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10.27.2022

O homem neo-liberal: a mudança forçada na forma de pensar será a destruição dos corpos pelo neo-liberalismo ?

 Entraremos numa crueldade desconhecida que consiste em querer modificar esse corpo humano velho de 100 mil anos. Para, a partir dele, tentar improvisar outros

A suspensão atual das proibições ou direitos civis, leis ambientais de sustentabilidade, destruição de culturas étnicas, costumes, espiritualidade,  esconde um verdadeiro projeto pós-nazista sustentado pelo capitalismo ou neo-liberalismo. Ao mesmo tempo em que quebra as regulamentações simbólicas, possibilita que a técnica avance sozinha, até quebrar a humanidade, ou seja, dominar os pensamentos, destruir o espírito e nosso corpo de 100 mil anos não mais existirá... 

 "O nascer do novo homem", pintura de Salvador Dali na internet

por Dany-Robert Dufour* na revista Diplomatique- Sociedade e Risco do Capitalismo Destruir o Ser Humano

Dado que só há mais um conjunto de produtos que são trocados por seu estrito valor comercial, os homens devem livrar-se de todas as sobrecargas culturais e simbólicas

No livro L'art de réduire les têtes1, tentatou-se evidenciar a profunda reconfiguração das mentes realizada pelo mercado. A demonstração era relativamente simples: o mercado recusa qualquer consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental, cultural, ambiental…) ou a regulação social existente nos países, que possa impedir a livre circulação da mercadoria no mundo, circulação essa que traga prejuízos a vida. É por isso que o novo capitalismo tenta desmantelar qualquer valor simbólico unicamente em benefício do valor monetário neutro da mercadoria, ou seja, que evidencie somente o lucro em detrimento de quaisquer outros fatores desfavoráveis a existência do neo-liberalismo. Dado que não há mais nada senão um conjunto de produtos que são trocados por seu estrito valor comercial, os homens devem livrar-se de todas as sobrecargas culturais e simbólicas que, até há pouco tempo, garantiam suas trocas. Neste sentido, a materialidade somente do comércio em si mesmo, desfazendo qualquer forma social que ameace ou impeça o puro lucro.

Tem-se um bom exemplo dessa des-simbolização produzida pela expansão do reino da mercadoria quando se examina o papel-moeda emitido em euro no continente europeu. Observa-se que estas notas perderam as efígies das grandes figuras da cultura que, de Pasteur a Pascal e de Descartes a Delacroix, ou outras voltadas aos volores sociais, indexavam, ainda a pouco tempo, as trocas monetárias sobre os valores culturais patrimoniais dos Estados-Nação. Hoje, não há nada impresso nos euros além de pontes e portas ou janelas, exaltando uma fluidez des-culturada ou sem nenhuma cultura. Pede-se aos homens que se curvem ao jogo da circulação infinita da mercadoria (para não dizer, convence-se com argumentos para além do entendimento da sociedade). Pode-se dizer, portanto, que a lei do mercado é destruir todas as formas de lei, que representem uma pressão que de alguma forma, dificulte o lucro sobre a mercadoria.

Ao abolir qualquer valor comum, o mercado ou o neo-liberalismo está em via de fabricar um outro “homem novo”, privado de sua faculdade ou capacidade de julgar (sem outro princípio que o do lucro máximo), levado a usufruir sem desejar (a única salvação possível encontra-se na mercadoria, substituindo os verdadeiros dogmas sociais), formado em todas as flutuações identitárias (não há mais sujeito; existem apenas subjetivações temporárias, precárias) e aberto a quaisquer conexões comerciais, mesmo em prejuízo a sim mesmo. Estamos, aqui, diante de um aspecto muito particular da des-regulamentação neo-liberal que, infelizmente, não é compreendida, mas que já produz efeitos consideráveis em todos os domínios onde o homem atua, particularmente sobre o psiquismo humano (mudança da consciência humana). Um certo número de psiquiatras e de psicanalistas está constantemente atuando nos novos sintomas decorrentes desta des-regulamentação, como a depressão, as diversas dependências, as perturbações narcisistas, a extensão da perversão etc.

Está se fazendo o inventário dos novos sintomas decorrentes desta des-regulamentação, como a depressão, as diversas dependências, as perturbações narcisistas, perversões

Desregulamentação simbólica das regras sociais

Esta des-regulamentação de tipo novo provoca grandes confusões nos debates atuais. Ela é acompanhada de uma sensação de liberdade, baseado na proclamação da autonomia de cada um e numa extensão da tolerância em todos os campos sociais (dentre os quais o dos costumes), que tende a fazer acreditar de maneira enganosa, que estamos em vias de viver um intenso período de libertação. Dado que o antigo patriarcado opressivo está em desvantagem, um dos pontos que mais se prega, acredita-se que uma revolução sem precedentes estaria a caminho... esquecendo-se de que foi o próprio capitalismo que comandou esta “revolução” visando unicamente a facilitar a penetração da mercadoria nos domínios onde ela ainda não reinava – o dos costumes e o da cultura.

Karl Marx² não se enganava quanto a essa face “revolucionária” do capitalismo: “A burguesia”, escrevia ele, “não pode existir sem provocar, constantemente, grandes mudanças nos instrumentos de produção, portanto nas relações de produção e, portanto, no conjunto das condições sociais, as quais, o espirito capitalista tem a sobrevivência baseado nas quebras desse caldeirão de múltiplas valências sociais. De modo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores, era manter inalterado o antigo modo de produção. O que distingue a época burguesa de todas as precedentes é a incessante introdução de mudanças na produção, a des-estabilização contínua de todas as instituições sociais, em resumo, a permanência da instabilidade e do movimento, se assim é possível definir, contra-social. Todas as relações sociais enferrujadas, com seu cortejo de idéias e de opiniões admitidas e veneradas, dissolvem-se; as que as substituem envelhecem antes mesmo de se esclerosarem. Tudo o que era sólido, bem definido, se desmancha no ar, liquidifica (Bauman), tudo o que era sagrado se encontra profanado e, afinal, os homens são forçados a considerar com um olhar desiludido o lugar que ocupam na vida e suas relações recíprocas2.” Esta capacidade de transformar as relações sociais atingiu o ponto máximo através desse novo estado do capitalismo que é chamado às vezes, e com razão, de “anarco-capitalismo (anarquizar o social para capitalizar a vida).

Essa transformação funcionou tão bem, que houve quem tentasse reter apenas o lado “libertário”, “jovem” e “conectado” da nova forma, empolgando-se, sem grandes dificuldades, com a revolução dos costumes que ela introduzia. A confusão é tal que quem não faz outra coisa senão seguir essa des-regulamentação cultural e simbólica acredita-se muitíssimo revolucionário – penso na parte da esquerda conectada que se entusiasma com todas as “causas tendência” na sua investida revolucionária contra-social. Ora, é exatamente o que quer dizer o anarco-capitalismo que gosta, se não da “revolução”, pelo menos de todas as formas de des-regulamentação culturais e simbólicas. Todos os spots (mensagens) publicitários mostram isto, basta para entender, estabelecer um paralelo com a moral, o tradicional, o transcendente, o transcendental, a cultural, e a questão ambiental… .

"Esta des-regulamentação simbólica provoca grandes confusões nos debates atuais, pois é acompanhada de um cheiro libertário", ou seja, ela anarquiza para dominar o pensamento do ser humano.

Perigos potenciais para a civilização humana

Parece que as populações pressentem os consideráveis perigos potenciais que a civilização corre diante de tal des-regulamentação simbólica. Mas o mercado pode recuperar tudo em seu proveito: muitos grupos já estão agindo, vangloriando-se e vendendo morais de péssima qualidade. Ora, seria um erro crucial deixar o debate sobre os valores para os conservadores, sejam eles antigos ou “neo” (modernos). De fato, se se abandonar esse terreno, ele será, como nos Estados Unidos, ocupado por Donald Trump pelos tele-evangelistas e seus supostos puritanos, ou, como na Europa, pelos populismos fascistizantes que nos assustam, mas acabam enraizando-se na sociedade sob a ótica neo-liberal. Portanto, é urgente construir uma nova reflexão sobre os valores, sobre o sentido da vida em sociedade e sobre o bem comum destinado às populações confusamente alarmadas pelos estragos morais devidos à extensão infinita do reino da mercadoria, que após 11 de setembro de 2001, auferiu vantagens inimagináveis na rede social, aproveitando-se da internet. É claro que, se esse terreno não for cercado, essas populações serão tentadas a pender para o lado dos que o ocupam de forma tão barulhenta quanto indevida a sociedade, que sofre a mudança forçada na forma de pensar como a burguesia se dá por satisfeita.

Entretanto, restringir o debate a esses aspectos culturais seria cometer um grande engano. Porque parece que essa reconfiguração das mentes não é senão a primeira fase de um mecanismo mais amplo. Para dizê-lo em poucas palavras, a “redução de cabeças” e a des-simbolização são apenas o prelúdio de uma outra re-definição em profundidade do homem, a qual, então, atingiria não só sua mente, mas também seu corpo.

Ora, o homem atual está em via de ultrapassar esse ideal dado que, se estiver efetivamente em via de “esculpir sua própria estátua”, esta bem poderia ser uma estátua viva, chamada a substituir a do próprio homem. Observemos, de passagem, que isso não seria nada menos que o fim da filosofia, que seria abrangida numa tal intenção de redefinição das bases materiais da humanidade. Sua realização suporia, de fato, a transformação irremediável de um empreendimento, incessantemente relançado desde a Antiguidade, de reforma do espírito (pela ascese, pela busca da autonomia, pela re-fundação do entendimento) num objetivo puramente tecnicista de modificação do corpo. Mas de que serviria ganhar um corpo novo se isto significasse perder o espírito?

O anarco-capitalismo acreditou na idéia de que o dar-se leis é cruel e só confina a uma espécie de masoquismo insuportável. E remete cinicamente os que teriam necessidade de um suplemento de alma ao puritanismo obscurantista. É preciso, portanto, lembrar que os filósofos do Iluminismo, como Jean-Jacques Rousseau e Emmanuel Kant, diziam que a liberdade consiste apenas em obedecer às leis que o homem se deu. De fato, temos necessidade de verdadeiras leis jurídicas e morais – e não desses sucedâneos moralizantes – para, enfim, fazer justiça, para salvaguardar o mundo antes que seja tarde demais, para preservar a espécie humana ameaçada por uma lógica cega. Ora, estamos em via de ab-rogar todas as leis – exceto as do mais forte – e, se continuarmos nessa funesta direção, entraremos numa crueldade bem mais intensa que a de ter que se submeter a leis. Entraremos numa crueldade desconhecida que consiste em querer modificar esse corpo humano velho de 100 mil anos. Para, a partir dele, tentar improvisar outros.

A suspensão atual das proibições ou direitos civis, leis ambientais de sustentabilidade, destruição de culturas étnicas, costumes, espiritualidade,  esconde um verdadeiro projeto pós-nazista sustentado pelo capitalismo ou neo-liberalismo. Ao mesmo tempo em que quebra as regulamentações simbólicas, possibilita que a técnica avance sozinha, até quebrar a humanidade, ou seja, dominar os pensamentos, destruir o espírito e nosso corpo de 100 mil anos não mais existirá...
Tradução: Iraci D. Poleti

Edição: Mangue do Cachoeira

Publicado revista Diplomatique: 01.set.2005


* Dany-Robert Dufour, diretor de programa no Collège international de philosophie (Colégio Internacional de Filosofia), Paris. Autor, dentre outras obras, de: On achève bien les hommes, ed. Denoël, Paris, 2005.


1 - Ver, de Dany-Robert Dufour, L'art de réduire les têtes ? sur la nouvelle servitude de l'homme libéré à l'ère du capitalisme total, Denoël, Paris, 2003.

2 - Karl Marx, Manifeste communiste, trad. Lafargue, Ed. sociales, Paris, 1976, p. 35

Fonte: https://diplomatique.org.br/o-homem-neoliberal-da-reducao-das-cabecas-a-mudanca-dos-corpos/