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9.03.2022

Brasil Poderá ser o Caminho da Retomada da Liberdade na América do Sul Após 2022

"Apesar dos obstáculos internos, é possível o Brasil superar este momento amargo da sua história e retomar o caminho de construção da sua soberania demarcando seu lugar dentro deste novo mundo multipolar e agressivo que está se configurando à nossa frente", escreve José Luís Fiori

por José Luis Fiori* no IHU Unissinos – Sociedade e Geopolítica Brasil/América do Sul Após 2022

   Imagem no suportegeografico77.blogspot.com

 A América Latina é hoje um dos poucos lugares do mundo onde a revolta social contra o fracasso da globalização neoliberal vem sendo capitalizada pelas forças progressistas e por coalizões de governo com participação de partidos de esquerda. Serão grandes os desafios e as dificuldades que enfrentarão esses novos governos de esquerda, num contexto internacional de crise econômica e de guerra entre as grandes potências.

Mas ao mesmo tempo, este momento poderá se transformar numa oportunidade extraordinária para América Latina avançar na luta, conquista e consolidação de sua soberania dentro do sistema internacional. Os Estados Unidos estão enfrentando grandes desafios, em vários planos e regiões do do planeta e têm aumentado a pressão pelo alinhamento da América Latina, mas sua liderança regional também é declinante, como se pôde observar na última Cúpula das Américas promovida pelos Estados Unidos, e realizada na cidade dos Los Angeles, em 2022. Na verdade, os norte-americanos estão sem disposição real e sem recursos suficientes para envolver-se simultaneamente na Europa Central, na Ásia, no Oriente Médio, e ainda na América Latina. Uma boa hora, portanto, para renegociar os termos da relação do continente com os Estados Unidos, sem medo nem bravatas. E neste momento, a política externa e a liderança brasileira serão absolutamente fundamentais.

Nas três ou quatro últimas décadas em que o Brasil viveu uma sucessão de pequenos ciclos de abertura e internacionalização, seguidos por contramovimentos protecionistas, como aconteceu nos anos 90 e no início do século XXI, e voltou a acontecer depois do golpe de estado de 2015/2016. E agora de novo, tudo indica que esta última onda de abertura, desregulação e privatizações que foram responsáveis pelo aumento da desigualdade, da miséria e da fome no país está chegando ao fim, e o Brasil poderá então retomar o caminho interrompido da reconquista dos direitos sociais e trabalhistas de sua população, de proteção da sua natureza, e de expansão de seus graus de soberania internacional.

O Brasil tem a seu favor, nesta conjuntura mundial de guerra entre as grandes potências, e de crise energética, alimentar e hídrica em quase todo o mundo, a sua própria autossuficiência em fontes de energia, em grãos, e em disponibilidade de águas. Seu maior problema não está deste lado, está na forma desigual em que esta riqueza está distribuída e a grande resistência de sua classe dominante à qualquer tipo de política redistributiva. E neste ponto não há como enganar-se: é impossível avançar no plano da soberania externa do país sem avançar na luta contra a sua desigualdade social interna, o que exigirá do novo governo brasileiro a declaração de uma verdadeira guerra interna contra a miséria e a desigualdade de sua população.

A raiz última deste problema remonta sem dúvida aos 350 anos de escravidão que ainda pesarão por muito tempo sobre as costas da sociedade brasileira, somando-se às consequências sociais deletérias da longa ditadura militar do século passado. Período em que os militares dividiram ainda mais os brasileiros ao criar a figura do “inimigo interno” do país formado por seus próprios compatriotas que foram combatidos com as armas do próprio estado brasileiro. Uma aberração histórica, que também pesará ainda por muito tempo sobre o país, e que foi imposta ao Brasil pela vassalagem internacional dos seus militares. Neste sentido, também não haverá como avançar na luta pela soberania do país sem fazer uma revisão radical da posição interna e externa das FFAA brasileiras.

A resistência será enorme e virá de uma coalisão de forças que se consolidou nos últimos anos dentro do país à sombra do fanatismo ideológico e religiosos de uma “nova direita” que somou seu fascismo caboclo ao ultraliberalismo econômico da “velha direita” primário-exportadora e financeira, que agora é liderada pelo agrobusiness do centro-oeste, formando uma coalisão de poder “líbero-teológico-sertanejo” que financia a sua “vanguarda miliciana carioca” e inclui também os militares brasileiros que voltaram à cena aliados à direita, como sempre, mas agora convertidos ao catecismo econômico neoliberal.

Assim mesmo, apesar destes obstáculos internos, é possível o Brasil superar este momento amargo da sua história e retomar o caminho de construção da sua soberania demarcando seu lugar dentro deste novo mundo multipolar e agressivo que está se configurando à nossa frente. O Brasil não tem inimigos na América Latina, e seria um absurdo ou loucura iniciar uma corrida armamentista com nossos vizinhos, ou mesmo submeter-se à corrida militar de outros países dentro do continente latino-americano. Pelo contrário, o Brasil deve procurar ocupar no futuro o lugar de uma “grande potência pacificadora” dentro do sistema no seu próprio continente e dentro do sistema internacional.

Depois de Trump, o governo de Joe Biden se propôs retomar o caminho do liberal-internacionalismo mas ele mesmo percebeu rapidamente que esta proposta já havia esgotado seu potencial expansivo e que não lhe restava outro caminho que não fosse o do “nacionalismo econômico” e da proteção social da população americana por cima de qualquer outro objetivo internacionalista que não seja o das suas próprias guerras imperiais ao redor do mundo. Apesar disto, e a menos de uma guerra atômica que seria catastrófica para toda a humanidade, o mais provável é que os Estados Unidos mantenham sua presença militar e sua centralidade global durante o século XXI. Apesar de que seja visível e notória a sua perda de liderança fora do seu círculo de aliados e vassalos mais próximos, zona onde se situa tradicionalmente a América Latina, e de forma muito particular, o Brasil que sempre operou como ponto de lança dos Estados Unidos dentro do continente latino.

Assim mesmo, uma coisa é certa, se o Brasil quiser redesenhar sua estratégia internacional e assumir esta nova posição continental e internacional “não há dúvida que terá que desenvolver um trabalho extremamente complexo de administração de suas relações de complementariedade e competição permanente com os Estados Unidos, sobretudo, e também – ainda que seja em menor grau - com as outras grandes potências do sistema interestatal. Caminhando através de uma trilha muito estreita e durante um tempo que pode prologar-se por várias décadas. Além disto, para liderar a integração da América do Sul e o continente latino-americano dentro do sistema mundial, o Brasil terá que inventar uma nova forma de expansão continental e mundial que não repita a “expansão missionária” e o “imperialismo bélico” dos europeus e dos norte-americanos”[1].

Nota: [1] Fiori, J.L. “A inserção internacional do Brasil e da América do Sul”, 11/02/2010, publicado no IHU Unissinos.

*José Luís Fiori é professor emérito dos Programas de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ), e em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS/UFRJ), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenador do GP do CNPQ, “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e do Laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEIA/ UFRJ e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).

Publicado no IHU Unissinos: 02 Setembro 2022

Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/621827-o-duplo-movimento-e-a-conquista-da-soberania-artigo-de-jose-luis-fiori