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9.26.2013

A imprensa nos representa?

Cidadania
Um debate sobre os conceitos de opinião pública e legitimidade em um país no qual a diversidade de pensamento nunca prosperou
por Rodrigo Martins publicado 26/09/2013

Parecia uma carta de independência ou um ultimato antes da declaração de guerra. Na manhã da quarta-feira 18, o jornal Estado de Minas se arvorava no papel de representante legítimo dos 19 milhões de habitantes do estado. Em editorial de primeira página, o jornal investia contra o ministro Celso de Mello, que dali a horas decidiria o futuro de 11 condenados no processo do “mensalão”. “Nas ruas de Belo Horizonte, parte expressiva da população tende a considerar a aceitação dos embargos como decepcionante. Pior: um aceno à impunidade”, afirmava o texto. No dia seguinte, como tantos veículos de comunicação, o diário mineiro não esconderia a insatisfação com a “prorrogação” da análise do processo. O carioca O Globo iria além. “STF mantém a impunidade de mensaleiros até 2014”, cravou na capa. Em tom uníssono, a mídia lamentou o “divórcio” entre o Supremo Tribunal Federal e a “opinião pública”.
Mas qual opinião pública? “A do próprio jornal, oras”, avalia, sem rodeios, o sociólogo Venício de Lima, professor da UnB e dedicado aos estudos da mídia. “Desde meados do século passado, os principais grupos de mídia reivindicam a representação da opinião pública em detrimento dos canais institucionais da democracia representativa, como partidos, governos e Congresso. Isso porque a imprensa tem o papel de mediar a comunicação, fazer a ponte entre o público e as instâncias de debate político.” Com um problema, ressalta: “Ao mesmo tempo que fazem essa mediação, esses grupos são atores políticos, defensores de seus próprios interesses e dos de seus financiadores. Em nenhum lugar do mundo a mídia pode se colocar como porta-voz da opinião pública. Menos ainda no Brasil, marcado pela forte concentração dos meios de comunicação, um oligopólio de interesses muito particulares”.

A avaliação de Lima é compartilhada pela cientista política Vera Chaia, professora da PUC-SP. “A mídia não foi eleita, não tem representatividade, não pode falar em nome do conjunto da população. O que pode medir a opinião pública são as pesquisas, e mesmo assim é preciso olhar para elas com certa desconfiança, pois normalmente direcionam o entrevistado a se manifestar sobre as pautas predeterminadas pela mídia”, avalia a docente. “Ainda mais descabido é pressionar um juiz a decidir conforme o clamor popular. Um ministro da Suprema Corte tem de julgar com base na Constituição, na defesa do ordenamento jurídico.”
Marcus Figueiredo, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj, ressalta que o conceito de “opinião pública” está no singular não por acaso. “Ela só se manifesta quando há consenso na sociedade. É do interesse do conjunto da população, por exemplo, ter um sistema de transporte público bom e confiável. Não interessa se boa parte da população tem automóvel particular. A mobilidade urbana depende de sistemas de transporte coletivo”, afirma. “Portanto, podemos dizer que a opinião pública é favorável ao combate à corrupção, mas daí a dizer que é contra os embargos dos réus do ‘mensalão’ são outros quinhentos. O que estava em jogo ali não era esse único processo, e sim a validade de um recurso jurídico. Até porque, amanhã ou depois, o dono desse jornal que fala em nome da opinião pública pode estar no banco dos réus e sentir que o seu direito à ampla defesa foi cerceado pelo STF lá atrás.”
Para tentar assumir o posto de legítima representante da opinião pública, a mídia costuma desqualificar as demais instâncias políticas da democracia, sustenta o historiador Aloysio Castelo de Carvalho, professor da UFF. “Os jornais se apresentam como uma voz mais autêntica por não ter envolvimento direto no processo eleitoral, e exploram o desgaste que existe entre os políticos eleitos e a população representada. Em países com democracia mais consolidada, há um equilíbrio maior nessa relação entre a mídia e as instituições políticas. Uma responde à outra, sobretudo nos casos de desvio de conduta. Aqui, não. Além disso, não há uma tradição de pluralidade de pensamento na mídia brasileira. Boa parte da população tem a sua voz ignorada pelos jornais.”
Autor de um livro sobre o tema, Carvalho cita o exemplo da articulação de dezenas de emissoras de rádio, dos Diários Associados e dos jornais cariocas O Globo e Jornal do Brasil pela deposição do presidente João Goulart. Criada em 1963, a cinicamente autointitulada “Rede da Democracia” se colocava como porta-voz da opinião pública e exigia a intervenção dos militares contra a suposta ameaça comunista no País. “Praticamente, não havia oposição nos meios de comunicação a esse projeto, que resultou no golpe de 1964 e em uma ditadura de 21 anos.”
O alardeado “divórcio” entre o Judiciário e a opinião pública é outra invenção, sustenta Fernando Filgueiras, professor de Ciência Política da UFMG e coordenador do Centro de Referência do Interesse Público. “Nunca existiu esse casamento, até porque a população nutre profunda desconfiança em relação ao Judiciário.” Em artigo publicado na revista acadêmica Brazilian Political Science Review, ele apresenta uma pesquisa feita em 2012 com mais de 1,2 mil entrevistados em Belo Horizonte, Goiânia, Porto Alegre e Recife. A desconfiança atinge todas as instituições: Presidência da República, Congresso Nacional, forças policiais... Mas também o Judiciário, visto com suspeição por 48,7%. As razões são claras: 61,4% não acreditam que os cidadãos são tratados de forma igual, e 51,7% avaliam que os juízes tomam decisões influenciadas por políticos, empresários e outros interesses.
http://www.cartacapital.com.br/revista/767/a-midia-nos-representa-7501.html

Decisão do STF contra rádios comunitárias é contra liberdade de imprensa

Defensoria pública da União anistia comunicador processado pelo STF, por levar ao ar rádio de baixa potência, em Manaus (AM), sem autorização da Anatel.
por Intervozes Bruno Marinoni*  publicado 25/09/2013 
Santo Antônio do Matupi (AM)
Vista aérea de Santo Antônio do Matupi (Foto: Santo Antônio do Matupi / Facebook)

Na pequena comunidade de Santo Antônio do Matupi, no município de Manicoré, distante 332 km de Manaus (AM), uma comunidade resolveu instalar uma rádio de baixa potência (20 watts) para, segundo acórdão publicado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), “prestar serviços comunitários”. Não esperou, porém, pela devida autorização da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Resultado: o Ministério Público entrou com uma ação criminal contra o diretor da rádio, que passou, assim, a correr o risco de cumprir pena de dois a quatro anos de detenção e de ter que pagar uma multa de R$ 10 mil.
A Defensoria Pública da União foi acionada e conseguiu, conforme decisão publicada pelo STF no mês de agosto, garantir a anistia do diretor da rádio amazonense, apelando para um princípio que pode ser, ironicamente, um trunfo para comunicadores: a suposta “insignificância”, já que, por tomar o ato como uma “conduta minimamente ofensiva do agente, a ausência de risco social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica”, a Justiça pode considerar descabida a instauração de um processo criminal.
Ora, não é exatamente o que queremos, pois defendemos que as descriminalização das rádios comunitárias e livres decorra da afirmação do direito à comunicação. Não obstante, se trata de uma importante “redução de danos”. Confrontados por um cenário em que se observa uma criminalização generalizada dos movimentos populares e rádios comunitárias, muito temos que comemorar a cada tentativa vencida de incriminar um comunicador. Além disso, a decisão sobre o caso específico da rádio amazonense (que, pela sua potência, não deve ser captada além do raio de 3 km) foi tomada por consenso no STF, apontando no sentido da consolidação de uma possível jurisprudência favorável à luta do movimento nacional de rádios comunitárias.
Comparando-se com decisões anteriores, pode-se observar mudanças no entendimento do Judiciário. Em fevereiro deste ano, foi publicada a decisão, por maioria do STF, de cassar a ação penal contra um diretor de rádio comunitária em Camaçari (BA), que operava com um transmissor de 32,5 watts. Em dezembro de 2010, aconteceu o mesmo com dois diretores de uma rádio gaúcha de 25 watts de potência que operava em Inhacorá (RS), mas o quadro foi de empate, seguido do deferimento da posição do relator Ricardo Lewandowsky a favor do habeas corpus. Nos três casos mencionados, o “princípio da insignificância” foi mobilizado para confrontar o absurdo artigo 183 da Lei Geral de Telecomunicações, que define o status de crime para “o desenvolvimento clandestino atividades de telecomunicação”. Segundo a Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc), somente o Brasil e a Guatemala tratam com processos criminais a emissão não autorizada de sinal radiofônico.
Por outro lado, a resistência à descriminalização no Legislativo, sob pressão do lobby da radiodifusão, tem sido intensa. No fim do ano passado, por exemplo, o Senado rejeitou uma proposta do deputado Assis Carvalho (PT/PI) de conceder anistia a representantes legais de fundações e associações sem fins lucrativos que operem serviço de radiodifusão abaixo de 100 watts. O texto já havia sido aprovado em uma primeira discussão na Câmara dos Deputados. O Executivo, por meio da Anatel e do Ministério das Comunicações, também opera uma intensa criminalização dos comunicadores populares, enquanto elabora planos de “regularização” da radiodifusão comercial clandestina. Já citamos, neste blog, em artigo anterior, o caso de Jerry Oliveira, militante do Movimento Nacional de Rádios Comunitárias, que enfrenta um processo criminal por resistir aos desmandos dos agentes da fiscalização federal e da polícia.
Embora, no caso da rádio comunitária amazonense, a Justiça tenha recusado a aplicação da ação criminal, a rádio segue impedida de operar. A proibição, porém, é da competência específica da justiça administrativa e civil, não implicando nesse caso os desdobramentos de um processo que considera crime o descumprimento da norma. Ainda encontramos um obstáculo à efetivação do direito à comunicação aí. Mas a decisão abre brechas para avançarmos na luta pela garantia desse direito.
* Bruno Marinoni é repórter do Observatório do Direito à Comunicação e doutor em Sociologia pela UFPE
http://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/decisao-do-stf-e-instrumento-contra-criminalizacao-de-radios-comunitarias-184.html/view