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5.05.2023

Brasil, América Latina e Caribe é onde comer saudável custa mais caro

Relatório da FAO alerta para crise da segurança alimentar nos países latino-americanos e caribenhos em contexto de crise e pós-pandemia

Alta de preços de alimentos ficou 3 pontos percentuais acima da inflação na região

por Edison Veiga* no Deutsche Welle - Sociedade e Segurança Alimentar

Foto agricultura familiar

Muitas vezes os números servem para dar a dimensão exata daquilo que é naturalmente inexplicável. No caso da dor de quem tem fome porque não pode pagar por alimentar-se o mínimo, no relatório divulgado em 18 de janeiro de 2023 pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), mostra o tamanho do drama das(os) brasileiras(os) latino-americanas(os) e caribenhas(os) mais pobres nos últimos anos.

Em análise de 12 meses até junho de 2022, o levantamento confirmou que a inflação geral de todos os países da América Latina e do Caribe foi alta, refletindo a tendência mundial: 8,9%. Mas se isso, por si só, dificulta a vida dos habitantes, a realidade refletida no fundo do prato vazio das populações vulneráveis desses países é ainda pior. Porque, no mesmo período, o preço dos alimentos subiu 11,9%, ou seja, 3 pontos percentuais a mais do que a inflação.

O relatório lembra que o peso da alimentação no bolso das famílias de baixa renda é ainda maior porque, o valor proporcionalmente gasto com comida pelos mais pobres é maior do que pelos mais ricos. Por isso, a chamada "inflação alimentar” dói mais no bolso e no estômago daqueles que ganham menos.

O documento Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional na América Latina e no Caribe 2022 foi divulgado às 12h30 (horário de Brasília) em 18/JAN/2023 no escritório da FAO em Santiago, Chile. O trabalho envolveu outras quatro entidades, além da FAO: o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas/OMS), o Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (WFP) e o Fundo das Nações Unidas Unidas para a Infância (Unicef).

Alimentos que Contribuem para a Segurança Alimentar na América Latina e Caribe

O levantamento concluiu que atualmente são 131 milhões de indivíduos de toda a América Latina e o Caribe que não podem pagar por uma dieta saudável. Isso equivale a 22,5% da população total de toda a região: 52% do Caribe, 27,8% da América Central e 18,4% da América do Sul.

O número de famintos também teve um aumento de 30% entre 2019 e 2021, saltando de 43,3 milhões para 56,5 milhões. E, reflexo da alimentação pouco ou nada saudável, a obesidade é uma epidemia cada vez mais presente nesses países, atingindo um quarto dos adultos e um total de 3,9 milhões de crianças até os cinco anos de idade.

A crise alimentar, portanto, como aponta o relatório, não causa apenas fome: também traz problemas como obesidade, anemia, atrasos no desenvolvimento infantil e desnutrição.

Preço da Invasão Européia na América Latina e Caribe

Segundo a FAO, a América Latina-Caribe é, hoje, o lugar mais caro do planeta alguém comer de forma saudável: o custo é de, no mínimo, 3,89 dólares por pessoa, enquanto a média mundial é de 3,54 dólares.

Para o sociólogo e cientista político Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), a América Latina ainda paga o preço do período quando concretizou-se a invasões européias.

"Desde então, historicamente, boa parte da produção agrícola da região é direcionada para o mercado internacional. Os preços são taxados em euros ou dólar, e como essas commodities  têm uma variação atrelada ao cenário internacional, os alimentos se tornam mais caros nos países que foram tornados ‘colônia'.”

Em outras palavras; o produtor de alimento no Brasil acaba enxergando mais vantagem na exportação, em detrimento do mercado local. E este cenário tem sido especialmente intenso nos últimos anos, quando o real desvalorizou-se frente a moedas que tem valores mais elevados no mercado internacional, como o dólar e euro. Segundo levantamento realizado em 2022 pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), o real perdeu quase 50% de seu valor e poder de compra em uma década ou nos últimos 10 anos.

Esse privilégio do mercado externo em detrimento do interno tem 2 consequências diretas nos insumos básicos: a escassez de alimentos e o aumento dos preços. Ramirez defende que o governo federal tenha um programa de silagem de grãos e cereais (estoques reguladores), como forma de criar um controle entre oferta e demanda que proteja o bolso do consumidor brasileiro, sobretudo no tocante à alimentação básica, que afeta diretamente as populações mais pobres.

Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o sociólogo Rogério Baptistini Mendes argumenta que "criar estoques reguladores de grãos básicos" é necessário para não "ficar refém de sazonalidades e externalidades" quanto ao clima ou economia.

"O grande desafio do [presidente] Lula será negociar com o setor agrário brasileiro e convencê-lo de que, embora seja importante manter as exportações, o fundamental é garantir o mínimo necessário para que a população possa se alimentar”, afirma o sociólogo Ramirez.

Brasil, América Latina e Caribe: Propostas de Segurança Alimentar

No relatório, as entidades apresentam propostas para os países afetados melhorarem a situação e garantirem maior segurança alimentar. Elas apontam a necessidade de programas de apoio a pequenos produtores e incentivo à agricultura familiar, com foco na produção de alimentos saudáveis, e ajudando esses agricultores a se conectarem com o sistema, inclusive privilegiando-os em eventuais compras realizadas por órgãos públicos.

"No curto prazo, em países como o Brasil, o incentivo à agricultura familiar é uma saída", concorda o sociólogo Mendes. "Mas deve ser acompanhada de políticas de médio e longo prazo, voltadas para a recuperação do rendimento dos salários das(os) brasileiras(os) e transformação sócio-cultural, com a criação de uma cultura de segurança alimentar e de saúde."

Também apresentou-se no documento a sugestão de que sejam criadas plataformas de monitoramento de preços e trocas de informações, proporcionando uma maior transparência da cadeia produtiva quanto aos alimentos. Por fim, as instituições cobram maior investimento em programas de alimentação escolar, com cardápios mais bem preparados, além de campanhas para o incentivo de alimentos saudáveis e políticas fiscais para reduzir o consumo de alimentos altamente processados, melhorando assim a saúde das(os) brasileiras(os) .

Segundo o relatório, a atual situação enfrentada pelo Brasil, América Latina e Caribe explica-se por uma combinação de fatores, que vão das sucessivas crises econômicas atravessadas nos últimos 15 anos à maneira como a guerra entre Rússia e Ucrânia afeta o setor agrícola, passando pelos impactos econômicos da pandemia de covid-19. As perdas agrícolas causadas pelo aquecimento global também estão no cerne do problema, de acordo com o documento.

No quadro abaixo, é possível ver os 10 alimentos que diariamente compõem a alimentação básica global e das(os) brasileiras(os), latina(o) americanas(as) e caribenhas(os):

A origens de 10 alimentos e/ou bebidas que hoje são globalizados

A maioria do que se coloca no prato diariamente procede de lugares espalhados pelo mundo. Um novo estudo do Centro Internacional para a Agricultura Tropical (CIAT) identificou a origem de alimentos considerados globais.

Foto:  picture-alliance/Ch. Mohr

Manga, verde, amarela ou rosa – e asiática

Ela é tropical e parece bem brasileira, mas originalmente surgiu no Sul da Ásia. A manga, assim como o coco, foi trazida para o Brasil com a colonização portuguesa e se adaptou bem ao clima. Ela faz parte da dieta de alimentos não nativos, que vem crescendo no mundo em consequência de preferências culturais, desenvolvimento econômico e urbanização, conforme comprovou o estudo do CIAT.

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Arroz para meio mundo

O arroz vem originalmente da China mas virou item básico da dieta de mais da metade da população mundial. A produção de cada quilo exige de 3 mil a 5 mil litros de água. Em alguns países produtores, a contaminação por arsênico dos lençóis freáticos é tão forte, que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) alertou para as consequências do consumo do cereal.

 

Trigo nosso de cada dia

O trigo já era cultivado há mais de 7 mil anos na região do Mar Mediterrâneo. Na forma de pão ou de outras massas, como o macarrão, é um dos alimentos mais importantes do mundo. Cultivado em enormes campos de monocultura, o cereal é também usado para alimentar animais . Os campeões do cultivo são China, Índia, Estados Unidos, Rússia e França.

 

Milho, dos astecas aos transgênicos

Originário do Centro do México, o milho hoje é plantado em todos os continentes. Apenas 15% da safra vai parar nos pratos, pois a maior parte serve como ração para animais. A indústria o aproveita, ainda, para fabricar xarope de glucose e produzir combustível. Nos Estados Unidos, cerca de 85% da produção é de milho transgênico, e outros países vão pelo mesmo caminho.

 

Batata, dos Andes para a Europa

As batatas consumidas hoje em dia são variações de espécies silvestres dos Andes, na América do Sul. Só há cerca de 300 anos o tubérculo passou a ser cultivado em grande escala na Europa, sendo fundamental na dieta de países como a Alemanha e Irlanda. Atualmente, porém, o cultivo da batata no continente está em declínio, enquanto cresce nos maiores centros de produção: China, Índia e Rússia.

 

Açúcar, de cana ou beterraba

A cana-de-açúcar vem do Oeste da Ásia, embora não se saiba exatamente de onde. Já há mais de 2.500 anos era usada para adoçar. O Brasil é atualmente o principal produtor, com grande parte da safra destinada ao bioetanol, também para exportação. A colheita é um trabalho árduo e, em geral, mal pago. O açúcar de cana é mais barato no mercado mundial do que o de beterraba, originário da Europa.

 

Banana, a preferida global

Cheia de vitaminas, a banana engorda menos do que reza sua fama. Fruta preferida em escala mundial, ela tem origem no Sudoeste Asiático. Hoje é cultivada principalmente na América Latina e Caribe, a custos tão baixos que saem mais baratas na Alemanha do que as maçãs cultivadas no próprio país. As condições para os trabalhadores rurais costumam ser ruins e há uso intensivo de pesticidas.

 

Café, prazer com reflexos sociais

Procedente da Etiópia, o café é a segunda bebida mais consumida e principal fonte de renda de cerca de 25 milhões de produtores no mundo. Contando-se as famílias, são 110 milhões de pessoas dependentes das flutuações do mercado mundial. Contudo vem ganhando espaço a negociação por cooperativas e empresas de comércio justo. Mais de 800 mil pequenos agricultores já aderiram a esse sistema.

 

Chá, relíquia colonialista

O chá vem da China e era servido aos imperadores. Tirando a água pura, é a bebida mais consumida do planeta: a cada segundo, mais de 15 mil xícaras são ingeridas. Considerado bebida nacional na Inglaterra, o chá ainda hoje é produzido principalmente nas antigas colônias do Império Britânico, como o Quênia, Índia e Sri Lanka. As condições do trabalho no campo são catastróficas.

 Cacau, presente dos deuses

Os astecas, na atual América Central, usavam os grãos de cacau como moeda e oferenda. Também preparavam com eles uma bebida que diziam vir dos deuses. Não é difícil de acreditar: hoje o chocolate é amado no mundo inteiro. Produzido numa estreita faixa próxima ao Equador, o cacau sofre flutuações de preço no mercado mundial que afetam duramente os pequenos agricultores.fotos

*Edison Veiga Repórter@edisonveiga

Publicado no Deutsche Welle: 18/01/202318

Fonte: https://www.dw.com/pt-br/am%C3%A9rica-latina-e-caribe-%C3%A9-onde-comer-saud%C3%A1vel-custa-mais-caro/a-64430142