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7.09.2021

Brasil: apagões será fruto do enfraquecimento da Eletrobrás e falta de investimento do setor privado

O mo­delo está todo er­rado. O pla­ne­ja­mento não é se­guido pelo ca­pital, o mer­cado livre se apro­veitou de so­bras de­cor­rentes da queda de con­sumo pós-ra­ci­o­na­mento no ano passado (2020) e dos anos chu­vosos e não in­vestiu um tostão em novas usinas

por Gabriel Brito* no Correio da Cidadania – Sociedade e Governo Federal Dilapida Patrimônio Brasileiro

Al­mi­rante Bento Al­bu­querque, mi­nistro das Minas e Energia, em pro­nun­ci­a­mento na noite do dia 28 de junho de 2021

En­quanto o go­verno nau­fraga no meio de uma CPI que já trouxe re­ve­la­ções de­fi­ni­tivas sobre os crimes de­li­be­rados pelo bol­so­na­rismo na gestão da pan­demia, o setor elé­trico bra­si­leiro se anuncia como bomba-re­lógio. O pro­nun­ci­a­mento de se­gunda, 28 de junho de 2021, do mi­nistro das Minas e Energia, al­mi­rante Bento de Al­bu­querque, pa­rece uma de­cla­ração de de­ses­pero. Em en­tre­vista ao Cor­reio da Ci­da­dania, Ro­berto D’Araujo, en­ge­nheiro e di­retor do Ins­ti­tuto Ilu­mina, con­firma que de­vemos temer o pior após anos su­ces­sivos de pés­sima gestão do setor.

“A Ele­tro­brás foi obri­gada a so­correr o mo­delo que só en­ca­receu o qui­lowatt/hora (kWh) e mul­ti­plicou a ca­pa­ci­dade de tér­micas por seis. Ela teve de com­prar dis­tri­bui­doras, o ca­pital exigiu par­ce­rias com a Ele­tro­bras de sócia mi­no­ri­tária para haver algum aporte e a es­tatal ainda teve de tentar re­duzir ta­rifas pra­ti­ca­mente so­zinha, sem ne­nhum di­ag­nós­tico sobre o au­mento ta­ri­fário”, ex­plicou o en­ge­nheiro, que também foi as­sessor es­pe­cial da es­tatal entre 2003 e 2007.

Ao elencar quatro prin­ci­pais erros ad­mi­nis­tra­tivos, D’Araujo des­monta as ale­ga­ções do mi­nistro para a crise do setor, men­ciona a seca po­ten­ci­a­li­zada por uma po­lí­tica de des­ma­ta­mento do pró­prio go­verno e elenca me­didas que de­ve­riam pautar uma gestão so­ci­al­mente be­né­fica do setor ener­gé­tico bra­si­leiro – algo ne­gli­gen­ciado mesmo com das cons­tru­ções de gi­gantes hi­dro­e­lé­tricas nos úl­timos anos e que de modo algum po­deria ocorrer com a pri­va­ti­zação da Ele­tro­brás.

A en­tre­vista com­pleta pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Em pri­meiro lugar, como você com­pre­ende o pro­nun­ci­a­mento do mi­nistro das Minas e Energia, al­mi­rante Bento de Al­bu­querque, que pediu ati­tudes de eco­nomia de energia à po­pu­lação neste mo­mento? O que po­demos es­perar nos pró­ximos tempos?

Ro­berto D’Araujo: Com a eco­nomia se ar­ras­tando, com o cres­ci­mento do con­sumo bas­tante re­du­zido, com lojas fe­chadas em função da crise econô­mica, com as tér­micas caras li­gadas e com ban­deira ta­ri­fária no topo, in­ter­pretei como um sinal de de­ses­pero, apesar da de­cla­ração de que não vai haver ra­ci­o­na­mento.

Ele es­conde quatro coisas im­por­tantes:

1) os re­ser­va­tó­rios estão se es­va­zi­ando há cinco anos;

2) os re­gis­tros his­tó­ricos de va­zões dos rios do Su­deste mos­tram que no pe­ríodo 1951 – 1957 elas foram tão secas quanto agora, por­tanto, a crise não é “a pior em 91 anos”, como disse tex­tu­al­mente;

3) parte da oferta de energia as­so­ciada às tér­micas caras, ao não serem aci­o­nadas pelo Ope­rador Na­ci­onal do Sis­tema (ONS), na re­a­li­dade es­vazia re­ser­va­tó­rios, pois quem gera no lugar delas são as hi­dro­e­lé­tricas;

4) na ver­dade o setor pri­vado não in­vestiu como o alar­deado e, quando o ca­pital per­cebe que o go­verno vai vender a Ele­tro­bras, aguarda para com­prar ativos prontos.

Po­demos es­perar apa­gões, pois ao es­va­ziar re­ser­va­tó­rios, as hi­dro­e­lé­tricas perdem po­tência e podem não res­ponder a va­ri­a­ções bruscas de con­sumo.

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais as ra­zões da crise do setor? Como avalia a gestão do setor elé­trico bra­si­leiro na pre­si­dência de Bol­so­naro?

Ro­berto D’Araujo: A crise é fruto da falta de in­ves­ti­mento pelo de­sin­te­resse do setor pri­vado e pela fra­gi­li­zação da Ele­tro­bras. Ela foi obri­gada a so­correr o mo­delo que só en­ca­receu o qui­lowatt/hora (kWh) e mul­ti­plicou a ca­pa­ci­dade de tér­micas por seis. Ela teve de com­prar dis­tri­bui­doras, o ca­pital exigiu par­ce­rias com a Ele­tro­bras de sócia mi­no­ri­tária para haver algum aporte e a es­tatal ainda teve de tentar re­duzir ta­rifas pra­ti­ca­mente so­zinha, sem ne­nhum di­ag­nós­tico sobre o au­mento ta­ri­fário.

Por­tanto, os erros foram de go­vernos su­ces­sivos. Na re­a­li­dade, todos os go­vernos des­pre­zaram o es­ta­tuto da em­presa que men­ciona que, ao exercer uma po­lí­tica pú­blica e ter pre­juízos, de­veria ser res­sar­cida pelo Te­souro.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que con­si­dera das ale­ga­ções a res­peito de grandes eventos cli­má­ticos para a crise do setor? Não há uma res­pon­sa­bi­li­dade do go­verno fe­deral e suas po­lí­ticas nesse sen­tido também?

Ro­berto D’Araujo: Evi­den­te­mente, há in­fluên­cias do des­ma­ta­mento na Amazônia. Es­tamos as­sis­tindo mu­danças cli­má­ticas que só mesmo os ne­ga­ci­o­nistas não re­co­nhecem.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que po­deria ser feito para se evitar apa­gões e ra­ci­o­na­mento?

Ro­berto D’Araujo: Re­duzir ainda mais o con­sumo, acabar com a ba­gunça dos postes das ci­dades que es­condem perdas elé­tricas, in­vestir em eó­licas e solar, parar de in­ventar taxas contra os te­lhados fo­to­vol­taicos. En­tre­tanto, es­tamos su­pe­ra­tra­sados.

Cor­reio da Ci­da­dania: Di­ante disso, como ana­lisa a pro­posta de pri­va­ti­zação da Ele­tro­brás por parte do Mi­nis­tério da Eco­nomia? Qual o ta­manho da im­por­tância da es­tatal no setor?

Ro­berto D’Araujo: É uma ver­gonha pla­ne­tária, pois ne­nhum país com sis­tema pa­re­cido com o nosso tem seu setor todo pri­vado. China, Ca­nadá, Rússia, Índia, No­ruega, Suécia, Es­tados Unidos devem estar rindo do Brasil.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como per­cebeu o au­mento re­cente das ações da em­presa em 10%? E como tal au­mento di­a­loga com se­tores li­be­rais que se mos­traram con­trá­rios à pri­va­ti­zação da em­presa?

Ro­berto D’Araujo: Evi­den­te­mente, as usinas atin­gidas pela me­dida pro­vi­sória do go­verno Dilma (MP 579, de 2012), que têm uma re­ceita ir­ri­sória (apro­xi­ma­da­mente R$ 40/MWh), vão passar a vender energia por mais de R$200/MWh. Só assim que as ações sobem. Al­guns se­tores per­cebem que isso cau­sará um au­mento do custo da energia que está na base da eco­nomia. Não há como ter be­ne­fí­cios co­le­tivos.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como che­gamos a tal si­tu­ação de­pois da cons­trução de grandes usinas em anos tão re­centes?

Ro­berto D’Araujo: Todas essas usinas foram cons­truídas com a Ele­tro­bras como aci­o­nista mi­no­ri­tária. Por­tanto, Belo Monte, Santo An­tonio, Jirau, Teles Pires, Peixes, Serra do Facão, Ba­guari, Sinop, Re­tiro Baixo, Mauá, Três ir­mãos, Dar­da­nelos e Foz do Cha­pecó são usinas sob con­trole pri­vado às custas de um es­forço fi­nan­ceiro que a Ele­tro­bras não po­deria fazer, dado seu nível de en­di­vi­da­mento.

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais os grandes gar­galos do setor? Que tipo de po­lí­ticas de­ve­riam ser ori­en­tadas em sua visão?

Ro­berto D’Araujo: O mo­delo está todo er­rado. O pla­ne­ja­mento não é se­guido pelo ca­pital, o mer­cado livre se apro­veitou de so­bras de­cor­rentes da queda de con­sumo pós-ra­ci­o­na­mento e dos anos chu­vosos e não in­vestiu um tostão em novas usinas.

Existe um mer­cado livre que já re­pre­senta 30% do con­sumo. Há uma for­mação de preço que não tem nada a ver. O sis­tema de preços no mer­cado é uma total in­venção ma­te­má­tica que nada tem a ver com oferta e de­manda.

É bom des­tacar que o cha­mado mer­cado livre é só para con­su­mi­dores acima de 500 qui­lowatts. São grandes con­su­mi­dores. O pro­blema é que a ne­go­ci­ação de preços é in­flu­en­ciada for­te­mente pelo custo mar­ginal de ope­ração, que é um pa­râ­metro do ONS. Enfim, quando ocorre um ano chu­voso só o mer­cado livre se apro­veita.

O ONS tem cri­té­rios con­fli­tantes com a Em­presa de Pes­quisa Ener­gé­tica (EPE) e com a Câ­mara de Co­mer­ci­a­li­zação de Energia Elé­trica (CCEE). Esse é o custo da frag­men­tação da po­lí­tica de pla­ne­ja­mento e ope­ração.

Sin­ce­ra­mente, estou muito pes­si­mista, pois a he­rança de de­ci­sões er­radas é ab­surda. Não sei se po­de­remos voltar a ter kWh ba­rato como antes de 1995.

*Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

Publicado no Correio da Cidadania: 01/07/2021

Fonte:  https://www.correiocidadania.com.br/34-artigos/manchete/14688-podemos-esperar-apagoes-fruto-da-falta-de-investimento-do-setor-privado-e-fragilizacao-da-eletrobras