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5.30.2014

A ditadura eliminou a futura vanguarda intelectual, política e artística. Não se pode deixar que isso repita

Foto: MARCOS DE PAULA/ESTADÃO CONTEÚDO
Cérebros ceifadosO desaparecimento de Amarildo seguiu o padrão do de Rubens Paiva, deputado federal em 1964

Por Lincoln Secco, professor livre-docente de História Contemporânea na USP - sociedade
Em 1983, eu estava no último ano do Ensino Fundamental quando um livro didático de Educação Moral e Cívica me despertou a desconfiança. A ditadura havia criado aquela disciplina em 1969, mas, na minha época, ninguém mais levava aquilo a sério.
No livro em questão, o mundo se dividia em dois: o livre e o totalitário (socialista). A imagem que representava os países socialistas era a de pessoas tristes cercadas por uma corda diante de um desfile militar. De repente, eu disse sorrindo: “Então o Brasil faz parte do mundo socialista?” Foi minha primeira ironia escolar...
Os livros de Educação Moral e Cívica eram obrigatórios e seus autores eram militares, religiosos, áulicos civis do regime e oportunistas em geral, mas no início dos anos 80 o ensino de História já havia retornado às salas, ainda que em tempo reduzido. Por isso muitos professores usavam o tempo das duas disciplinas para lecionar apenas História.
E aqueles terríveis livros didáticos ficavam na gaveta. Lembro-me que no Ensino Médio os meus professores simplesmente adotaram clássicos da historiografia de esquerda, como A História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman, e História Econômica do Brasil, de Caio Prado Júnior!
Entretanto, foi tão forte o fascismo cotidiano instalado em 1964 que uma revisão se iniciou.
Alguns historiadores passaram logo a justificar a ditadura. De maneira sub-reptícia, é claro! Argumentaram que havia dois golpes em andamento e que tanto a esquerda quanto a direita viviam às portas dos quartéis em busca da ala “nacionalista” das Forças Armadas; que a população, cansada do “populismo”, apoiava os golpistas; e que a opção pela luta armada teria promovido a verdadeira ditadura, que só começou depois do AI-5, em 1968. Antes teríamos um “regime autoritário”...
Por mais que se atribuam intenções improváveis ao presidente João Goulart, os dois únicos partidos que o sustentavam ideologicamente estavam muito longe do golpismo. O PCB havia se definido pelo caminho pacífico da aliança com a “burguesia nacional” em 1958 e o PTB jamais formulou um projeto de “república sindicalista”.
A ideia de que os golpistas representavam os anseios da população foi desmontada pelo historiador Luiz Antonio Dias em entrevista à revista CartaCapital. Com base em pesquisas feitas pelo Ibope às vésperas do golpe, mas não divulgadas à época, ele mostrou que Jango tinha amplo apoio popular.
E há mais. Está no prelo o emocionante relato do guerrilheiro da ALN Takao Amano, cujo título dá conta dos sonhos de uma geração (Assalto ao Céu, Coleção Memória Militante, ECA-USP). Ele revela que, além da luta dos povos do Terceiro Mundo na época, a impossibilidade de se manifestar publicamente, as torturas e os assassinatos que já ocorriam desde 1964 foram determinantes para a adoção de grupos armados de proteção aos militantes de esquerda.
Nos anos 60, a rebeldia estudantil se fez acompanhar de uma verdadeira revolução cultural. Os maiores artistas produziam suas obras. Os jovens desafiavam as regras do “bom comportamento”. Os melhores economistas, médicos, engenheiros e cientistas sociais saíam de seus locais de trabalho habituais para planejar a reforma agrária, o desenvolvimento industrial, a alfabetização em massa e a melhora da saúde da população.
Aquela efervescência transbordava os limites da velha política do Congresso ou do pensamento misógino e racista da alta oficialidade do Exército. Nas ruas pressionava-se por uma democracia plena e por reformas dentro da ordem. Afinal, quem devolveu plenos poderes legais ao presidente Goulart num plebiscito foi o povo! Embora o historiador não faça esse tipo de pergunta, ela é inescapável: “Que Brasil nós teríamos sem o golpe de 1964?”
A ditadura promoveu a eliminação física de toda a futura vanguarda intelectual, política, sindical e artística daquele novo país que ela interrompeu. Os jovens que não foram trucidados, ela humilhou, prendeu, ameaçou e expulsou. Ela ceifou as melhores cabeças das universidades brasileiras. Basta lembrar que cerca de 10% dos mortos e desaparecidos oficiais no País eram estudantes ou professores da USP. Outras universidades foram invadidas, depredadas. E sabemos como a repressão atingiu na verdade milhares de pessoas.
O “melhor” símbolo da ditadura foi a Casa da Morte de Petrópolis. Ela foi um centro clandestino onde as pessoas eram torturadas, estupradas, esquartejadas e, depois, lançadas à fornalha de uma usina de açúcar. Mas, como ela, muitos quartéis, residências e delegacias foram usados como pequenos campos de extermínio de adversários do regime ou simples “suspeitos”.
A exigência de que uma ditadura não se repita é a primeira de todas para a educação. Trata-se aqui de uma paráfrase de Theodor Adorno, um dos expoentes da Escola de Frankfurt, o qual escreveu um famoso ensaio com o título Educar Depois de Auschwitz.
Naquele ensaio ele mostrava que justificar o nazismo seria algo tão monstruoso que nem deveria ser preciso expor a meta precípua de toda a educação: a de que Auschwitz não se repita! No entanto, a ditadura no Brasil ainda encontra apoio em círculos políticos, jurídicos e da imprensa, e os criminosos daquela época não foram punidos, ao contrário do que aconteceu na Argentina, Chile e Uruguai.
Ao contrário, governos constituídos falam da ameaça à ordem que protestos sociais representariam e invocam uma lei contra o terrorismo, demonstrando o quanto o vocabulário da ditadura continua em vigor ao lado de práticas que ela consolidou.
O sequestro, a tortura e o desaparecimento do auxiliar de pedreiro Amarildo Dias de Souza, em 2013, no Rio de Janeiro, seguiram a mesma sequência do caso do deputado Rubens Paiva durante a ditadura. E diante de simples “rolezinhos” de jovens da periferia paulistana ou do “vandalismo” de protestos contra os gastos suntuários da Copa do Mundo, vemos o espancamento e a prisão ilegal de jovens desarmados. Há quem ainda veja nas manifestações “uma regressão à barbárie”.
No entanto, a barbárie já estava posta com o golpe militar de 1964. Estudá-la e calar todos os que a defendem é o primeiro passo de uma educação para a democracia.
Publicado na edição 85, de abril de 2014
http://www.cartanaescola.com.br/single/show/321

5.28.2014

Entidades querem que comida seja regulada como cigarro

No verso de um pacote de salgadinhos, uma imagem estampa os malefícios à saúde causados pela obesidade, à semelhança do que já existe nos maços de cigarro. Esse tipo de embalagem ainda não existe no mercado, mas faz parte de um conjunto de reivindicações de entidades de promoção da saúde junto a fabricantes de alimentos e bebidas.
 
Esse tipo de embalagem ainda não existe no mercadoEsse tipo de embalagem ainda não existe no mercado, somente ilustração
 

Duas delas, a Consumers International (que organiza campanhas internacionais em defesa do consumidor) e a Federação Mundial de Obesidade, lançaram nesta semana uma convocatória global para que os governos regulem esse setor de forma semelhante ao que já fazem com a indústria do cigarro.

Na avaliação de representantes dessas organizações, a obesidade oferece hoje mais riscos à saúde humana do que o tabaco.

Dados mostram que os quilos extras estão entre as três principais causas de mortes no mundo, ao lado do tabagismo e do álcool.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, a OMS, 35% dos adultos acima de 20 anos se encontram acima do peso, enquanto que 11% são considerados obesos. Os dados são de 2008.

No Brasil, estatísticas recentes do Ministério da Saúde apontam que pouco mais da metade da população (50,8%) tem sobrepeso, sendo 17% obesos.

Segundo as entidades, governos ao redor do mundo deveriam criar um arcabouço regulatório global para a indústria de alimentos e bebidas, nos mesmos moldes do que já existe para a venda de cigarros.

Tanto a Consumers Internacional quanto a Federação Mundial de Obesidade afirmam que as mortes globais devido à obesidade e ao sobrepeso aumentaram de 2,6 milhões em 2005 para 3,4 milhões em 2010.

Novas regras

As novas regras incluiriam, de acordo com as entidades, uma redução dos níveis de sal, de gordura saturada e de açúcar nos alimentos, além de uma melhoria na comida servida nas escolas e hospitais.

As organizações também reivindicam um controle mais rígido da propaganda de alimentos e uma maior promoção por parte dos governos de hábitos saudáveis de alimentação.

A Consumers International e a Federação Mundial de Obesidade acrescentaram que as gorduras trans, um dos maiores vilões da obesidade, devem ser abolidas de todos os alimentos e bebidas nos próximos cinco anos.

Para que essas ideias saiam do papel, as entidades sugerem que os governos revejam os preços dos alimentos, introduzam impostos, alterem os padrões de regulação existentes e incentivem pesquisas na área médica.

Segundo Luke Upchurch, da Consumers International, a indústria de alimentos deveria ser tratada de forma semelhante à do tabaco.

- Queremos evitar uma situação como a dos anos 60, quando as fabricantes de cigarro diziam que não havia nada de errado com seus produtos, que eles eram bons para a saúde e 30 a 40 anos depois milhões morreram – disse Upchuch à agência britânica de notícias BBC.

- Se não tomarmos uma atitude agora, teremos a mesma intransigência e a morosidade na indústria de alimentos – acrescentou.

Ele diz que as nova regras deveriam ser discutidas no âmbito “global”, o que significaria que os governos estariam ‘legalmente obrigados’ a implementá-las, em vez de simplesmente ignorar a situação.

Noruega e Brasil

Upchurch afirmou estar confiante de que Brasil e Noruega podem liderar a iniciativa em prol de uma maior regulação da indústria de alimentos. Ambos os países restringiram a publicidade direcionada ao público infantil.

- A recente decisão do Brasil é um bom exemplo nesse sentido – afirmou Upchurch.

Em abril deste ano, o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) emitiu uma resolução em que considera abusiva toda a propaganda dirigida à criança que tem “a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço” e que utilize aspectos como desenhos animados, bonecos, linguagem infantil, trilhas sonoras com temas infantis, oferta de prêmios, brindes ou artigos colecionáveis que tenham apelo às crianças.

Ficam de fora, segundo a resolução, campanhas de utilidade pública referentes “a informações sobre boa alimentação, segurança, educação, saúde, entre outros itens relativos ao melhor desenvolvimento da criança no meio social”.

No entanto, associações de anunciantes, emissoras, revistas e de empresas de licenciamento e fabricantes de produtos infantis criticam a medida e dizem não reconhecer a legitimidade constitucional do Conanda para legislar sobre publicidade e para impor a resolução tanto às famílias quanto ao mercado publicitário.

Ação imediata

Para Ian Campbell, clínico e fundador do Fórum de Obesidade Nacional do Reino Unido, a iniciativa “é muito interessante e as recomendações [das entidades] são muito sensatas e práticas”.

Campbell diz que, somente quando os governos “aceitarem suas responsabilidades” e colocarem os consumidores antes dos fabricantes, “veremos uma mudança real”.

- Uma diferença crucial entre a regulação de tabaco e de alimentos é que nós precisamos de comida para sobreviver, diferentemente do cigarro – acrescentou ele.

- A obesidade está matando milhares de pessoas todos os anos e só uma atitude dos governos para enfrentar de frente as causas fundamentais da obesidade levará a uma redução significativa desse problema.

Para Tim Lobstein, da Federação Mundial da Obesidade, “se a obesidade fosse uma doença infecciosa, certamente bilhões de dólares seriam aplicados para tentar deixá-la sob controle”.

- Mas porque a obesidade é largamente causada pelo consumo excessivo de alimentos gordurosos e açucarados, nós temos visto legisladores relutantes em lutar contra interesses corporativos que promovem esse tipo de comida.

Ele defendeu que os governos tomem uma “decisão coletiva”.

Terry Jones, diretor de comunicação da Federação de Alimentos e Bebidas do Reino Unido, afirmou que os fabricantes britânicos já estão apoiando melhorias na saúde pública por meio de medidas delineadas nas recomendações das organizações internacionais.

- A indústria britânica vem atuando em conjunto com governo, entidades de saúde, ONG’s e outros acionistas para promover a saúde pública no Reino Unido.

Segundo Jones, os fabricantes vêm reduzindo o sal, a gordura saturada e as calorias de produtos, fornecendo “o valor nutricional real e promovendo hábitos de alimentação mais saudáveis e um incentivo à atividade física”.

Um mundo de gordinhos

A obesidade cresceu a ponto de se tornar uma epidemia global. Entre as principais razões para o excesso de peso, estão o sedentarismo e a manutenção de hábitos alimentares pouco saudáveis, como a ingestão de lanches rápidos (fast-food).

Sobrepeso (em % da população)

Mundo: 35%

Brasil: 50,8%

Obesos (em % da população)

Mundo: 11%

Brasil: 17%
Fonte: Vigitel/OMS - http://correiodobrasil.com.br/ultimas/entidades-querem-que-comida-seja-regulada-como-cigarro/705306/

5.20.2014

Mesmo com melhoras, os médicos antigos rejeitam novos médicos

Marcus Ianoni - sociedade
Em julho de 2013, o governo federal editou a Medida Provisória nº 621, depois convertida na Lei nº 12.871/2013, que instituiu o Programa Mais Médicos. Ele se insere em um pacto pela melhoria do atendimento aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), que inclui a melhoria da infraestrutura e dos equipamentos – os  investimentos nessas rubricas têm crescido anualmente, sendo de R$ 18 bilhões a previsão para 2014 – , o aumento das vagas tanto de graduação como de residência médica em medicina, a melhoria da formação médica e a contratação de profissionais para trabalhar nas regiões carentes, que são o interior do país e as periferias das grandes cidades. Essas medidas têm objetivos tanto emergenciais como estruturais.
Por que o programa foi criado? O diagnóstico é que o Brasil precisa de médicos. A taxa média de médico por habitante no país é baixa, 1,8/1000 habitantes (sendo que o ideal são os 2,7 existentes na Inglaterra) e mal distribuída no território, com as regiões e cidades mais ricas tendo mais suprimento de profissionais que as regiões pobres, como mostram dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No Maranhão, por exemplo, essa média é de 0,58, sendo que só o Distrito Federal e o Rio de Janeiro superam o ideal de 2,7 e 22 estados estão abaixo da média nacional de 1,8. Essa oferta insuficiente de profissionais impede a expansão da atenção básica. O alcance da meta de que os municípios tenham pelo menos 75% da população coberta por equipes de saúde da família, que é o número recomendado pelo Ministério da Saúde, depende do aumento do número de médicos. Ou seja, não se trata meramente de um problema de má distribuição, embora isso ocorra e precise ser resolvido, mas também de necessidade de formação de mais médicos para dar conta da demanda. Nesse sentido, o programa prevê a criação de 11,4 mil novas vagas de graduação em medicina e mais que 12 novas vagas para a residência médica.
O Programa Mais Médicos partiu também da avaliação de que há necessidade de ação imediata e emergencial para suprir a demanda por profissionais de medicina na rede pública. Nesse sentido, em dez meses, incorporou 14 mil profissionais ao serviço de atenção básica de saúde, fazendo prevenção e cuidando das doenças mais prevalentes, como hipertensão e diabetes, em áreas geográficas cujo contingente populacional abrange 49 milhões de pessoas. Desse total, 11.400 são cubanos intercambiados, com base em cooperação internacional entre Brasil, Cuba e a Organização Panamericana de Saúde. A previsão inicial é que esses profissionais atuarão durante três anos. A atuação dos médicos cubanos tem sido essencial, uma vez que eles se alocaram nos rincões do país e tem tradição na ajuda humanitária.
Os impactos iniciais em termos de aumento do atendimento já se fazem sentir. Mais de quatro mil municípios, cujos prefeitos são de partidos variados, inclusive da oposição ao governo feral, aderiram ao programa. E diversas pesquisas apontam que a população brasileira aprovou os fundamentos do Programa Mais Médicos, especialmente a priorização da distribuição dos profissionais nas regiões carentes e a atração de médicos estrangeiros qualificados. Os entrevistados creem na capacitação dos médicos intercambiados. O apoio ao programa situa-se entre 70,3% (Instituto Parana de Pesquisa) e 84,3% (CNT/MDA) da população.
Mas organizações de representação de interesse dos médicos, como a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores Universitários Regulamentados (CNTU) questionaram judicialmente o programa, basicamente por motivos relacionados aos médicos estrangeiros. Elas são contrárias à inexigência de revalidação de seus diplomas e também se opõem ao contrato de bolsista pelo qual foram incorporados ao programa. Por isso, ajuizaram duas Ações Direta de Inconstitucionalidade (ADIs) contra o Programa Mais Médicos. Enquanto a população apoia o programa, representações da categoria médica o criticam. É um caso para a reflexão.
Como cidadão que participou nas manifestações de junho de 2013, creio que o Mais Médicos foi uma resposta positiva. Se ele não é a panaceia, ou seja, a cura para todos os males da saúde pública, ele é reformista, aprofunda as medidas de reforma social, mesmo que através de mudança gradualista. As pressões dos rentistas e financistas são muito grandes. Eles se respaldam intelectualmente na ideologia neoliberal propalada pela grande mídia, o principal partido que possuem. Querem combater a inflação à custa de juros altos, que oneram a dívida pública, ao mesmo tempo em que se opõem às políticas de desenvolvimento, à política industrial e à ampliação das políticas sociais, por consideram que a iniciativa privada é o caminho de acesso aos serviços essenciais para a cidadania. Nessa difícil relação de forças, medidas reformistas como o Programa Mais Médicos fortalecem o campo político antineoliberal, pois respondem às necessidades da população pobre, que precisa de bons serviços públicos.
*Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política daUniversidade Federal Fluminense (UFF)e pesquisador das relações entre Política e Economia.
http://www.jb.com.br/marcus-ianoni/noticias/2014/05/20/a-populacao-quer-mais-medicos/

5.18.2014

Peabiru, caminhos rústicos usados por vários povos antigos

Rede de estradas. Trilhas e passagens que cruzavam a região são conhecidas há séculos por índios e viajantes e foram usadas pela expedição já lendária de Cabeza de Vaca para chegar até Assunção, no Paraguai
     
Por Maria Cristina Dias Dos Reis Lima - História

Onde começam ou onde terminam, quando foram abertos e com objetivos, que povos foram pioneiros... São muitas as dúvidas e histórias sobre os chamados Peabirus, caminhos rústicos, seculares, que cortam o Centro/Sul do País, fazendo uma ligação do Oceano Atlântico com o interior do Brasil até os Andes. Mas eles compõem uma rede que já era conhecida e usada por índios e - quem sabe? - outros povos mais antigos, muito antes da chegada por aqui dos primeiros conquistadores
portugueses e espanhóis. Estudioso do assunto há mais de 40 anos, o geógrafo e professor Olavo Raul Quandt esclarece alguns fatos sobre estes caminhos e garante que o lendário adelantado espanhol Alvar Nuñes Cabeza de Vaca, que em 1541 atravessou a América do Sul a pé, com uma comitiva de cerca de 400 homens, desembarcou da Baía da Babitonga e cruzou o chamado “Caminho Velho”, entre Joinville e Garuva, rumo ao Paraguai, onde assumiu o governo da Província de La Plata. Com isto, questiona as teorias vigentes, que dizem que o governador desembarcou na foz do rio Itapocu, em Barra Velha, e de lá partiu para sua longa viagem.
  Cenário de beleza e mistérios. No passado, região era habitada por índios guaranis na maior parte do litoral, caingangues e xoclengues. Mas os botocudos evitavam o Monte Crista, isso permitia que os guaranis usassem o caminho
Quandt explica que estes “caminhos rústicos”, chamados Peabirus, já eram percorridos pelos índios das nações tupy (os guaranis) e gê (xoclengues, caingangues, também conhecidos como botocudos) há centenas de anos e depois foram usadas por espanhóis e portugueses rumo ao interior. Eram picadas, veredas não apropriadas para o uso de rodas, embora, mais tarde, em algumas áreas planas, isso fosse possível. Em alguns trechos, como na subida para o Monte Crista, entre Joinville e Garuva, contavam com escadarias feitas de pedras cortadas, o que, segundo o pesquisador, é indício que são anteriores aos índios que as usavam. “Os guaranis já percorriam estes caminhos. E antes deles outras civilizações. Mas os guaranis não trabalhavam com pedras, não tinham ferramentas para a fazer a escadaria do Monte Crista”, garante.
Os vários caminhos cortavam o continente. Quandt revela que há anos, pesquisando a genealogia da família, descobriu que o bisavô Johann Mehl tinha uma pousada em Rio Negro, onde os tropeiros podiam parar, passar a noite, cuidar dos cavalos. O local ficava em um destes Peabirus, no sentido Norte/Sul, que ligava Viamão, no Rio Grande do Sul, a Sorocaba, em São Paulo. “Ele estava na rede de caminhos rústicos da América do Sul, que atravessa o continente”, constata ele que pesquisa a genealogia da família desde 1953, a partir de  1973 começou a se interessar também pelos Peabirus e hoje tem três livros publicados sobre o assunto.
Havia ainda “estradas” (não na acepção atual da palavra) no sentido Leste-Oeste, como a que ligava a Baía da Babitonga até Assunção, passando pelo Monte Crista e que, segundo o pesquisador, foi trilhada por Cabeza de Vaca e seus homens. “O caminho do Monte Crista é um trechinho do que Cabeza de Vaca percorreu. Ele passou por ali”. E várias picadas paralelas e atalhos ligando uma a outra.
A Estrada Velha de Três Barras também fazia parte dessa rede. Mas não a estrada que passa pelo Rio Bonito, e que hoje é a rua 15 de Novembro – esta, segundo o pesquisador, foi aberta por Leónce Aubé, representante do príncipe de Joinville, na segunda metade do século 19. Trata-se de outro caminho, que parte de um braço do rio Palmital, o rio do Saco, e segue até a atual cidade de Tijucas do Sul. Essa estrada, mais antiga, tinha dois nomes, de acordo com a referência: Caminho dos Ambrósios, (Tijucas do Sul era o Campo dos Ambrósios) ou Estrada Três Barras, para quem vinha do Planalto. É ela quem sobe para o Monte Crista e de lá segue para Tijucas do Sul e ainda pode ser percorrida.
 Ainda estão lá. Em alguns trechos, como na subida para o Monte Crista, há escadarias feitas de pedras cortadas, anteriores aos índios.
Começo na baía Babitonga
Para afirmar que o início da epopeia de  Cabeza de Vaca nestas terras foi a baía Babitonga, Olavo Raul Quandt se apoia no manuscrito “Información hecha por el Gobernador del Río de la Plata, Cabeza de Vaca, donde mediante un interrogatorio de 87 preguntas se dan a conocer todos los sucesos que ocurrieron em la Armada y expedición de dicho Governador hasta su llegada a la Asunción del Paraguay, em cuyas declaraciones se articulan posesiones de outros territorias”, cujo original se encontra no Archivo General de Indias, em Sevilha, na Espanha. “É o documento principal que comprova que o Cabeza de Vaca não entrou pelo Itapocu, e sim, pela baía Babitonga”, explica, mostrando a cópia do documento.
O texto é um depoimento do próprio Cabeza de Vaca, feito em 1543. Nele, o adelantado (como ele é chamado) declara que a entrada por terra, em direção a Assunção, ocorreu na “Baya de Ytabuan”. “Trata-se da da baía de São Francisco, também conhecida como Babitonga, situada entre a Ilha de São Francisco e o continente. Ytabuan é um topônimo preservado até os nossos dias em sua variante 'Itapoá', que é o nome do atual município situado no setor norte da terra firme”, escreveu Quandt em seu livro “O Caminho Velho e o Adelantado”, de 2012. No documento, Cabeza de Vaca menciona o local seis vezes  como ponto de partida para a caminhada de mais de quatro meses rumo ao Paraguai.
Segundo o pesquisador, o adelantado citou em outro documento o nome do rio “Itabocu”, o que teria causado o equívoco. Porém, ele destaca que o rio Itapocu, na época, tinha o nome de rio dos Dragos devido à quantidade de jacarés do papo amarelo que havia em suas águas. Além disso, era comum não colocar a localização exata de pontos estratégicos para manter o sigilo sobre elas. “Ele não podia publicar o nome exato”, afirma”, lembrando que no caso do material encontrado no  Archivo General de Indias, não havia esse impedimento, já que ele era restrito, e não de uso público.
Rogério Souza Jr/ND
 Pesquisa. A partir de 1973, Olavo Raul Quandt começou a se interessar também pelos Peabirus e hoje tem três livros publicados sobre o assunto
Trilhas de pedras no Monte Crista
Ainda hoje, muitos trechos ainda são identificados e usados por aventureiros - e repleto de lendas. Um exemplo é o que leva ao cume do Monte Crista. Olavo Quandt conta que os Tupis-guaranis e os caingangues e xoclengues eram inimigos e viviam em áreas distintas: os guaranis na maior parte do litoral (com exceção de um trecho) e os caingangues e xoclengues no Alto Vale, foz do Itapocu e interior de Joinville.
Mas os chamados “botocudos” evitavam o Monte Crista. “Os índios eram supersticiosos e, por alguma razão, os xoclengues evitavam aquele trecho. Isso permitia que os guaranis usassem esse caminho ”, afirma o pesquisador, lembrando algumas das lendas que se ouvem no local, como a dos raios que caíram duas vezes, no mesmo dia, no mesmo pinheiro.
No livro “Era uma vez um simples caminho”, a pesquisadora Elly Herkenhoff fala de histórias e mistérios que rondam não só o Monte Crista, mas também o Castelo dos Bugres. “Há muita gente que jura ter ouvido vozes, vindas dos fundos das cavernas existentes tanto no Monte Crista no Castelo dos Bugres”, escreve. E lembra a lenda de tesouros ocultos, perdidos no tempo. “No Monte Crista – assim reza a tradição – há tesouros imensos, que os jesuítas, ao serem expulsos do Brasil, ali esconderam em lugar seguro, até hoje não descoberto ou, quem sabe, já descoberto e redescoberto e mexido e remexido e saqueado há muito tempo...”. Histórias que até hoje encantam quem frequenta a região.    

5.12.2014

A liderança do Brasil em política externa na América do Sul

O Brasil, a América do Sul e a integração regional

Para o bem e para o mal, somos, isoladamente, a única expectativa de potência regional
por Roberto Amaral — política externa
George Vale/Flickr
Brasil Para o bem e para o mal, somos, isoladamente, a única expectativa de potência regional
Uma das poucas coisas que estão se transformando em política de Estado no Brasil é a atual política externa, cujos fundamentos remontam à presidência Jânio Quadros e à atuação de Afonso Arinos de Melo Franco no Ministério das Relações Exteriores. Trata-se de uma política externa independente e progressista que prosseguiria com San Tiago Dantas, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Araújo Castro, até o interregno da primeira fase do regime civil-militar – Castello Branco e seu ministro Juracy Magalhães (“O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”).
Ainda na última ditadura, o que havia sido grafado como ‘Política Externa Independente’ (PEI) volta a aproximar-se de seus contornos originais nas gestões Magalhães Pinto, Azeredo da Silveira e Saraiva Guerreiro à frente do MRE. A atual PEI, portanto, é herdeira de longa história, que começa a ser gestada no quinquênio JK e formulada no Instituto Superior de Estudos Brasileiros,  onde se destacam os textos de  Hélio Jaguaribe. Após o mormaço dos anos 90, e a preeminência do neoliberalismo (ressalvem-se os bons momentos de Celso Amorim no governo Itamar Franco), temos, em todo o período Lula, e liderada pelo presidente, seu ator mais ostensivo, a política traçada e executada pela tríade Amorim-Samuel P. Guimarães-Marco Aurélio Garcia, que chega aos nossos dias com alguns pontos de inflexão. Com todos os méritos, é um desdobramento da história encontrada.

Assim, foi-nos dado viver, no período 2003-2011, um dos melhores momentos de nossa política externa, ativa e altiva, animada por um encontro de fatores favoráveis, como a conjuntura internacional e o crescimento da economia nacional, de que inteligentemente se soube valer  o presidente Lula. Desse período destacam-se nosso  papel de ator e o movimento com vistas aos mercados africano e asiático (aproximação que amenizou entre nós as repercussões da crise econômica de 2008 ) e ao Hemisfério Sul, neste merecendo destaque nossa política e, dela derivada, nossa liderança na América do Sul. É exatamente neste ponto que as administrações Lula e Dilma se distinguem, conservando porém sua essência. Com a atual  presidente o Brasil passa a ter uma atuação internacional mais comedida (para o que terá favorecido o retraimento do ministro Patriota), com, por exemplo,  o inexplicado recuo da política para   o Irã  e o  amortecimento do esforço integracionista sul-americano. Registre-se, porém, nossa importantíssima vitória na OMC, com a eleição do embaixador Roberto Azevêdo para sua diretoria-geral, o alinhamento com  Alemanha, Rússia e China no Conselho de Segurança da ONU relativamente à intervenção na Líbia e a atuação pronta e firme de nosso governo quando do golpe de Estado parlamentar que depôs o presidente Lugo, e o esforço, em conjunto com nossos co-irmãos sul-americanos, para sustar a desestabilização em marcha da Venezuela, gestada, como sempre, a partir de  Washington.
Este período, todavia, não ensejou nem os debates nem as formulações doutrinárias dos anos 60. Saudades do ISEB. Contou, porém, e conta ainda, com a resistência conservadora, a resistência de sempre da grande imprensa, mobilizando ‘cientistas’ políticos mediáticos e diplomatas de pijama, uns saudosistas da ideologia neoliberal, outros simplesmente uma meia dúzia de ressentidos.
Neste artigo nossas atenções se voltam para um só aspecto dessa política externa: a opção pela integração sul-americana, pois, lamentavelmente, ainda é necessário defendê-la.
Para estimar a importância dessa política para o presente e o futuro do Brasil,  basta considerar que o Hemisfério Sul – nele com destaque nosso subcontinente – é, nada mais, nada menos - do que o espaço privilegiado de expansão do  capitalismo brasileiro, espaço no qual as grandes empresas nacionais poderão atuar, e onde já atuam, com sucesso e proveito. O instrumento exemplar da integração sul-americana e de nossa liderança é o Mercosul: desde sua criação (1991), as exportações brasileiras cresceram nada menos que 12 vezes, sendo que cerca de 90% dessas exportações são de produtos manufaturados. Para os países do bloco, exportamos nossos bens industriais, e não apenas soja e laranja. Essa evidência, todavia, é ignorada pelos diplomatas da FIESP, logo ela que supostamente deveria ser a maior interessada na recuperação de nossa indústria manufatureira, presentemente às voltas com uma  de suas crises mais sérias.
O Mercosul, ademais, sepultou de vez a artificial rivalidade e competição mutuamente destrutiva entre Brasil e Argentina, fomentada desde o Império pelas grandes potências.  Nossa rica vizinha, que nos anos 90 tinha uma pequena participação nas exportações brasileiras, tornou-se o terceiro destino de nossos produtos, após  China e logo atrás dos EUA, mas com uma diferença radical: enquanto para aqueles países exportamos commodities (grãos, frango, carne, minérios etc.), para  a Argentina, como para os demais países do bloco, nossas exportações são de manufaturados.  É ilusório contar com o mercado dos EUA ou da UE para  nossos produtos industriais, motivo pelo qual aliança de livre-comércio com qualquer um desses blocos será sempre a aliança da panela de barro com a panela de ferro,  como se deu com o México ao aderir ao Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA) em 1992. Que seu fracasso evite o nosso.
A partir de 1994 (quando as regras do NAFTA entraram em vigor) a renda per capita do México cresceu apenas cerca de 1,2% ao ano, ou seja, bem abaixo dos índices médios alcançados por Brasil, Chile, Colômbia, Uruguai e Peru, e abaixo da média dos emergentes.  De outra parte, ao invés de ser contida, como prometido, a imigração cresceu de 6,2 milhões, em 1994, para 12 milhões, em 2013. Não por acaso, o governo Obama bate recorde de deportação de imigrantes, e dentre estes destacam-se trabalhadores pobres do outro lado da fronteira, e assim, ironia da história, expulsos como estrangeiros indesejáveis das terras que foram suas... O México, que aspirava a exportar mercadorias, continuou exportando sua gente para o sub-emprego nos EUA. Apesar do NAFTA, o México não logrou, tampouco, atrair o capital estrangeiro. Ainda hoje, recebe menos investimentos do que Brasil, Chile, Colômbia e Peru. Por outro lado, o crescimento econômico dos países latino-americanos que não celebraram acordos de livre comércio com os EUA foi, no período de vigência do acordo até aqui,  maior do que o crescimento mexicano.
O fortalecimento do Mercosul corresponde, ainda,  à necessidade de nossos países, juntos, exercerem maior influência nas negociações internacionais, em defesa de seus interesses, além de contrabalancear o poder das potências extra-regionais que sempre ditaram nossas políticas (internas e externas) – diretamente, ou por intermédio de agências e organismos internacionais como FMI, BIRD, Banco Mundial e quejandos.
O Brasil não pode exercer, na região, o papel de sócio menor dos EUA, como lhe cobra a grande imprensa. Queria ela, por exemplo, que derrubássemos Morales a pretexto de defender a Petrobras, que defendêssemos os golpes que derrubaram Lugo e Zelaya. Surpreendida pelas denúncias acerca da espionagem da Agência Americana de Segurança-NSA, violando as comunicações do Palácio do Planalto e da Petrobras, o que levou a presidente Dilma a cancelar a viagem que faria aos EUA, tentaram amenizar a gravidade do episódio.  
De outro lado, até porque isso atende aos nossos interesses – mais precisamente, na realidade, aos interesses dos capitalistas brasileiros – precisamos dar os braços aos países mais pobres e chamar Argentina e Venezuela (crises à parte) para um trabalho comum visando à redução das assimetrias. Política externa custa caro. Ela implica a diplomacia stricto sensu, mas não apenas isso. Tanto ou mais importante é a presença objetiva, material, e nesse sentido é preciosa a atuação do BNDES no financiamento de obras de infraestrutura, as quais, melhorando as condições logísticas de nossos parceiros (isto é, de mercados nossos), ainda ajudam à indústria brasileira, pois as obras são conduzidas por empresas nacionais e as encomendas de bens e equipamentos são ditadas no mercado brasileiro. Assim, foi de alto alcance a cooperação visando à construção do porto de Mariel (Cuba), nossa ponte para os mercados da costa Leste dos EUA,  da América Central e Caribe. Como será de largo alcance ajudarmos o Uruguai na construção de um grande porto de águas profundas que logo se transformará em escoadouro da produção brasileira e rota para o mercado do Pacífico, sem as limitações do Canal do Panamá. Esse porto, que pode atrair investimentos chineses, é importante para todos os países do Cone Sul, e por isso é duplamente importante para a economia e a política brasileiras. E foi política correta a decisão de financiarmos, com recursos do Fundo para a Convergência Estrutural e Fortalecimento Institucional do Mercosul (FOCEM), a linha de alta voltagem que já leva energia de Itaipu para Assunção. O Paraguai é nosso sócio na grande hidrelétrica, e sua eletrificação já atrai empresas brasileiras, as quais lá se beneficiam de custos mais baixos, desta forma aumentando suas condições de competitividade.
É imoral pensar pequeno. E estrategicamente desastroso.
Somos a sexta economia do mundo, quarto território do planeta (lembremos, 8.500 mil km2), 200 milhões de habitantes, um litoral de quase 8 mil km de extensão, uma fronteira terrestre com cerca de 17 mil km, limítrofe com dez países, 50% do território e da produção da América do Sul.
Para o bem e para o mal, somos, isoladamente, a única expectativa de potência regional. Negar esta evidência significa manter-nos reféns de interesses que obstaculizam nosso desenvolvimento, e, por conseqüência, o bem-estar de nosso povo.
Leia mais em www.ramaral.org
http://www.cartacapital.com.br/internacional/o-brasil-a-america-do-sul-e-a-integracao-regional-8749.html

5.09.2014

Porque algumas doenças não são curadas

As farmacêuticas e as drogas “para ocidentais que pagam”

Fala do executivo-chefe da Bayer permite decifrar lógica fria da propriedade intelectual e das patentes — e a razão de persistirem incuradas certas doenças…
Júlio Reis - Sociedade
John Macdougall / AFP
Bayer A sede da Bayer em Berlin, na Alemanha
Por Júlio Reis
Prolongar em alguma medida a vida e mitigar a dor e o sofrimento das pessoas foram e devem continuar sendo os autênticos propósitos do desenvolvimento de atividades medicinais e farmacêuticas. No entanto, diferente de outros momentos históricos e configurações sociais, para o atual momento do modo de produção capitalista isto deve estar rigorosamente subordinado ao lucro.
É desta maneira que, abandonando qualquer pudor e se afastando da miserabilidade das motivações humanistas como intuito da pesquisa bioquímica, uma fala recente se coloca como emblemática da lógica em vigor.
Durante um debate promovido pelo diário londrino Financial Times, o executivo chefe da Bayer, Marijn Dekkers (que também é um dos membros diretores da General Eletric), assim respondeu sobre como a possível quebra de patente por parte da Índia poderia afetar o modelo de negócios do grupo¹:
Nós não desenvolvemos este produto para o mercado indiano, sejamos honestos. Nós desenvolvemos este produto para os pacientes do ocidente que podem pagar por ele”. O “produto” em questão é o Nexavar, conhecido também como Soferanib e utilizado no tratamento de câncer avançado do rim e do fígado. Dekkers aproveitou ainda a ocasião para classificar o sistema indiano de quebra de patentes de medicamentos como “essencialmente roubo”.
Mesmo deixando de lado o importante vetor dos descompassos de uma “cultura” que –prometendo a absoluta satisfação destas necessidades imemoriais e, ao mesmo tempo, promovendo sua insatisfação constante — tenta convencer que a morte e todo sentimento de dor podem ser extinguidos, são gritantes as contradições de um “oba-oba” que pretende fazer esquecer as limitações do acesso e da arquitetura de seu “progresso”.
Longe de buscar satisfazer as necessidades humanas de forma mais abrangente, os avanços da indústria farmacêutica orientam-se aferradamente de acordo com a lógica da multiplicação do capital. Assim, necessidades da mais elevada ordem sensível são tratadas no mesmo lugar que a compra de vestuário de grife, nada mais “natural”! O próprio desenvolvimento “cultuado” está desenhado por uma acessibilidade restrita e muito pouco pela vontade de saciar a “humanidade” que dele poderia usufruir.
Portanto, voltando a Dekkers, vale perguntar por que é um roubo a quebra de patentes se não havia interesse no “mercado” indiano? Ele não teria ainda, mesmo que inusitadamente, dado uma excelente resposta para o problema do preço de certas drogas (que, vamos combinar, não são modelo de automóvel): paga caro quem pode pagar caro e barato quem só pode pagar barato?
Não. Cada um deve arcar solitariamente com o preço proposto pela corporação. É que só assim ela terá não apenas o retorno de seus investimentos como felpudos lucros, que foram aliás o grande ensejo do que um dia ainda fazia questão de exibir um verniz filantrópico.
A indignação de Dekkers, no entanto faz sentido. Ele é pago para defender a possibilidade do aumento dos lucros acima de tudo. Vai que a moda pega e outros países, eventualmente inclusive os ocidentais, começam a derrubar as patentes: como é que fica o modelo de bussiness da Bayer?
Aliás, não será o modelo de negócios uma das causas (deixando de lado os desafios propriamente farmacoquímicos) de uma doença como a Aids, não ter encontrado a cura ou vacina até o momento?
Sejamos honestos como Dekkers. A menos para as grandes corporações, que interesse há em superar enfermidades que, crônicas, podem continuar rendendo vantagens econômicas? E, mais importante: como se justificaria para a humanidade que o acesso a uma vacina como esta ficasse restrito àqueles que pudessem pagar o valor arbitrado pela empresa que a desenvolveu? Ou todas os Estados-nações arcariam com os custos em seus orçamentos fiscais, ou esta alegada “propriedade intelectual”, com tal calibre de impacto, não seria tolerada enquanto monopólio de mercado de quem dele dispõe.
Fico imaginando ainda o que os cientistas que desenvolvessem um antídoto assim considerariam disto: “Celebremos, celebremos. Depois de longo esforço, alcançamos este estupendo resultado. Sabemos, fomos motivados pelo lucro, agora é esperar que os consumidores comprem a vacina pelo preço estabelecido por nossos acionistas e de nenhuma forma vamos revelar este segredo para o público, mesmo que as pessoas continuem morrendo do mal”.
Contudo não podemos esquecer aqui do cerne do argumento habitual: “Mas essas empresas investem, fazem muitas pesquisas, gastam muito dinheiro em projetos que às vezes não levam a nada até inventarem uma droga como essa, é justo que recebam dividendos por tudo isso”.
Nunca questionam o quanto as empresas devem lucrar e quem deve pagar a conta. Sujeitos atomizados, necessariamente? Não se pode criar um outro sistema para premiar a empresa — que não o lucro, base de patentes que encarece tantos medicamentos?
Uma vez mais o exemplo do Nexavar é precioso: o preço do medicamento reclamado pela Bayer é de 65 mil dólares por ano para o tratamento de um paciente. Com a quebra de patente pela Justiça indiana, ele passou a custar 97% menos, algo em torno de 2 mil dólares ao ano. A Índia exige das empresas farmacêuticas que querem operar no país a fórmula dos remédios para certas doenças, como Aids e câncer — a fim de que sejam produzidos livremente por outras companhias, como a indiana Natco. As desenvolvedoras da fórmula continuam recebendo um valor pelo uso da mesma, mas não estabelecem o preço que intentam e se cria um mercado de genéricos.
Para os neoliberais, alternativas como essa abalam a “fé” no livre mercado e ao mesmo tempo o Estado não tem nada que se envolver com o tema, ou com o que quer que seja considerado rentável. Claro que eles sofrem de amnésia: antes de muitos negócios demonstrarem-se rentáveis, o Estado desenvolveu “a necessidade” e os meios de satisfação, retirando-se depois do jogo. Isso porque o Estado, outra vez eles esquecem, é dirigido predominantemente conforme os interesses dos grandes grupos de influência econômica e “socializa” os custos de arriscadas empreitadas e dos imensos prejuízos daqueles que são “grande demais para cair”. Como de praxe, o Estado é mínimo para os pobres; para os ricos é garantidor.
Já é conhecido que as grandes farmacêuticas não dão a mínima para o tratamento das designadas “doenças negligenciadas”, aquelas que atingem populações de rincões subdesenvolvidos e para as quais não se deve esperar nunca uma cura advinda da livre iniciativa de mercado. Para sorte destes desvalidos, o mínimo Estado ainda não está completamente zerado e aporta recursos para instituições de pesquisa públicas como a Fiocruz no Brasil.
Esta instituição, com os parcos recursos que recebe, procura contornar o problema de populações carentes e recentemente anunciou que está próxima de alcançar a vacina para a esquistossomose, doença que atinge 200 milhões de pessoas no globo².
Como se não bastasse e com impactos bastante nefastos, convertida em ramo empresarial no mundo da vertiginosa espiral competitiva, a indústria farmacêutica exibe também os sintomas da ganância fraudulenta. Uma notícia recente demonstra mais um entre tantos casos dessa febre.
Segundo relata a Cochrane Collaboration, uma organização não lucrativa que reúne 14 mil acadêmicos, o Tamiflu (droga criada pela Roche a propósito do surto da alcunhada gripe aviária) tem pequeno ou nenhum impacto no tratamento de complicações advindas de gripe ou pneumonia. Além disso, os métodos e resultados dos tratamentos clínicos à base de muitos remédios estão eivados de pouca transparência³. Em suma, é preciso mais fé do que ciência para que tudo funcione como se pretende.
Pesquisadores ao longo da história estiveram interessados em desenvolver curas, substâncias e métodos de tratamento. Perseguiam o conhecimento e buscavam satisfazer necessidades humanas. Alguns, por vaidade intelectual certamente perseguiam também o reconhecimento público, mas isto estava muito longe de se confundir com o esforço para multiplicar dinheiro.
Como bravo exemplo pode se tomar Edward Jenner. Hoje ninguém duvida da eficácia do método de vacinação defendido por ele em combate contra a varíola, uma das doenças mais nefastas de que já se teve notícia. Porém, poucos sabem da dedicação deste homem para que isso sucedesse. Enquanto seu método ainda sofresse ataques, Jenner vacinava pobres gratuitamente e se empenhava em provar o benefício de sua descoberta. Passou boa parte da vida endividado, numa Inglaterra que punia com cadeia este “crime”. Não contou com o apoio de nenhuma grande empresa e do Estado britânico. Ganhou, após muita comoção, dois prêmios pecuniários em reconhecimento aos seus esforços e como forma de livrá-lo das dívidas. Sem grandes apoios financeiros, Jenner lutou para nos deixar uma grande descoberta com todo o poder de sua genuína livre inciativa, não fez o que fez guiado pelo lucro.
Se todas as doenças causassem seus danos de acordo com o saldo bancário do atingido é possível que estes questionamentos não se fizessem necessários. Mas, ao que tudo indica, a maior parte dos vírus, bactérias, degenerações e infecções ainda não apreenderam a discernir muito bem a lógica do dinheiro antes dos seus ataques, embora a lógica do dinheiro tenha apreendido muito bem a discernir os doentes afetados.
¹-http://keionline.org/node/1910
²-http://www.dw.de/brasil-est%C3%A1-perto-de-lan%C3%A7ar-vacina-pioneira-contra-esquistossomose/a-17513604
³-http://www.theguardian.com/business/2014/apr/10/tamiflu-saga-drug-trials-big-pharma

http://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-palavras/a-industria-farmaceutica-e-as-drogas-201cpara-ocidentais-que-pagam201d-9084.html

5.03.2014

Contra o racismo nada de bananas, nada de macacos!



NeyAFRICA
À esquerda, foto de Neymar em apoio a Daniel Alves; À direita foto de Ota Benga, Zoológico do Bronx, Nova York, em 1906.

 Por Douglas Belchior

A foto da esquerda todo mundo viu. É o craque Neymar com seu filho no colo e duas bananas, em apoio a Daniel Alves e em repulsa ao racismo no mundo do futebol.
Já a foto à direita, é do pigmeu Ota Benga, que ficou em exibição junto a macacos no zoológico do Bronx, Nova York, em 1906. Ota foi levado do Congo para Nova York e sua exibição em um zoológico americano serviu como um exemplo do que os cientistas da época proclamaram ser uma raça evolucionária inferior ao ser humano. A história de Ota serviu para inflamar crenças sobre a supremacia racial ariana defendida por Hitler. Sua história é contada no documentário “The Human Zoo”.
A comparação entre negros e macacos é racista em sua essência. No entanto muitos não compreendem a gravidade da utilização da figura do macaco como uma ofensa, um insulto aos negros.
Foi encontrado essa história num artigo sensacional, e que também trazia reflexões de James Bradley, professor de História da Medicina na Universidade de Melbourne, na Austrália. Ele escreveu um texto com o título “O macaco como insulto: uma curta história de uma ideia racista”. Termina o artigo dizendo que “O sistema educacional não faz o suficiente para nos educar sobre a ciência ou a história do ser humano, porque se o fizesse, nós viveríamos o desaparecimento do uso do macaco como insulto.”
Neymar. Não somos todos macacos. Ao menos não para efeito de fazer uso dessa expressão ou ideia como ferramenta de combate ao racismo.
Mas é bom separar: uma coisa é a reação de Daniel Alves ao comer a banana jogada ao campo, num evidente e corriqueiro ato racista por parte da torcida adversária; outra coisa é a campanha de apoio a Daniel e de denúncia ao racismo, promovida por Neymar.
No Brasil, a maioria dos jogadores de futebol advém de camadas mais pobres. Embora isso esteja mudando – porque o futebol mudou, ainda é assim. Dentre esses, a maioria dos que atingem grande sucesso são negros. Por buscarem o sonho de vencer na carreira desde cedo, pouco estudam. Os “fora de série” são descobertos cada vez mais cedo e depois de alçados à condição de estrelas vivem um mundo à parte, numa bolha. Poucos foram ou são aqueles que conseguem combinar genialidade esportiva e alguma coisa na cabeça. E quando o assunto é racismo, a tendência é piorar.
E Daniel comeu a banana! Ironia? Forma de protesto? Inteligência? Ora, ele mesmo respondeu na entrevista seguida ao jogo:
“Tem que ser assim! Não vamos mudar. Há 11 anos convivo com a mesma coisa na Espanha. Temos que rir desses retardados.”
É uma postura. Não há o que interpretar. Ele elaborou uma reação objetiva ao racismo: Vamos ignorar e rir!
Há um provérbio africano que diz: “Cada um vê o sol do meio dia a partir da janela de sua casa”. Do lugar de onde Daniel fala, do estrelato esportivo, dos ganhos milionários, da vida feita na Europa, da titularidade na seleção brasileira de futebol, para ele, isso é o melhor – e mais confortável, a se fazer: ignorar e rir. Vamos fazer piada! Vamos olhar para esses idiotas racistas e dizer: sou rico, seu babaca! Sou famoso! Tenho 5 Ferraris, idiota! Pode jogar bananas à vontade!
O racismo os incomoda. E os atinge. Mas de que maneira? Afinal, são ricos! E há quem diga que “enriqueceu, tá resolvido” ou que “problema é de classe”! O elemento econômico suaviza o efeito do racismo, mas não o anula. Nesse sentido, os racistas e as bananas prestam um serviço: lembram a esses meninos que eles são negros e que o dinheiro e a fama não os tornam brancos!
Daniel Alves, Neymar, Dante, Balotelli e outros tantos jogadores de alto nível e salários pouca chance terão de ser confundidos com um assaltante e de ficar presos alguns dias como no caso do ator Vinícius; pouco provavelmente serão desaparecidos, depois de torturados e mortos, como foi Amarildo, pedreiro que foi morto pela polícia em favel do Rio de Janeiro; nada indica que possam ter seus corpos arrastados por um carro da polícia como foi Cláudia ou ainda, não terão que correr da polícia e acabar sem vida com seus corpos jogados em uma creche qualquer. Apesar das bananas, dificilmente serão tratados como animais, ao buscarem vida digna como refugiados em algum país cordial, de franca democracia racial, assim como as centenas de Haitianos o fazem no Acre e em São Paulo.
O racismo não os atinge dessa maneira. Mas os atinge. E sua reação é proporcional. Cabe a nós dizer que sua reação não nos serve! Não será possível para nós, negras e negros brasileiros e de todo o mundo, que não tivemos o talento (ou sorte?) para o  estrelato, ou não quisemos, comer a banana de dinamite, ou chupar as balas dos fuzis, ou descascar a bainha das facas. Cabe a nós parafrasear Daniel, na invertida: “Não tem que ser assim! Nós precisamos mudar! Convivemos há 500 anos com a mesma coisa no Brasil. Temos que acabar com esses racistas retardados, especialmente os de farda e gravata”.
Quanto a Neymar, ele é bom de bola. E como quase todo gênio da bola, superacumula inteligência na ponta dos pés, na chuteira. Pousa com seu filho louro, sem saber que por ser louro, mesmo que se pendure num cacho de bananas, jamais será chamado de macaco. A ofensa, nesse caso, não fará sentido. Mas pensemos: sua maneira de rechaçar o racismo foi uma jogada de marketing ou apenas boa vontade? Seja o que for, não nos serve.
Ser negro, nascido em um país onde a violência e a pobreza são pressupostos para a vida da maior parte da população, que é negra. Neymar ou Luciano Hulk, Angélica, Reinaldo Azevedo, Aécio Neves, Dilma Rousseff, artistas e a imprensa que, de maneira geral, exaltaram o “devorar da banana” e agora compartilham fotos empunhando a saborosa fruta, neste país, assim como em todo o mundo, a comparação de uma pessoa negra a um macaco é algo culturalmente ofensivo.

Como negro, não é possível se admitir. Banana não é arma e tampouco serve como símbolo de luta contra o racismo. Ao contrário, o reafirma na medida em que relaciona o alvo a um macaco e principalmente na medida em que simplifica, desqualifica e pior, humoriza o debate sobre racismo no Brasil e no mundo.
O racismo é algo muito sério. Vivemos no Brasil uma escalada assombrosa da violência racista. Esse tipo de postura e reação despolitizadas e alienantes de esportistas, artistas, formadores de opinião e governantes tem um objetivo certo: escamotear seu real significado do racismo que gera desde bananas em campo de futebol até o genocídio negro que continua em todo o mundo e no Brasil.
Se adora banana. Em casa não deve faltar. Os macacos são bichos incríveis, inteligentes e fortes. O filme Planeta dos Macacos que se assiste, especialmente o primeiro, se imagina o quanto os seres humanos merecem castigo parecido. Dizem que viemos deles e a história da evolução da espécie é linda. Mas se é para associar a origens, por que não dizer que #SomosTodosNegros ? Porque não dizer #SomosTodosDeÁfrica ? Porque não lembrar que é de África que viemos, todos e de todas as cores, conforme provado pelos cientistas através do DNA? E que por isso o racismo, em todas as suas formas, é uma estupidez incompatível com a própria evolução humana? E, se somos, por que nos tratamos assim?
Mas não. E se segue, “olhando, curiosos, é lógico. Não, não é não, não é o zoológico”.
Portanto, nada de bananas, nada de macacos!
 http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2014/04/28/contra-o-racismo-nada-de-bananas-por-favor/