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Mais do que um filme de narrativa fechadinha, é uma alegoria calcada em jogos de improviso, de dois atores muito à vontade em cena, e experimentações

Na era da hiperconectividade, em que todos somos reféns de um mal disfarçado Grande Irmão orwelliano, o quanto da personalidade humana já não é moldada para ser percebida de uma certa maneira pelo olhar ininterrupto dos outros?
Seja pelas câmeras de celular ou pelos circuitos de segurança, a impressão é a de que não apenas somos vigiados, como gostamos e levamos nossa vida em função disso. Nesta espécie de síndrome de Estocolmo moderna, aqueles trejeitos que antes ficavam restritos à frente do espelho são agora posados para lentes de iPhone e postados a quem se interessar, como um ato de autoafirmação. “Penso, faço um selfie, posto no Face, logo existo”, para citar um meme recente, que atualiza o princípio do pensador René Descartes.
O mundo de Periscópio começa apenas com um apartamento isolado, no qual só sobraram dois homens, vivendo em condições precárias e dividindo o apartamento. Eric (Jean-Claude Bernardet), um senhor idoso e doente, e seu cuidador, Elvio (João Miguel). A convivência entre eles é tumultuada, uma codependência que os empurra à beira da loucura.
De personalidades distintas, eles têm a mínima relação necessária. Elvio despreza o sotaque francês e a pompa de Eric, que, por sua vez, debocha das crenças e do santuário do primeiro. Eles se vêem o dia inteiro, mas não se olham com profundidade, muito menos buscam se entender.
Até que um periscópio brota no meio da sala. O filme não tenta explicar como isso acontece, e nem precisa. Mais interessante é acompanhar como o acontecimento transforma a realidade dos personagens.
Observados por aquele objeto, eles produzem as mais diversas encenações, vestem figurinos, dançam, fazem poses, assumem máscaras. Acima de tudo, Simulam uma falsa harmonia, que por alguns momentos torna a vida mais suportável.
O diretor Kiko Goifman, que é coautor do roteiro com Bernardet, acerta na mosca quando diz em entrevistas que seu filme tem a ver com essa obsessão moderna pela autoexposição em redes sociais.
Kiko e Jean-Claude são estudiosos da linguagem cinematográfica e, por meio do surrealismo, encontram uma forma original de abordar o tema, tão contemporâneo. Mais do que um filme de narrativa fechadinha, é uma alegoria calcada em jogos de improviso, de dois atores muito à vontade em cena, e experimentações.
Em sua trama, não demora muito para o olhar da coisa, ou do “troço” (como o periscópio é chamado pelo personagem de João Miguel) se tornar opressor. É um brinquedo novo que perde a graça, mas que não pode ser simplesmente jogado fora. Multiplica-se, assim como vão surgindo aos montes, do lado de cá da tela, snapchats, vines, e, curiosamente, até um aplicativo chamado “periscope”.