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12.12.2013

Nelson Mandela foi Banalizado pela Imprensa Mundial

SIMON JENKINS
Jornalista do jornal The Guardian

A publicidade da morte e do funeral de Nelson Mandela tornou-se absurda. Mandela foi um líder político africano com qualidades que foram apropriadas para um momento crucial nos assuntos de seu país. Foi apenas isso.
No entanto, sua reputação foi parar entre ladrões e cínicos. Sequestrado por políticos e celebridades que vão de Barack Obama a Naomi Campbell e Joseph Blatter, foi preciso endeusá-lo para que outros pudessem ser iluminados por sua glória.
Nesse processo, ele foi desumanizado. Ouvimos falar tanto sobre a banalidade do mal. Às vezes deveríamos perceber a banalidade do bem.
Parte disso se deve à mecânica grosseira da mídia. Milhões de dólares foram desembolsados nos preparativos para a morte de Mandela. Profissionais foram despachados, quartos de hotel foram reservados, cabanas foram alugadas em vilarejos do Transkei.
Teria sido possível construir hospitais com os valores que devem ter sido gastos. A mídia inteira enlouqueceu.                                                               
Na semana passada vi um apresentador da BBC, gemendo de tédio, pedir a um convidado que comparasse Mandela a Jesus. Consta que a emissora já teria recebido mais de mil queixas sobre a cobertura excessiva. Estaria ela se preparando para uma ressurreição de Mandela?
Mais séria é a obrigação que o culto ao evento de mídia deveria ter com a história.
Quando eu visitava a África do Sul e escrevia sobre o país durante os últimos anos do governo branco, na década de 1980, tinha consciência aguda de que a grande luta não se dava tanto entre os sul-africanos brancos e o CNA de Mandela, cujos líderes estavam na prisão ou no exílio, mas dentro do próprio campo dos africâneres que mantinham o poder branco na África do Sul.
Não era uma rebelião contra uma potência estrangeira. Era um conflito potencial entre uma maioria impotente (negros) e uma minoria potente (brancos), no qual a probabilidade de a última ceder diante da primeira parecia ser mínima --e desnecessária no curto prazo.
  Participava dessa luta o então primeiro-ministro, F.W. de Klerk. A compreensão de que seu grupo deveria ceder o poder a um governo negro foi um convencimento moral.
Os africânderes capitularam não porque alguma força poderosa (como as sanções da ONU) os tivesse esmagado, nem devido à mais importante queda da Rodésia e do império português que apoiavam os brancos. Seus padres e intelectuais lhes disseram que o apartheid tinha perdido a discussão.
Os africâneres tinham perdido a vontade política [de continuar com o apartheid]. O apartheid tinha sido "um erro terrível", disse De Klerk. Mesmo assim, a tarefa de passar para um governo da maioria negra era hercúlea, e o êxito estava longe de garantido.
De Klerk poderia ter levado a batalha adiante por mais uma década, com cada vez mais sangue derramado. Mas a revolução tribal de Mandela teve êxito, como foi relatado pelo historiador do nacionalismo africânder Hermann Giliomee.
Mandela foi crucial para a tarefa de De Klerk. Ele era um africano que conhecia muito bem seu país, alguém que articulou as aspirações de seu povo, um reconciliador, alguém que perdoou males passados da ditadura branca.
Mandela parecia encarnar a travessia da divisão racial, com isso viabilizando a tarefa impossível a De Klerk. Lançando olhares nervosos para Desmond Tutu e outros, os sul-africanos brancos juravam que Mandela era o único líder negro que os fazia sentir-se em segurança.
A África do Sul em 1993 não era nenhum paraíso de férias pós-colonial. Era uma barganha entre um grupo de tribos e outro grupo. Apesar de todas as crueldades da luta armada, derramou-se menos sangue que se esperava, graças a sabedoria de Mandela.
A África do Sul não foi um Paquistão, um Sri Lanka ou um Congo. A ascensão do governo da maioria no país foi um dos momentos mais nobres da história africana.

Mas a história é uma disciplina, não uma fé. O mundo pode ter sede de um "ícone do tipo de Mandela", mas com que finalidade? Que veículos sérios de mídia discutem Mandela ao lado de Gandhi e Jesus de Nazaré é pura e simples perda de tempo.
Ele foi Nelson Mandela e ponto final. Depois de assistirem a seu ex-presidente ser banhado em virtude e ter sua glória extraída para ungir uma multidão de celebridades mundiais, os sul-africanos deveriam repatriar sua reputação.
Mandela lhes prestou um serviço ímpar por alguns anos breves na década de 1990, e, se lhes convém reverenciá-lo como símbolo de unidade, bondade e paz, que assim seja. Isso é questão deles.
Mas a característica sul-africana que eu me recordo de Mandela possuir em plena medida não era a santidade --era um senso de ironia temperada. Duvido que neste momento ele esteja usando o endeusamento que a mídia lhe forjou. Aposto que ele está dando gargalhadas.
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/12/1384536-opiniao-nelson-mandela-nao-foi-

um-santo.shtml

  • Nelson Rolihlahla Mandela foi um advogado, líder rebelde e presidente da África do Sul de 1994 a 1999, considerado como o mais importante líder da África Negra, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1993, e Pai da Pátria da moderna nação sul-africana.
  • Falecimento: 5 de dezembro de 2013

  • Prêmios: Nobel da Paz, Bharat Ratna, Pessoa do Ano
  • Cônjuge: Graça Machel (de 1998 a 2013)