existentes. “Re-existiremos”, como gosta de dizer, em tom de blague, Zé Celso Martinez Corrêa. Visões como a de Evangelista e Zanatta nos inspirarão.
http://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-palavras/a-internet-tragada-pelo-capitalismo-de-vigilancia

Lei de Organizações Criminosas, arma contra os movimentos sociais

  • Para especialistas em leis, norma que recentemente foi utilizada para indiciar integrantes do MST e manifestantes secundaristas abre precedentes perigosos contra movimentos sociais
por Ingrid Matuoka para Revista Carta Capital - Sociedade e Lei contra Movimentos Sociais

Foto José Cruz/ Agência Brasil
MSTIntegrantes do MST foram acusados de associação criminosa
No último dia 4, trabalhador rural Ronair José de Lima foi morto em uma emboscada no Complexo Divino Pai Eterno, em São Félix do Xingu (PA). Presidente da Associação Terra Nossa e ativista da reforma agrária, Lima sofria ameaças constantes desde fevereiro, a maioria realizada por pessoas que se diziam proprietários do complexo.
O assassinato provocou uma manifestação pública de Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão. Em uma nota de pesar, Duprat afirmou que a violência no campo é potencializada pela impunidade, pela paralisia da reforma agrária e também pela criminalização dos movimentos sociais.
“A imputação a seus integrantes [de movimentos sociais] de integrarem "organização criminosa", pelo simples fato de pertencerem ou dirigirem algum movimento, é um desvirtuamento e uma falsificação da Lei 12.850, além de afronta ao princípio democrático”, disse Duprat na nota.
A legislação à qual Duprat se referia é a chamada lei das Organizações Criminosas. Aprovada há pouco mais de dois anos, a lei 12.850/2013 é tida como muito importante por diversos juristas. Graças à ela, as autoridades ganharam uma série de ferramentas para investigar crimes, como a delação premiada, central na Operação Lava Jato. A lei, entretanto, tem um efeito colateral considerável. Cada vez mais, é usada para incriminar integrantes de movimentos sociais, como afirmou Duprat.
Um caso simbólico ocorreu recentemente, em Porto Alegre, por obra do delegado Omar Abud. Em julho, ele indiciou oito estudantes secundaristas, o jornalista Matheus Chaparini, do Jornal Já, e o cineasta Kevin D’Arc por associação criminosa e outros três crimes. O inquérito policial foi aberto por causa de uma ocupação da Secretaria da Fazenda no Rio Grande do Sul em junho deste ano, em meio a um protesto por melhorias na educação.
O Ministério Público ainda vai analisar se oferece ou não a denúncia, mas o caso chamou a atenção da Procuradoria da República do Rio Grande do Sul. Em nota, Fabiano de Moraes, procurador regional dos Direitos do Cidadão, classificou o episódio como exemplo de "intolerável criminalização dos movimentos sociais" que revela "quão preocupante é a situação dos direitos individuais e sociais".
A CartaCapital, Moraes afirma que a manifestação em Porto Alegre era pacífica e fazia parte de uma série de ocupações de escolas por secundaristas que pediam melhorias no ensino. “Eles exigiam mudanças, os seus direitos, e isso passa bem longe de ser uma organização criminosa. Fica clara a aplicação errônea da lei nesse caso", disse.

Secundaristas
Secundaristas do Rio Grande do Sul faziam parte de manifestações que se espalharam pelo Brasil em busca de 
melhorias na educação (Foto: Tomaz Silva/ Agência Brasil)
Para Heloisa Estellita, professora de Direito da Fundação Getúlio Vargas, a lei que subsidia decisões como a do delegado Omar Abud tem problemas. Estellita avalia que no capítulo específico sobre as organizações criminosas a lei é “expansiva, perigosa, e de uma severidade desproporcional”. Para ela, uma reforma no Código Penal teria sido suficiente para melhorar o combate ao crime organizado. “Isso evitaria criar algumas situações piores que o uso dessa lei gerou”.
Ainda assim, a professora da FGV entende que a lei só pode levar à criminalização de movimentos político-sociais quando interpretada fora do sistema jurídico brasileiro. “Ela tem de ser interpretada dentro dos limites constitucionais que protegem a liberdade de manifestação de pensamento, de opções políticas e religiosas etc", diz. "Pode ter um promotor, um delegado, um juiz que interpreta esse dispositivo fora do sistema? Pode. O jeito é corrigir isso via Poder Judiciário”.
Estellita lembra que o Supremo Tribunal Federal discutiu o direito de manifestações em 2011, quando debateu a legalidade das chamadas "marchas da maconha". Naquele julgamento, prevaleceu a ideia de que a liberdade de expressão e de manifestação somente pode ser proibida quando for dirigida a incitar ou provocar ações ilegais e iminentes.
Tramita no Congresso um projeto que pode mitigar a criminalização de movimentos sociais com base na lei 12.850/2013. O deputado Patrus Ananias (PT-MG) e mais seis parlamentares têm uma proposta que acrescenta ao artigo 1º um parágrafo que torna suas regras inaplicáveis “à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais”.
Estellita, da FGV, julga importante que essa proposta seja aprovada. “Juridicamente é uma alteração desnecessária, mas, na prática, é uma alteração importante e tem um efeito educativo porque alguns órgãos não cumprem as regras", diz. "Isso também aconteceu no caso de o STF precisar fazer uma súmula vinculante sobre o uso de algema. É óbvio que só pode usar algema em estado de necessidade, mas nem todo mundo cumpre”.
O chefe do departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da USP, Sérgio Salomão Shecaira, explica que a redação de parte dessa lei é de tipo aberto, ou seja, não faz uma descrição muito específica da conduta que se pretende incriminar. Isso, segundo ele, aumenta o risco de perder segurança jurídica ao permitir múltiplas interpretações.
“Isto acontece quando diz na lei que se quatro ou mais pessoas se associarem ‘com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza’, eles são uma organização criminosa. Isso pode ser um simples roubo ou uma ocupação de terra”, diz.
As ocupações de terra, de fato, têm sido enquadradas nesse tipo penal. Em 5 de agosto, um dia depois do assassinato de um trabalhador rural no interior do Pará, o Ministério Público de Goiás pediu a prisão de quatro integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra com base nessa lei. Na decisão da Justiça, consta que eles são líderes do movimento que ocupou duas fazendas de Santa Helena de Goiás. Segundo o MST, a Lei de Organizações Criminosas nunca tinha sido usada contra o grupo até então.
Shecaira, da USP, afirma que o instrumento penal não tem por objetivo atingir os movimentos sociais, mas isso depende da forma como ele é utilizado. “Não precisava de nenhuma lei de organizações criminosas para punir os movimentos sociais, já existem elementos para punir pelas condutas eventualmente exacerbadas que eles tenham”. Contudo, Shecaira acredita que essa nova lei traz uma referência incriminadora a mais. “Nesse sentido, isso pode facilitar”.
Estellita aponta outro aspecto da lei que é falho. Em tese, o maior dano à sociedade é feito por meio do crime originário que, portanto, deveria ter a maior pena. Com a lei 12.850 isso pode não ocorrer.
A professora explica que se alguém for acusado de praticar crimes tributários a pena é de dois a cinco anos. Mas se também for integrante de uma organização criminosa destinada a praticar crimes tributários, cuja pena é de três a oito anos, chega-se à situação paradoxal de que praticar os crimes que de fato lesam os bens jurídicos, os interesses do Estado, têm uma pena menor do que o fato de você integrar a organização dita criminosa. “As alterações legislativas no Brasil só vêm para aumentar as penas e entupir o sistema carcerário brasileiro, sem a menor atenção com relação de proporcionalidade”, diz.
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-lei-de-organizacoes-criminosas-contra-os-movimentos-sociais