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6.10.2019

Algumas considerações sobre o dossiê do The Intercept


Então há possibilidade de se chegar a instâncias superiores que participavam do jogo – dos desembargadores do TRF4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), o Ministro Felix Fischer, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e algum Ministro do Supremo Tribunal Federal, em articulações individuais

por  Leandro Fortes no portal GGN – Sociedade e Lutas Populares Contra a Corrupção no Judiciário

 É bastante provável que a denúncia de Sérgio Moro, de invasão recente de seu celular por hackers, tenha sido uma armação dele próprio.
Há cerca de duas semanas, o repórter Marcelo Auler já tinha ouvido boatos sobre um mega vazamento dos celulares dos membros da Lava Jato. Os boatos falavam de pânico nas hostes da operaçao. A denúncia de Moro, dias antes da publicação do Intercept, inclusive levantando argumentos de “segurança nacional”, pareceu muito mais uma jogada desesperada para ligar o caso a hackers e impedir sua publicação. Evidentemente que o autor de um vazamento ilegal da conversa de uma presidente da República não teria como invocar argumentos contra o vazamento atual. Por isso a lógica da “segurança nacional” não colou.
  1. Instâncias superiores – STF, STJ e TRF4
O material expõe apenas o conteúdo das conversas em grupo.  Chama atenção, no entanto, um diálogo informal entre Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, sugerindo que o dossiê traz também conversas entre duas pessoas.
Então há possibilidade de se chegar a instâncias superiores que participavam do jogo – dos desembargadores do TRF4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), o Ministro Felix Fischer, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e algum Ministro do Supremo Tribunal Federal, em articulações individuais.
Aí se chegaria às armações para impedir o habeas corpus que tiraria Lula da cadeia, as jogadas processuais do TRF4, garantindo a unanimidade nos julgamentos, e até os acertos entre o ainda juiz Sérgio Moro e o grupo de Bolsonaro.
  1. As delações premiadas e Sérgio Moro
Outro capítulo cabeludo foram os acertos em torno do milionário mercado das delações premiadas. Uma bomba seria a reconstituição das conversas sobre as tratativas dos procuradores de buscar acordo com Tacla Duran, intermediadas pelo primeiro amigo de Sérgio Moro, Carlos Zucolotto. Ou as conversas envolvendo o advogado Marlus Arns, de estreitas relações com Rosângela Moro, que herdou as ações de Beatriz Cattapreta.
  1. As jogadas políticas para soltar Lula
Há uma série de episódio óbvios: a manobra para impedir que Lula fosse solto por um HC; o vazamento do vídeo de Antonio Palocci na véspera das eleições; os acertos entre Moro e Bolsonaro para assumir o Ministério. E há a capa da Veja, publicada na véspera das eleições de 2014, que quase inverte o resultado.
  1. O contra-ataque da imprensa comercial
Nos próximos dias, a estratégia dos aliados de Sérgio Moro – incluindo Globo e Estadao – será insistir na apuração do autor dos vazamentos. É quase certo que tentem incluir as investigações do Supremo Tribunal Federal (STF) nas suspeitas.
É por aí que tentarão construir a contra-narrativa, para reduzir os impactos das revelações do The Intercept.
De qualquer modo, sobram duas dúvidas. A primeira, sobre como o sistema de Jutiça irá tratar de um caso exposto tão amplamente, de manipulação de investigações. A segunda, se Moro ainda é considerado servível pelo sistema.
Provavelmente, o que restará dele serão as lembranças de um personagem provinciano, alçado ao topo do mundo, mas que jamais passou de um mero instrumento de manipulação política, que se usa, se joga fora.
https://jornalggn.com.br/analise/algumas-consideracoes-sobre-o-dossie-do-the-intercept-por-luis-nassif/

A Operação Lava-Jato desmascarada


No que diz respeito à promiscuidade da relação entre o ministério público e o juiz, revelada pelo vazamento de suas comunicações, passou da hora de repensar a proximidade entre acusação e magistratura no Brasil

por Eugênio Aragão*, no blog Contexto Livre – Sociedade e Lutas Populares Contra a Corrupção no Judiciário Brasileiro

Foto no blog Contexto Livre

A mim não surpreendeu o teor das mensagens trocadas por personagens da famigerada Operação Lava-Jato e o juiz de piso Sérgio Moro, por mais que choca outsiders. Essas mensagens mostram claramente a promiscuidade que prevalece na fusão das atividades de investigar, acusar e julgar nos processos dessa operação. Temos ali promotores que se portam feito meganhas é um juiz que é acusador, todos articulados num projeto político de “limpar o Congresso” e de impedir que o PT fosse vitorioso nas eleições presidenciais de 2018.

Agora que o caldo derramou e ficou provado o que muita gente desconfiava – a persecução seletiva de atores políticos – os promotores desesperados se apressam em se fazer de vítimas de “uma ação criminosa” de invasão de seus celulares usados “para comunicação privada” e “no interesse do trabalho”. Mostram revolta contra o que denominam “violação da esfera privada”.

Não vou por ora examinar o conteúdo vazado, por si só de extrema gravidade no que se refere à conduta de juiz e promotores. Vou me ater, aqui, a duas questões apenas: a suposta invasão “criminosa” de seus dispositivos de comunicação e a confusão entre ações de investigar, acusar e julgar, no caso do triplex do Guarujá.

Um aspecto parece ter passado despercebido no noticiário sobre o vazamento: os celulares usados por Moro e Dallagnol eram de serviço. Juízes e membros do ministério público têm uma mordomia pouco divulgada. Todos recebem, à custa do erário, um iPhone, um iPad e/ou um laptop para uso no exercício de suas funções. Recebem, também, uma cota mensal de mais ou menos quatrocentos reais em chamadas e transferência de dados. É prática geral entre esses atores usar o celular de serviço para fins privados também, dentro dessa cota. Somente chamadas de roaming internacional precisam ser justificadas.

Falar em direito à privacidade em dispositivo de comunicação de serviço é impróprio. O patrão tem direito de saber do uso que dele é feito por seus empregados. No caso do servidor público, o patrão somos nós, os que, com os impostos que pagamos, custeiam mais essa sinecura. Somente segredos de estado podem nos ser subtraídos do conhecimento. Mas, atos ilícitos, como a conspiração política contra a soberania popular, a visar o impedimento da vitória de um dos candidatos no pleito presidencial, seguramente não podem se revestir dessa qualidade secretiva.

Há tempos tenho chamado a atenção de colegas para o fato de que a divulgação de conteúdos de conversas da lista @membros não configura violação de privacidade, a uma porque tal lista é hospedada em servidor institucional; a outra porque essas conversas tratam de matéria de interesse público, não sendo lícito a procuradores portarem-se, nesse âmbito, de forma conspirativa. A reação da turba virtual, diante desse aviso, sempre foi histriônica. Alguns até avisam em suas mensagens que a divulgação de seu conteúdo poderia dar margem à violação de sigilo funcional. Só rindo mesmo: como esse povo gosta de se fazer de importante! Falam um monte de asneiras sobre atores públicos e acham que podem se escudar na lei para se tornarem inatacáveis.

No celular funcional não é diferente. Seu uso deveria ser restrito a atos de serviço, não se estendendo à prática de ilícitos ou de comunicação pessoal. Alguns desses atos de serviço até podem se revestir de natureza confidencial, apesar de não ser muito inteligente praticá-los através de dispositivo sujeito à invasão e muito menos conservá-los no buffer por mais de dois anos! Quem assim procede está conscientemente arriscando o vazamento de sua comunicação reservada e, com isso, talvez seja ele ou ela que devesse ser responsabilizado por dolo eventual na publicização de comunicação funcional confidencial.

Não há, pois, legitimidade no argumento da vitimização dos procuradores e do juiz de piso pelo ataque a seus celulares. Mas, além disso, o chororô da nota do ministério público em decorrência de publicação, pelo sítio do Intercept, peca contra o princípio do “ne venire contra factum proprium” e, assim, é mais uma prova de falta de boa fé da turma da Operação Lava-Jato. É que, quando criminosamente tornaram público diálogo telefônico entre a presidenta Dilma e o ex-presidente Lula, às vésperas da posse deste no cargo de ministro-chefe da Casa Civil, procuradores e magistrado – principalmente este último – se exculparam no interesse público do conteúdo para mandar a lei às favas.

E as provas sobre conspirações de Moro e Dallagnol contra o poder legislativo que queriam “limpar” ou contra as eleições presidenciais que queriam conduzir de forma a que não se elegesse Haddad, não são elas, por acaso, de interesse público? Ainda mais quando encontradas em celulares funcionais?

Não há desculpa. Pode até ser que, na prática recorrente dos tribunais, de blindarem Sérgio Moro, digam que as conversas vazadas não servem para condenar juiz e promotores na esfera penal, mas, seguramente, elas bastam para colocar em xeque a persecução penal contra Lula e a legitimidade do pleito presidencial de 2018.

No que diz respeito à promiscuidade da relação entre o ministério público e o juiz, revelada pelo vazamento de suas comunicações, passou da hora de repensar a proximidade entre acusação e magistratura no Brasil.

Quando atuava como subprocurador-geral da república junto ao STJ e, até mesmo antes, quando atuava como procurador regional no TRF da 1ª Região, incomodava-me profundamente o nosso papel, do MPF, nas sessões, sentados ao lado do presidente, com ele podendo até cochichar, a depender da empatia recíproca. Enquanto o advogado fazia sua sofrida sustentação oral da tribuna, não raros eram comentários auriculares entre juiz e procurador. Depois, o procurador era convidado a saborear o lanchinho reservado dos magistrados, em que os casos eram frequentemente comentados. Já os advogados ficavam do lado de fora, impedidos de participar dessa festa do céu. Produzia-se, assim, a mais descarada assimetria entre a defesa e a acusação.

O argumento dos colegas era de que o ministério público ali não era parte e, sim, fiscal da lei. Façam-me rir! Do ponto de vista estritamente dogmático, essa cisão entre os papéis do ministério público é ilusória, já que o órgão se rege pelos princípios institucionais da unidade e da indivisibilidade (art. 127 da Constituição). O ministério público é sempre parte e custos legis concomitantemente. Do ponto de vista prático, são pouquíssimos os procuradores que se imbuem do papel de fiscal imparcial. O punitivismo há muito tempo transformou a grande maioria em ferrabrás mecanizada. Não raro fui criticado por meus pares de dar parecer favorável à concessão de ordem de habeas corpus contra atuação de colega em primeiro grau! “Como assim? Ministério público acolhendo ordem de habeas corpus? Não pode!!!”.

Nesse contexto, é preciso barrar essa proximidade entre promotores e juízes, tirando os primeiros do pódio do magistrado, para colocá-los no nível das partes. Nos tribunais, está na hora de tirá-los do lado do presidente. Devem ocupar a tribuna para suas sustentações e voltar a seus gabinetes depois dessa tarefa, para dar andamento aos processos sob sua responsabilidade. Não faz sentido nenhum, em plena era do processo acusatório, dar destaque ao acusador, em detrimento da paridade com os advogados.

Deltan Dallagnol mostrou o quanto é deletério, para o devido processo legal e para o julgamento justo, a confraria com Sérgio Moro. Ficavam promotor e juiz trocando figurinha sem participação da defesa. O juiz se dava o direito de palpitar na estratégia investigativa sobre crimes que depois viria a julgar e o promotor deixava o juiz “à vontade” para indeferir seus pleitos, se não combinasse com a estratégia comum. Um escândalo, tout court.

Esperam-se consequências dessas revelações, pois, muito mais do que a profunda injustiça da prisão de Lula por uma condenação “arreglada” entre magistrado e acusação, estamos diante de evidências de manipulação eleitoral. Ou o país tira lições dessa atuação criminosa de atores judiciais, ou pode sepultar sua democracia representativa, porque já não haverá mais respeito pelas instituições que devem protegê-la.
*Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça
http://www.contextolivre.com.br/2019/06/a-operacao-lava-jato-desmascarada.html