Páginas

10.24.2023

Israel x povo palestino: conflito sem fim

"Israel não tem condições políticas e mesmo militares, apesar do seu poderio, de realizar a limpeza étnica que lhe permitiria ter uma fronteira separando os judeus de outros povos. Por outro lado, embora o Hamas não tenha a adesão clara da maioria dos palestinos, até porque não se submete a eleições desde que ganhou-a na faixa de Gaza em 2006, ele tem o suficiente de adesão, sobretudo da juventude. Esta não tem qualquer perspectiva de uma vida normal à sua frente e vive submetida a uma opressão e miséria que tem um alvo claro, o governo de Israel e um instrumento de combate também claro, o Hamas. Israel pode destruir a infraestrutura do Hamas e liquidar sua liderança, mas enquanto o sentimento de revolta estiver persistindo e enquanto houver Estados islâmicos dispostos a financiar, tudo isto pode ser reconstruído."

por Jean Marc von der Weid no IHU Unissinos – Sociedade e Ser Humano Sem Controle Emocional e Físico

Muita gente qualificada ou não já gastou um rio amazonas de tinta (metaforicamente, é claro, ninguém escreve mais com tinta) a partir dos mais diversos ângulos (militar, político, diplomático, geopolítico, sociológico, histórico, ...). Abordagens pró e contra Israel, com ou sem inclusão dos Estados Unidos e pró e contra o Hamas tenderam a dominar as mensagens. Uma parcela minoritária da esquerda condenou o Hamas e defendeu a causa palestina e foi execrada nas redes. Será que existe algo de novo ou de diferente a ser apresentado neste tema? Provavelmente não, mas vou assumir o risco de chover no molhado, sem pretensão de ter uma abordagem diferente ou de trazer novas informações. É no arranjo dos argumentos que espero fazer uma diferença e, sobretudo, na avaliação dos possíveis desdobramentos.

Antes de entrar na matéria, gostaria de analisar alguns argumentos que encontrei, mais ou menos explícitos entre os defensores das ações do Hamas. De forma sintética, eles podem ser reduzidos a algumas frases:

Os fins justificam os meios.

O inimigo do meu inimigo é meu amigo.

A violência dos oprimidos se justifica pela violência dos opressores.

Guerra é guerra

Estes argumentos concernem a definição de terrorismo neste debate. Na esquerda ninguém discute a existência de um terrorismo de Estado aplicado pelo governo israelense; os fatos falam por si. Mas uma parte da esquerda recusa-se a condenar o Hamas e a caracterizar sua ação como terrorista. Os mais explícitos defendem o direito do Hamas de massacrar civis israelenses como parte de sua estratégia político-militar, aceitando, no limite, que esta ação terrorista seja admissível no contexto desta guerra desigual. Outros discutem se o termo terrorismo é aplicável neste caso. A meu ver trata-se da busca da divisão em quatro de um fio de cabelo, ou seja, jogo de palavras para disfarçar uma posição altamente impopular de apoio à atos de violência contra inocentes.

Acho que, não fosse esta camisa de força ideológica, os fatos também falariam por si na caracterização da violência do Hamas. Só o negacionismo mais cru e cruel pode desconhecer que o assassinato a frio de mais de mil civis israelenses, quer na rave quer nos Kibutz ou nas estradas e vilas, foi um típico ato terrorista, em qualquer dicionário de política que se acesse. Argumentos querendo minimizar os atos como excessos de (alguns) palestinos revoltados por décadas de violência e opressão não fazem sentido quando se olha a amplitude do massacre. Bastante claro, as mortes foram planejadas pela direção do Hamas e executadas pelos seus quadros militares. Não é uma “reação visceral”, explicável com sociologia e psicologia, mas um ato preconcebido e com objetivos políticos e sobretudo militares.

Qual o objetivo político? Indicar para a população israelense que ela está vulnerável e, com isso, enfraquecer o governo de ultradireita de Netanyahu. Do ponto de vista da população de Israel, segundo pesquisas de opinião que ninguém questiona, a tática deu certo e o primeiro-ministro tem quase 80% de desaprovação. Mas e daí? Em que este impacto favorece os objetivos estratégicos do Hamas? Só para lembrar, o Hamas defende a liquidação do Estado de Israel e é de todo impossível que os cidadãos israelitas, de todas as posições políticas e ideológicas, venham a aceitar esta posição, por mais que fiquem preocupados e mesmo deprimidos com o estado de guerra interminável com as organizações palestinas.

E o objetivo militar? É claríssimo o fato de que a força armada do Hamas, que pode dispor de alguns milhares de combatentes, não tem poder para derrotar o exército israelense, não só muitíssimo mais bem armado como muitíssimo mais numeroso. O Hamas provocou o exército israelense com os massacres, e recuou para o labirinto de ruelas e túneis da faixa de Gaza, onde se aglomeram mais de dois milhões de pessoas. O governo de Israel adotou, até agora, uma posição de retaliação punitiva através de bombardeios pretensamente cirúrgicos para destruir a infraestrutura civil e militar do Hamas. É uma ação de baixa eficiência militar e alto custo político, já que a população civil é quem paga o preço nos bombardeios. Abrigados em túneis, os militares e militantes do Hamas estão a mais de 50 metros de profundidade, e podem esperar razoavelmente intocados que Israel reduza a parte norte de Gaza a um monte de escombros.

O governo de Israel acusa o Hamas de usar a população como “escudo humano” para inibir os bombardeios e se exime da responsabilidade das baixas civis provocadas pelas suas bombas. É isso mesmo que o Hamas está fazendo, mas o objetivo não é impedir os bombardeios porque nos muitos anos de ação da artilharia e da força aérea israelense isto nunca aconteceu. O objetivo é desgastar politicamente as forças armadas israelenses e este objetivo está sendo amplamente alcançado no plano internacional.

O governo israelense sabe que os bombardeios têm efeito politicamente negativo e têm efeito pífio militarmente, mas não tem alternativa a não ser a invasão da faixa de Gaza. Esta decisão parece que já foi tomada desde os primeiros dias da crise, mas vem sendo adiada por várias razões. A primeira foi a ordem de evacuação da população da região norte, com o objetivo de isolar os militantes e militares do Hamas e permitir um bombardeio ainda mais pesado. Há controvérsias sobre as novas bombas americanas adquiridas por Israel, e que seriam capazes de atingir os mais profundos túneis. De toda forma, até para chegar a este ponto da destruição da infraestrutura de proteção do Hamas, o impacto sobre o conjunto das edificações neste território vai deixar o monte de escombros de Stalingrado (cidade russa destruída pelos alemães na 2ª. guerra mundial) no chinelo. E calcula-se que ainda sobram quase 500 mil civis palestinos, homens, mulheres, crianças, velhos, doentes na futura “no man’s land”. O bombardeio pré-invasão terrestre vai ser um banho de sangue e o isolamento político e diplomático de Israel no mundo vai se aprofundar.

Como o exemplo citado de Stalingrado já demonstrou, o combate entre escombros de uma cidade arrasada diminui as vantagens do combatente mais equipado, impedindo a ação de blindados, por exemplo. Fica favorecido o combatente com mais mobilidade, como deverá ser o caso dos militantes do Hamas usando os túneis e, sobretudo, os mais aguerridos. Apesar da fama de super força armada, o exército de Israel não tem uma infantaria com experiência neste combate de rua, de túneis e de escombros e o grau de entusiasmo dos seus jovens é certamente menos intenso do que aquilo que a imprensa ocidental chama de “fanatismo” dos militantes do Hamas. Vai ser outro banho de sangue, incluindo um contingente de soldados israelenses em proporções nunca vistas nas suas guerras anteriores.

Hamas pode estar apostando, também, na expansão dos combates, atraindo ataques do Hezbolah a partir do sul do Líbano e do oeste da Síria. Seria um enorme aumento na pressão militar sobre as forças armadas de Israel que teriam que lutar em três frentes.

Muita coisa está ainda em especulação, inclusive a invasão de Gaza, depois dos conselhos dos militares americanos em contrário, acompanhados pela oposição pública de Biden, apesar de todo o seu “apoio total” a Israel.

Last but not least”, é preciso avaliar os impactos geopolíticos e diplomáticos desta crise. Há quem atribua a ação do Hamas a um “estímulo” do governo iraniano, cujo objetivo seria evitar os acordos sendo negociados com os auspícios do governo americano, entre Israel e a Arábia Saudita, que isolariam a posição dos aiatolás no Levante. De fato, governos com acordos com Israel já consolidados, como os do Egito e Jordânia, somaram-se aos do LíbanoSíriaTurquiaOUA (Organização da Unidade Africana), Arábia SauditaEmirados Árabes entre outros, para condenar Israel.

O isolamento de Israel está arrastando a diplomacia americana para o mesmo buraco, como ficou patente no veto (um contra 12 e duas abstenções) no Conselho de Segurança da ONU. A proposta brasileira da criação de um corredor humanitário foi extremamente hábil e representou uma espetacular vitória política do Brasil na presidência do Conselho. Vitória tão mais importante por colocar a nu a caduca estrutura decisória do Conselho, com os poderes de veto atribuídos aos países vitoriosos na Segunda Guerra Mundial (Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, França e China). Esta posição anacrônica é dura de entender para quem não estuda a história da ONU. Afinal de contas, quando esta decisão foi tomada em 1945, nem a França nem a China podiam ser consideradas forças vitoriosas na II GM. Mas o temor dos EUA de uma expansão comunista nos dois países levou a valorizar sua participação como parte de uma política de neutralização, que deu certo na Europa, mas não na Ásia. O presidente Lula tem repetido a crítica a este sistema ultrapassado pela evolução da geopolítica, pleiteando uma redistribuição de responsabilidades com maior destaque para forças como ÍndiaJapãoIndonésiaÁfrica do Sul, EgitoAlemanhaCanadáMéxico e Brasil. O absurdo do poder de veto ficou mais do que evidenciado neste episódio.

A discussão mais importante nesta crise deve ser a da busca de uma solução para o impasse que já está fazendo quase 75 anos.

As resoluções da ONU definindo a existência de dois Estados, representando a nação israelense e a nação palestina, são tão velhas que é preciso que sejam revistas em função das transformações ocorridas desde então. A alternativa de um Estado laico, unificando os territórios hoje em disputa, com direitos iguais para os dois povos vem sendo levantada por alguns analistas, mas será possível neste quadro com três gerações de conflitos?

O problema de fundo está na origem da criação do Estado de Israel. O movimento sionista, iniciado sem muita expressão no final do século XIX, tem como princípio o “direito” dos judeus a uma nação e um Estado próprio, localizado na região imprecisamente definida como Palestina. Com base nesta ideia, promoveu-se uma migração de judeus de todo o mundo, que foram se estabelecendo em terras, inicialmente parte do império Otomano e, após a primeira grande guerra, sob o controle de um “protetorado” britânico. A mobilização de recursos dos judeus da diáspora, sobretudo dos Estados Unidos e da Inglaterra, comprando terras dos nativos da Palestina permitiu a formação de assentamentos judaicos, os kibutz. Com o fim da segunda grande guerra e o impacto político do Holocausto promovido pelo nazismo, este movimento ganhou muita força e os assentamentos foram se multiplicando com a migração dos sobreviventes, sobretudo dos países do leste europeu e da antiga União Soviética.

A pressão pelo reconhecimento do direito à nação judaica foi crescendo, inclusive no território sob controle britânico, com o uso do terrorismo por organizações judaicas como a Hagana e o Likud. A decisão de criar o Estado judaico, intitulado Israel, foi tomada sem se considerar que a população judaica, seja de nativos da região ou de migrantes de outras partes, era muito inferior à população muçulmana. A propaganda pró Israel falsificou esta realidade com uma narrativa absurda onde foram apresentadas as manchas de terras compradas pelos judeus em contraste com espaços supostamente vazios.

Nestes espaços, ditos vazios, mais de dois milhões de não judeus viviam há séculos, mas foram deslocados manu militari, em ações com características terroristas, nos anos imediatamente posteriores à fundação de Israel. Empurrada para Gaza e para o Líbano, esta população foi viver em acampamentos de refugiados que estão na origem do movimento permanente de retomada das suas raízes territoriais. Este movimento de ocupação foi sendo estimulado pelo novo Estado, com maior ou menor ação agressiva, inclusive guerras que levaram à expansão territorial de Israel, tomando a Cisjordânia da Jordânia, as colinas de Golã da Síria e pedaços (menores) do Egito e do Líbano. Nestes territórios as colônias judaicas foram se espalhando e expulsando mais e mais palestinos.

A questão não é apenas a expansão das colônias e a expulsão dos não judeus. Apesar de momentos em que governos israelenses buscaram acordos para garantir espaços para os palestinos (Camp David, Oslo), a ideologia dominante entre os israelenses foi se perfilhando sempre mais próxima ao princípio do direito inalienável dos judeus a estas terras. Este princípio tem como corolário a limpeza étnica que foi sendo adotada por governos sempre mais à direita em Israel. Os não judeus remanescentes dentro do território sempre foram cidadãos de segunda classe, sem direitos e hostilizados pelos segmentos mais extremados do sionismo. Com este quadro de distribuição populacional, não existe mais, no mundo de hoje, espaço para um Estado Palestino, cujo embrião é a paródia de uma administração dividida entre a Cisjordânia e a faixa de Gaza, com muitos milhares de potenciais cidadãos ainda aglomerados em acampamentos nas fronteiras.

A estratégia de Israel é o controle total do espaço contínuo entre as fronteiras do Egito, da Síria, da Jordânia e do Líbano e o mar mediterrâneo. Para alcançar este fim vai ser preciso expulsar três a quatro milhões de pessoas. Para completar este quadro, não podemos esquecer que Israel tende cada vez mais a se tornar um Estado teocrático, regido pelas normas da religião. Como poderiam conviver com uma população não judia e em sua maioria amplíssima composta por muçulmanos?

Do outro lado, a população não judaica, com uma identidade política definida pela busca de um Estado Palestino, não tem como conviver com um Estado Judaico. A criação de um Estado palestino exigiria a retirada maciça dos colonos da Cisjordânia e de outras partes do território.

A solução alternativa à criação de um Estado Palestino é a criação de um Estado laico com direitos iguais para os defensores das diferentes confissões, não esquecendo que existem ainda minorias cristãs variadas. Mas com uns e outros cada vez mais dominados pelos diferentes fundamentalismos (Sharia para uns e Torá para outros) admitir um Estado laico e coexistir com diferentes crenças é cada vez mais uma possibilidade remota.

Tudo isso aponta para o prolongamento do impasse ad aeternumIsrael não tem condições políticas e mesmo militares, apesar do seu poderio, de realizar a limpeza étnica que lhe permitiria ter uma fronteira separando os judeus dos outros. Por outro lado, embora o Hamas não tenha a adesão clara da maioria dos palestinos, até porque não se submete a eleições desde que ganhou-a na faixa de Gaza em 2006, ele tem o suficiente de adesão, sobretudo da juventude. Esta não tem qualquer perspectiva de uma vida normal à sua frente e vive submetida a uma opressão e miséria que tem um alvo claro, o governo de Israel e um instrumento de combate também claro, o Hamas. Israel pode destruir a infraestrutura do Hamas e liquidar sua liderança, mas enquanto o sentimento de revolta estiver persistindo e enquanto houver Estados islâmicos dispostos a financiar, tudo isto pode ser reconstruído.

Resta a questão inicial deste debate: qual o limite ético de uma guerra com estas características? Massacres de civis, seja pelo Hamas ou Estado israelense, não deveriam ser admitidos, seja pelos judeus, seja pelos palestinos, mas o que transparece é a predominância das auto-justificativas. E uns como outros transmitem suas narrativas para a audiência mundial, levando à identificação do bem contra o mal por um e por outro lado. O apoio ao Hamas por ser uma força antissionista e antiamericana, esquecendo sua brutalidade contra civis desarmados e sua ideologia fundamentalista é, a meu ver, uma adesão perigosa à uma ética ou falta dela, justificando qualquer violência contra o “inimigo”, seja ele quem for, militar ou civil. Por outro lado, o apoio ao governo israelense no seu terrorismo de Estado atingindo milhões de pessoas com uma crueldade consciente, através de bombardeios, bloqueios de comida, água, energia e medicamentos, é o outro lado da moeda, agravado pelo fato de ser muito mais poderoso.

Neste complicado imbróglio, a atitude do governo Lula de defender (sintetizando a proposta) um corredor humanitário, é absolutamente correta e pode abrir um canal a ser explorado e ampliado, isolando os extremismos. Parabéns à diplomacia brasileira.

*Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE (1969-71), jornalista e fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).

Publicado no IHU Unissinos: 24 outubro 2023

Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/633527-o-confronto-entre-o-estado-de-israel-e-o-povo-palestino-sem-perspectiva-de-solucao-artigo-de-jean-marc-von-der-weid

10.18.2023

Anarriê, alavantú V – Guerra ou Terrorismo?, por Rui Daher

 “O brasileiro na ONU Osvaldo Aranha, perguntou sobre o potencial econômico ao representante estadunidense e ouviu: “Apenas deixe quem tem petróleo fora disso, Arábia Saudita, Emirados Árabes, que desses cuidamos nós. No resto, passem o rodo, que o tempo acaba arrumando isso”.

por Rui Daher* no  jornalggn@gmail.com - Sociedade e Insanidade Humana Anti-Civilização


Hamas versus Israel

Ainda que minhas vontades fossem contrariar a Deus, Ciência, Natureza ou Família, pouco me importaria. Dificilmente, nas últimas semanas, os leitores estiveram indignados a algum alvo ou mesmo a si próprios. Para mim, depois de a todos consultar, decido sozinho o que fazer. Por exemplo, este texto, todos a quem perguntei, sugeriram-me não publicar. Se o for, culpem somente a mim, e não a quem aqui me hospeda há 20 anos.

Refiro-me ao mais do mesmo belicismo entre o Estado de Israel e o embate com os palestinos, esquartejados territorialmente, desde que as decisões da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, três anos após o final da II Guerra Mundial, quando presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha (1894-1960), ministro de Getúlio Vargas, permitiram a criação do Estado de Israel.  E mais nada. Olhando para um mapa da região, dos mais simples, por exemplo, do “Brasil Escola”, não seria muito difícil imaginar o número de conflitos que viriam pela frente.

“Ah, mas naquela região eles são todos da mesma origem, quase irmãos, queijo de cabra, falafel, humus de grãos-de-bico, o quibe libanês, michuis e kebab (como churrasquinhos de carne admirados nos portões de estádios de futebol no Brasil – consumidos por árabes e judeus), charutinhos de arroz e carne moída enrolados em folhas de uvas ou repolhos, guefiltefish (bolinhos de peixe). Até se casam e transam numa boa, paixões grassam, no máximo, israelitas trocam fluídos sexuais com lindas árabes e vice-versa”.

Diante disso, o brasileiro perguntou sobre o potencial econômico ao representante estadunidense na ONU e ouviu: “Apenas deixe quem tem petróleo fora disso, Arábia Saudita, Emirados Árabes, que desses cuidamos nós. No resto, passem o rodo, que o tempo acaba arrumando isso”.

E assim o retalho de 1948, criou mais de 30 conflitos entre o rebotalho árabe e Israel, resultando em grande número de organizações paralelas, não governamentais, consideradas hoje pelo Ocidente, seja onde for a região conflituosa, como grupos terroristas, como se hoje eles, inquietos, mostrassem intenção de explodir a sede do Clube Hebraica ou a Havan do palhaço em verde e amarelo.

Mas, por quê, ó colunista frequentador do bar e restaurante cultural palestino Al-Janiah? Como disse no início do texto, aos 78 anos, permito-me fazer o que me vem na cabeça, o que inclui admirar judeus, israelitas, e o que eles deixaram (Freud, Marx, Einstein, entre outros) de bem para a sabedoria humana, bem como tê-los entre meus melhores amigos.

No mais, quero saber o porquê, quase três quartos de século passados, até hoje, por votação de seu restrito Conselho de Segurança (China, EUA, Rússia, Reino Unido, França), com direito a voto e veto, a ONU permita e até obrigue o mundo árabe tenha que se defender através de organizações terroristas?

Há, sim, na organização planetária, uma série B – aquela que no futebol só joga às sextas ou sábados. São 10 membros, com mandatos de dois anos. A eles é permitido falar o que pensam mesmo sabendo que suas vozes não serão ouvidas. Aceitam. Deve dar alguma sensação orgástica, isto, num universo de 193 Estados-membros.

A verdade é que desde 1948, vários conflitos, uns mais leves outros catastróficos, todos diante do plácido olhar da ONU e da influência descarada dos EUA pró-Israel patrocinam as cenas repetidas de massacres, agora mais tecnologicamente avançadas e destruídores.

Vocês, leitores enraivecidos comigo, têm algum pet em casa? Adoram-no, não? Pois é, já viram um deles destroçado, farejando entre a destruição, em busca de comida ou cadáveres.  Vão me perguntar o porquê? Não ousem. Responderia com ofensas maternas e os mandaria perguntar aos balanços contábeis das indústrias bélicas.

Continuando à vera, numa tentativa de estabilizar o conflito, mas dentro do status quo atual, em 1994, foi criada a Autoridade Nacional Palestiniana, um órgão provisório de auto-governo, para governar a Faixa de Gaza e partes da Cisjordânia. Deu até em Prêmio Nobel da Paz para Yasser Arafat, (OLP – Organização pela Libertação da Palestina), e Yitzhak Rabin e Shimon Peres, por Israel.

Em 2005, decisão unilateral, Israel até deixou seus assentamentos da Faixa de Gaza (dava muito trabalho e gastos pricipalmente), ampliando a área da OLP, mas mantendo o controle das fronteiras e do espaço aéreo. Diminuíram por algum tempo os conflitos com Israel, mas vieram os confrontos intestinos, entre o Hamas, vencedor das eleições legislativas no território de Gaza, que indicou um presidente, e o Fatah, representante político da Autoridade Palestina, que não gostou e preferiu outro presidente.

E assim, em algum lugar que fosse possível sacrificar populações civis e inocentes, com terror e morte, o pau foi quebrando, até que o Hamas, irritado com o som muito alto vindo de uma rave em Israel, provocou um massacre, que todos sabiam, voltaria em intensidade ainda maior para a Faixa de Gaza. Os resultados estão aí.

– Ô colunista, o momento é muito sério para você vir com suas galhofas ridículas. Não vê as tristes imagens mostradas na TV?

– Vejo, me comovem, mas logo ouço os comentaristas e os “professores convidados” repetindo por dez dias a mesma merda e aí não resisto a inconsciente e maldita gargalhada.  


  *Rui Daher – administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

 Publicado no GGN: 18 de outubro de 2023

 Fonte: https://jornalggn.com.br/cronica/anarrie-alavantu-v-guerra-ou-terrorismo-por-rui-daher/

10.04.2023

A Mulher na Agricultura Familiar e sua Luta por Emancipação

“Ser responsável pelo leite, mãe e dona de casa é uma grande responsabilidade. É uma atividade que demanda dedicação, esforço e muita paciência. Você precisa ser multi-tarefa, pois está sempre elaborando atividades em várias segmentos ao mesmo tempo. É uma jornada dupla, e às vezes até tripla ”, diz Cleonice Back, agricultora familiar no Rio Grande do Sul 

por Luiz Muller em seu blog – Sociedade e Luta por Libertação da Mulher no Campo


 Foto: Cleonice Back com a filha, cuidando da beneficiamento do leite

As mulheres representam metade da mão de obra na agricultura e desempenham um papel enorme na manutenção da economia das comunidades rurais. Elas são responsáveis pelo cultivo de alimentos, beneficiamento do leite, manutenção de animais, afazeres de casa e muito mais.

Mulheres e seus cuidados na família e comunidade

Além de sua importância no cultivo de alimentos, as mulheres agricultoras familiares também desempenham um papel importante como cuidadoras de suas famílias e a algumas vezes atuantes nas comunidades. Elas garantem que suas famílias tenham acesso a alimentos saudáveis e nutritivos e cuidam da saúde e bem-estar de todos.

O trabalho feminino é de dupla jornada

Nós sabemos muito bem que o beneficiamento do leite é uma fonte vital de alimento para muitas comunidades rurais. As mulheres agricultoras familiares têm um papel importante no beneficiamento do leite de alta qualidade e na garantia da segurança alimentar em suas comunidades.
Cabe salientar também que as mulheres enfrentam uma dupla jornada de trabalho.

“Ser responsável pelo leite, mãe e dona de casa é uma grande responsabilidade. É uma atividade que demanda dedicação, esforço e muita paciência. Você precisa ser multi-tarefa, pois está sempre elaborando atividades em várias segmentos ao mesmo tempo. É uma jornada dupla, e às vezes até tripla ”, diz Cleonice Back, agricultora familiar e suplente do senador Paulo Paim, a quem o Próprio senador chama de “Senadora da Agricultura Familiar”, tal as tarefas que Cleonice tem assumido na Defesa da Agricultura Familiar junto ao senado, representando o senador.

A dupla jornada limita as atividades da mulher

A dupla jornada é uma realidade para muitas mulheres responsáveis pelo leite que precisam equilibrar as tarefas domésticas com as obrigações relacionadas ao cultivo de alimentos. Isso exige muito esforço e dedicação, e muitas vezes acabam sendo um obstáculo à plena realização do potencial feminino na agricultura.

No campo a auto-valorização feminina é uma luta por direitos e reconhecimento

“As mulheres agricultoras familiares enfrentam muitos obstáculos em sua luta pelo reconhecimento de suas atividades e pela garantia de seus direitos. Muitas vezes, elas não são levadas a sério ou são subestimadas em função de seu gênero, o que torna ainda mais difícil para elas conseguir suporte financeiro e técnico para melhorar suas atividades e enfrentar os desafios na agricultura.”

Publicado no blog de Luiz Muller: 02.OUT.2023

Fonte: https://luizmuller.com/2023/10/02/de-mae-para-filha-protagonismo-das-mulheres-na-agricultura-familiar-e-na-economia-popular/

 

10.02.2023

O modo de vida atual é ‘adoecedor’ adverte a psicóloga que estuda o suicídio

Construir uma vida com sentido e propósito é benéfico para a sensação de bem-estar. Praticar exercícios físicos, ter momentos de lazer, encontrar amigos e familiares, aceitar momentos de tristeza como parte da vida, buscar terapia, podem contribuir para a melhoria da saúde mental

Suicídio não é um vírus ou uma doença contagiosa que possa ser prevenida de modo simples. Pensar sobre a vida e a morte é “demasiadamente humano” e faz parte do processo vital. Prevenir o suicídio, desse modo, passa pela construção de uma vida que se deseja viver, com sentido, rede de apoio, propósitos, acesso aos direitos fundamentais, com liberdade, dignidade, respeito e gratidão

Taxas de suicídio entre homens são 'absurdamente mais altas' do que entre as mulheres, diz a psicóloga Jéssica Prudente

"O modo de vida contemporâneo é adoecedor, exigindo padrões de desempenho, dedicação, cuidados, resistências e preparações que não cabem em um dia de 24 horas". É a advertência da psicóloga Jéssica Prudente. Ela é doutora em Psicologia Social e Institucional pela Ufrgs e professora da PUC/RS

por Fabiana Reinholz no Brasil de Fato – Sociedade e Pela Vida das Crianças, Jovens, Adultos e Idosos Com Direito a Justiça, Bondade e Cidadania

 "Se uma pessoa próxima expressa vontade de se suicidar, leve a frase a sério (a maioria das pessoas fala sobre a vontade antes do ato) e encaminhe a pessoa para ajuda de um psicólogo ou psiquiatra" - Foto: Agência Brasil

O Brasil de Fato RS conversou com Jéssica no encerramento do “Setembro Amarelo”. É o mês dedicado à campanha de prevenção ao suicídio e à discussão de temas de saúde mental.

No Brasil, acontecem cerca de 12 mil suicídios a cada ano. E o Rio Grande do Sul é o estado que ostenta a maior taxa de suicídios. São 12,4 mortes a cada 100 mil habitantes, o que representa o dobro da média nacional.

A psicóloga nota que países como o nosso estão na contramão das taxas globais de suicídios apresentando elevação dos índices. As explicações? São muitas, segundo Jéssica.  

É o que ela detalha na entrevista onde conta também sobre os sinais de alerta de suicídio, as taxas “absurdamente mais altas” entre os homens, o papel das redes sociais, a relação entre agrotóxicos e suicídio, o resultado nocivo da exaltação à competição quando o “outro” se converte no inimigo a ser vencido.

Brasil de Fato RS - A Organização Mundial da Saúde (OMS) informa que, a cada ano, mais de 700 mil pessoas se suicidam. Significa uma em cada 100 mortes registradas. Estamos nos matando mais? Em caso positivo, por quais razões? 

Jéssica Prudente - As taxas de suicídio não se distribuem igualmente no mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) entre os anos 2000 e 2019, as taxas mundiais de suicídio diminuíram 36%, enquanto nas Américas aumentaram 17%. Então, a resposta para a primeira pergunta é relativa à região do mundo que está sendo analisada. Uma pesquisa publicada esse ano (2023) no “The Lancet Regional Health – Americas” indica a importância dos determinantes sociais para entender os índices de riscos e modos de prevenção do suicídio: gênero, educação, uso de álcool e outras drogas, emprego, entre outros fatores. 

Quatro em cada cinco suicídios ocorrem em países de baixa e média renda

A OMS também indica que 79% dos suicídios ocorrem em países de baixa e média renda, o que ajuda a responder a segunda pergunta. As razões para o fenômeno do suicídio são multifatoriais, destacando-se desigualdade social, falta de acesso a políticas públicas, presença de transtornos psiquiátricos, vulnerabilidades e uso de álcool e outras drogas.

É importante salientar que as taxas de suicídio são mais altas em grupos populacionais específicos: indígenas, população LGBTQIAPN+, pessoas em situação de privação de liberdade, população negra e que vem ocorrendo um aumento expressivo entre os jovens de diferentes grupos populacionais. Então, pode-se dizer que o aumento das taxas de suicídio tem ligação direta com a desigualdade social, preconceitos, ruptura de sistemas sociais de solidariedade, aumento da competitividade, com a angústia relativa ao modo de vida contemporâneo e falta de expectativas do futuro.









 "Suicídio não é um vírus ou uma doença contagiosa que possa ser prevenida de modo simples" / Foto: Arquivo Pessoal

Se uma pessoa próxima expressa vontade de se suicidar, leve a frase a sério

BdFRS - Quais as principais formas de se prevenir o suicídio?

Jéssica - Suicídio não é um vírus ou uma doença contagiosa que possa ser prevenida de modo simples. Pensar sobre a vida e a morte é “demasiadamente humano” e faz parte do processo vital. Prevenir o suicídio, desse modo, passa pela construção de uma vida que se deseja viver, com sentido, rede de apoio, propósitos, acesso aos direitos fundamentais, com liberdade e dignidade. Talvez seja importante pensar sobre onde está a vida na prevenção, pois quando se consegue evitar um suicídio, como essa vida irá seguir depois?  

Especificamente, a prevenção do suicídio em termos comportamentais, quando há uma ideação suicida ou planejamento em curso, pode incluir as seguintes ações: mostrar-se disposto a escutar e não relativizar ou julgar o sofrimento do outro; estabelecer uma postura de acolhimento e abertura; incentivar a pessoa a buscar ajuda especializada, de um psicólogo ou psiquiatra; mostrar-se presente e disponível; em casos mais severos, de surto ou tentativa, a pessoa deve ser conduzida a um pronto atendimento. 

BdFRS - Há outro dado preocupante: acredita-se que, para cada morte por suicídio registrada, existem 20 tentativas não registradas...

Jéssica - Existe uma subnotificação nesses registros, inclusive entre as mortes por suicídio registradas. Muitas mortes por acidentes, comportamentos de risco ou outros eventos trágicos podem ter sido suicídio, sem que isso tenha chegado ao conhecimento dos serviços de saúde. E sim, existem muitas tentativas de suicídio que não chegam a ser efetivadas, nem registradas. Nesse ponto, é importante destacar o trabalho dos profissionais de saúde que precisam notificar situações de violência para a vigilância sanitária que produz os dados epidemiológicos, e muitas vezes, diante do excesso de demanda, os profissionais priorizam o atendimento dos casos em detrimento dos registros, que requer tempo e detalhamento de informações.

No Sistema Único de Saúde, o SUS, temos a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) que inclui serviços de atenção à saúde mental para a população, destacando-se os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), que contam com equipes multiprofissionais para atender as demandas de saúde mental, enquanto dispositivos da Reforma Psiquiátrica. Os municípios com maior número de habitantes contam com CAPS especializados em Infância e Adolescência e em Álcool e Drogas. Esses serviços são fundamentais para prevenção e cuidado em saúde mental da população, ainda que enfrentem as dificuldades e precarizações do desinvestimento nas políticas públicas.  

A competitividade, enquanto laço social fundamental é destrutiva

BdFRS - Como o vício nas redes sociais, a solidão, a individualização extrema, a falta de propósitos potencializam esse desejo de morte?

Jéssica - Somos seres gregários e sobrevivemos, historicamente, em grupos comunitários. A vida humana é coletiva. Podemos pensar que a exposição a grandes grupos de pessoas, centenas e milhares de opiniões, é algo bastante recente e inédito na história, e certamente ainda não temos a real dimensão dos efeitos psíquicos e sociais das tecnologias nos modos de vida, nem sobre a confrontação constante entre o mundo virtual idealizado e a vida fora das redes sociais. Se a solidariedade enquanto laço social primordial é protetiva, a competitividade, enquanto laço social fundamental, é destrutiva, pois o “outro” acaba sendo visto como um inimigo a ser vencido, o que se traduz na ênfase da individualização extrema, naturalizando as relações de violência.

 As redes sociais reduzidas a padrões estéticos, likes e lucro podem se tornar um ambiente hostil

As tecnologias, em si mesmo, não necessariamente produzem apenas individualização e solidão, pois há muitos modos de socialização, engajamentos, participação política, diversão, jogos, informações e integrações facilitadas pelas tecnologias. Hoje é possível que pessoas encontrem seus pares e se sintam acolhidos e pertencentes a uma infinidade de grupos, com diversas trocas e aprendizados que podem ser saudáveis, potentes e inclusivos. Entretanto, as redes sociais quando reduzidas aos critérios de padrões estéticos, métricas de likes e lucro podem sim tornar-se um ambiente hostil, nocivo, violento e excludente.

Talvez o que a internet e as redes sociais facilitem é uma falsa sensação de participação e engajamento, quando o que está sendo potencializado é a individualização. A busca de sentido para a vida é algo que acompanha a humanidade, e a falta de um propósito não é relativa apenas aos usos e desusos tecnológicos, mas possivelmente aos valores que estão sendo cultuados e oferecidos como horizonte. Não podemos esquecer que vivemos uma pandemia em que o medo, a angústia, o adoecimento, o isolamento e a morte passaram a ser presença constante na vida das pessoas, nos noticiários e na vida cotidiana, o que certamente ainda tem efeitos na saúde mental e um impacto significativo na relação com a tecnologia.

BdFRS - Na frase famosa do escritor francês Albert Camus, o suicídio é “o único problema filosófico verdadeiramente sério”. Ele escreveu que “julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia”. As pessoas se matam ao sentirem desesperança ante o absurdo da vida ou atrás dessa percepção existe uma patologia que, ela sim, determina o desfecho? 

Jéssica - Acho que essas duas dimensões não estão separadas. Albert Camus chama de “absurda” a nossa condição humana de fazer tudo o que fazemos tendo consciência da própria morte, e é sobre essa condição que construímos séculos de civilização, cultura, arte, linguagem. No campo da saúde mental, a vida tem uma referência marcadamente normalizada, pois os diagnósticos são produzidos e os tratamentos são prescritos a partir da comparação com um ideal de normalidade. Nos manuais de prevenção ao suicídio vamos encontrar as estatísticas de que, na maioria dos casos de suicídio, existe uma condição de transtorno ou patologia psiquiátrica.

Não é saudável adaptar-se a uma sociedade profundamente doente, Jiddu Krishnamurti

Uma questão importante a ser colocada, antes da pergunta sobre a psico-patologia, é sobre o que se entende por saúde mental atualmente e sobre o que se considera como normalidade. Um filósofo indiano chamado Jiddu Krishnamurti já dizia que “não é saudável adaptar-se a uma sociedade profundamente doente”. O modo de vida contemporâneo é adoecedor, exigindo padrões de desempenho, dedicação, cuidados, resistências e preparações que não cabem em um dia de 24 horas. As pessoas estão sempre cansadas, exaustas e sem energia, e em estados mais agudos isso ganha contornos de um transtorno psiquiátrico.

A taxa de suicídios entre pessoas com transtornos psiquiátricos severos e persistentes não chega a 10% do total de suicídios. Então, podemos entender as “patologias” não apenas em termos individualizantes, reduzidas as questões biológicas e genéticas, mas como produzidas socialmente, pois os índices da OMS apresentados no início da entrevista nos mostram o quanto as questões dos determinantes sociais produzem sofrimento e são adoecedoras, como, por exemplo, a depressão.

As taxas de suicídio entre homens são muito mais altas do que entre mulheres

BdFRS - O Rio Grande do Sul é o estado que ostenta a maior taxa de suicídios do Brasil. São 12,4 mortes a cada 100 mil habitantes, o que representa o dobro da média nacional. Qual a explicação?

Jéssica - O suicídio é um fenômeno multi-fatorial (vários fatores), complexo e se distribui de modos diversos entre a população. Países como o Brasil estão na contramão das taxas de suicídio globais, apresentando aumento nesses índices e o Rio Grande do Sul figura como o estado brasileiro com maior número de casos. As explicações são variadas e precisamos buscar os dados de pesquisas da Saúde Coletiva, da Epidemiologia para pensar em algumas linhas possíveis de explicação.

Em termos epidemio-lógicos, as taxas de suicídio entre homens são muito mais altas do que entre mulheres. Mulheres apresentam mais tentativas, mas homens concretizam o suicídio em taxas absurdamente mais altas. Todos os índices de comportamentos violentos, trágicos e negligentes são maiores entre homens: acidentes, homicídios, conflitos, suicídios, baixa procura por prevenção em saúde e por atendimento em saúde mental.

Em que pese as explicações biológicas, percebemos que temos no Rio Grande Sul uma cultura conservadora, machista, tradicional, colonial que produz as masculinidades em um espaço bastante reduzido em termos de nuances afetivas e emocionais, dificultando a busca por auxílio. Ainda existem estigmas sociais que associam a busca de ajuda e o reconhecimento do sofrimento a uma noção de fragilidade, o que é evidenciado em relação a masculinidade.

O uso de agrotóxicos aparece nas pesquisas como vinculado ao aumento de suicídios

Outro fator importante do RS diz respeito ao trabalho rural e ao uso de agrotóxicos que aparecem em pesquisas como fator de vinculação com aumento de suicídio, o que constitui uma base importante de trabalho em nosso estado. 98% da produção de fumo do Brasil, por exemplo, é fornecida pela região sul, sendo a maior concentração no estado do RS e existem taxas bastante elevadas de suicídio em municípios da região do Vale do Rio Pardo.

A questão do isolamento de algumas regiões e a distância de dispositivos de saúde também pode dificultar a busca por auxílio. Nosso estado também tem grande número de indígenas que vivem situações de conflito e de preconceito e apresentam números preocupantes em relação aos índices de suicídio, principalmente entre jovens. Ainda, temos a questão do clima frio e chuvoso, que aparece em algumas pesquisas como associado ao aumento de números de suicídios. 

Importante destacar que traçar relações de causa e consequência lineares nos casos de suicídio é uma simplificação de um fenômeno complexo, multifatorial e produzido socialmente. As questões de gênero e do trabalho rural indicadas como possíveis fatores associados aos índices altos de suicídio no RS são prevalências apontadas em pesquisas, mas não encerram as possíveis explicações.  

Outro comportamento mais comum entre jovens é a automutilação

BdFRS - Quais são os sinais que o corpo e a mente dão quando algo não vai bem em relação à saúde mental?

Jéssica - Inicialmente, importante destacar que o nosso modo de vida atual tem sido desgastante, exigente em termos de produtividade, de acesso a informação e de enfrentamento de situações individuais e sociais que são estressores, com poucos espaços para o descanso e o lazer.

Quanto aos sinais de agravamento da saúde mental, existem vários aspectos que podem ser experimentados: irritabilidade, ansiedade, angústia, falta de motivação, diminuição na energia e na sensação de prazer e alegria, desânimo, distúrbios do sono, dificuldades de concentração, entre outros. A questão importante a ser avaliada é relativa à constância e frequência dessas sensações, pois ter dias difíceis, momentos mais complicados ou exigentes em que esses sinais se apresentam faz parte da vida. Entretanto, quando isso se instaura de modo habitual e constante, pode ser importante buscar ajuda. 

  Em 2015, o Brasil iniciou a campanha ‘Setembro Amarelo’ / Agência Brasil

BdFRS - Que comportamentos podem ser vistos como preocupantes? 

Jéssica - Sinais de risco são pensamentos obsessivos, pessimistas ou sem esperança, seguidos de mensagens ou falas autodestrutivas; alterações bruscas de humor (raiva, vergonha, culpa, ansiedade) ou comportamentos irresponsáveis, como de quem não tem nada a perder; felicidade ou melhora súbita frente a um quadro de depressão; reconciliações inesperadas, desapegos de seus bens, entre outros. Quaisquer desses comportamentos devem ser avaliados inseridos em um contexto mais amplo da vida da pessoa, e não isoladamente.

Outro comportamento mais comum entre jovens é a automutilação, no qual a dor física pode contribuir para a redução da dor psicológica, mas nem sempre está acompanhado de ideação suicida. 

BdFRS - Qual a importância e quais as principais dicas para cuidar da saúde mental?

Jéssica - Construir uma vida com sentido e propósito é benéfico para a sensação de bem-estar. Praticar exercícios físicos, ter momentos de lazer, encontrar amigos e familiares, aceitar momentos de tristeza como parte da vida, buscar terapia, podem contribuir para a produção da saúde mental.

Se você enfrenta um momento difícil: ligue para o 188, voluntários do Centro de Valorização à Viva (CVV).

Estão disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana. Se uma pessoa próxima expressa vontade de se suicidar, leve a frase a sério (a maioria das pessoas fala sobre a vontade antes do ato) e encaminhe a pessoa para ajuda de um psicólogo ou psiquiatra.

Data de Publicação BdF RGS: 30 de Setembro de 2023

 Edição: Ayrton Centeno

Fonte: BdF RGS ­_ https://www.brasildefato.com.br/2023/09/30/o-modo-de-vida-contemporaneo-e-adoecedor-adverte-psicologa-que-estuda-o-suicidio