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1.27.2016

Falta ética política no Brasil moderno

  • Não há altruísmo nas eleições

  • Para jurista, as novas regras do pleito, que acabam com o financiamento empresarial, libertam os candidatos do poder econômico
Por Rodrigo Martins para revista Carta Capital - Sociedade e Política Popular com Justiça

Foto: Pedro Ladeira/FolhaPress
Marcello-Lavenere
O jurista festeja o fim das doações empresariais e aponta as falácias do impeachment contra a presidenta
Um dos principais articuladores da Coalizão pela Reforma Política Democrática, a reunir mais de cem entidades da sociedade civil, OAB e CNBB na dianteira, Marcello Lavenère considera a proibição do financiamento empresarial indispensável para moralizar a política brasileira. “Essas doações raramente representam um gesto altruísta. Trata-se de um investimento, feito por quem tem expectativa de disputar licitações, fechar contratos com o governo ou influenciar a atuação de parlamentares.”
Autor do pedido de impeachment de Fernando Collor, em 1992, o jurista avalia que a situação de Dilma Rousseff é radicalmente distinta, além de defender a moderação do Supremo Tribunal Federal no processo. Confira, a seguir, a entrevista concedida a CartaCapital.
CartaCapital: O fim do financiamento empresarial é um remédio eficaz contra a corrupção?
Marcello Lavenère: Sem dúvida. É uma antiga reivindicação da sociedade civil. Desde o vereador de um pequeno município até o presidente da República, todos dependiam da ajuda financeira de grandes ou médias empresas, mas essas doações raramente representam um gesto altruísta. Trata-se de um investimento, feito por quem tem expectativa de disputar licitações, fechar contratos com o governo ou influenciar a atuação de parlamentares. São inúmeras as formas de retribuição aos mecenas.
CC: No Senado tramita uma Proposta de Emenda à Constituição que legaliza essas doações.
ML: Não acredito que vai prosperar. O senador Raimundo Lira apresentou um relatório pela rejeição dessa PEC. Caso ela viesse a ser aprovada, ainda haveria a possibilidade de questionar o STF se a medida não agride as cláusulas pétreas da Constituição. De toda forma, vamos manter a mobilização no Congresso para sepultar o financiamento empresarial. O fim dessas contribuições pode trazer maior legitimidade e moralidade para as eleições. Não temos a ilusão de que tal medida, isoladamente, salvará a política de todos os males. Estamos, porém, apertando o cerco.
CC: Os críticos sustentam que a proibição é inócua, só tende a estimular a prática de caixa 2.
ML: Boa parte das críticas emana de quem recebia doações de campanha ou de quem as ofertava. Agora, eles apelam para uma argumentação sofista. O caixa 2 sempre foi proibido e deve ser combatido com maior rigor na fiscalização. Da mesma forma, se houver uma avalanche de
doações de pessoas muito ricas, de forma a desequilibrar as disputas, podemos limitá-las no futuro. A Coalizão da Reforma Política havia proposto um teto para as doações individuais, no valor de um salário mínimo. Sugerimos ainda que as contribuições privadas não excedessem o limite de 40% dos gastos da campanha. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, recusou-se, porém, a colocar em votação nosso projeto.
CC: Em dezembro, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se sobre o rito do impeachment contra Dilma Rousseff. Era preciso intervir na questão?
ML: Isso também ocorreu em 1992, após o então presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro, acolher o pedido de impeachment contra Fernando Collor. À época, o presidente do STF, Sydney Sanches, convidou o ministro Celso de Mello para redigir uma proposta de regulamento. Era uma peça bastante meticulosa. Num primeiro momento, ficamos entristecidos, imaginávamos que aquele roteiro poderia atrasar demais o julgamento no Congresso. Após o desfecho, fizemos questão de agradecer aos ministros pelo trabalho, sem o qual o processo talvez não teria transcorrido de maneira tão tranquila, com o devido processo legal. A decisão do STF no fim de 2015 caminha na mesma direção, de colocar ordem na casa. Deixou claro para a Câmara dos Deputados, para a comunidade jurídica e para a sociedade em geral, que um processo de impeachment não pode ser manipulado por apenas uma pessoa, como pretendia Eduardo Cunha.
CC: A decisão colocou um freio às maquinações do presidente da Câmara?
ML: Espero que sim, mas ele tem uma mente bastante fértil para tramar as malignidades que pratica. Quando tudo parece certo, surge mais uma manobra ardilosa, seja para influir no impeachment, seja para se proteger das acusações que pesam contra ele. Como foi ostensivamente noticiado, Cunha barganhou com a oposição, depois tentou negociar com os partidos da base do governo. No mesmo dia no qual a bancada do PT anunciou que não iria salvá-lo no Conselho de Ética da Câmara, acolheu a peça contra Dilma. Esse processo de impeachment nasce, portanto, de uma manobra espúria, revanchista. A decisão do STF veio em momento oportuno.
CC: Podemos comparar a situação de Dilma com a de Fernando Collor?
ML: É o mesmo instrumento previsto na Constituição, mas as circunstâncias são radicalmente distintas. Collor foi acusado de receber propina, de ter contas pessoais abastecidas com recursos ilícitos coletados por PC Farias, tesoureiro de sua campanha. Uma CPI mista, integrada por deputados e senadores, investigou o caso por meses. O relatório do senador Amir Lando foi aprovado por aclamação. À época, houve reação espontânea da sociedade brasileira, representada pelo movimento Ética na Política, que não tinha cor partidária, ideológica ou religiosa. Não era uma manifestação só de partidos de oposição, de um único segmento da sociedade. A CNBB, a comunidade judaica, representada pelo rabino Henry Sobel, o Conselho Nacional das Igrejas Cristãs, a UNE, a CUT, a OAB, todos estavam unidos pelo impeachment de Collor. Boa parte dessas entidades manifestou-se contra o processo movido contra Dilma.
CC: E por quê?
ML: Não há base legal. “Pedalada fiscal” é uma irregularidade contábil, praticada por vários governantes que precederam Dilma, inclusive pelo vice, Michel Temer, no exercício da Presidência, nas ocasiões em que ela viajou. Agora passa a ser tratada como crime de lesa-majestade. É um mero pretexto usado pela oposição para sacá-la do poder. O impeachment é muito importante para ser usado de maneira irresponsável e ilegítima.
http://www.cartacapital.com.br/revista/884/201cnao-ha-altruismo-nas-eleicoes201d

A Funai e a farsa da política dos "índios isolados"

  • Antropóloga Barbara Arisi relata o conflito no Vale do Javari (AM) e critica a falta de diálogo entre o governo e os povos indígenas da região
Por Felipe Milanez para revista Carta Capital - Sociedade e Política Indiginista Injusta
Foto: Associação Indígena Matís
Índios MatisApós conflito com "isolados", índios Matis ocupam sede da Funai em Atalaia do Norte (AM) e cobram diálogo com o órgão federal
Barbara Arisi é antropóloga, professora de etnologia indígena da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e trabalha há uma década junto aos Matis, povo que vive no Vale do Javari, no Amazonas.
Sua dissertação sobre a relação dos Matis com os indígenas em isolamento voluntário Korubo é referência para se pensar a política pública sobre os “índios isolados” e o respeito aos povos indígenas (pode ser acessada no site repositório da UFSC).
No ano passado, os Matis contataram um grupo Korubo classificado como “isolado” pela Funai — uma classificação que, como mostra o trabalho de Arisi, tem um sentido diferente para os Matis.
Essa aproximação diplomática entre os povos que possuem diferentes relações com o Estado brasileiro foi envolta de conflitos e tensões, intensificadas nos últimos anos e resultando em mortes de ambos os lados.
Os Matis, que nesse momento ocupam a sede da Funai no município amazonense de Atalaia do Norte, cobram diálogo com o órgão, exigem participar do processo de contato com seus vizinhos e se dizem ignorados pela atual política governamental.
Abaixo, artigo escrito por Arisi para a coluna, um texto fundamental para se avançar no debate sobre a política indigenista do órgão e o respeito aos direitos dos povos indígenas.
Índios KoruboÍndios Matis reivindicam participação nas decisões a respeito dos Korubos, povo em isolamento voluntário que entrou em contato com a etnia e a Funai em 2014
Funai e sua política de índios ignorados
Por Bárbara Arisi
A Funai costuma se congratular por realizar uma política indigenista inovadora, propagandeada como sendo única no mundo, destinada a proteger os povos indígenas que vivem em isolamento (ou isolamento voluntário como o movimento indígena prefere referi-los).
A verdade é, porém, que essa política não tem sido efetiva para proteger os "isolados". Mas tem sido eficaz em ignorá-los e jogar o problema de sua sobrevivência e autonomia para debaixo do tapete.
Os povos indígenas que vivem em isolamento estão em situação de extrema vulnerabilidade e risco, numa floresta que vem sendo devastada por grandes projetos financiados com dinheiro público.
No caso do Vale do Javari, no Amazonas, isso ocorre tanto no lado brasileiro, quanto no peruano da fronteira, além da exposição de ambos a incursões do narcotráfico. Os governos dos dois países não têm políticas de defesa dos interesses indígenas, embora sejam considerados “de esquerda”.
O governo brasileiro tem apenas promovido, de forma assistencialista, mais dependência por parte dos povos indígenas em relação ao Estado. Além disso, os governos de Dilma Rousseff e de Evo Morales, na Bolívia, investem no que vendem como "desenvolvimento" da região às custas da extração de madeira e petróleo, o que vem causando desmatamento, especialmente acelerado no Peru de Ollanta Humala.
No Vale do Javari, rio que divide Peru e Brasil, está localizada a segunda maior terra indígena brasileira, com 8,5 milhões de hectares, próxima à tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia.
Trata-se de uma vasta área de floresta bastante preservada onde vivem cerca de 5.750 índios que têm contato com os demais brasileiros e também onde se encontra a maior população de índios considerados "isolados" do mundo.
Nesse cenário de extrema beleza natural – onde foram gravados diversos documentários para canais internacionais como National Geographic e BBC – vem sendo travada uma guerra entre dois povos que possuem uma longa história em comum: os Matis e os Korubo.
Ambos os povos são conhecidos internacionalmente e popularizados, graças aos diversos filmes e reportagens feitos a seu respeito.
Os Matis mantém contato com o governo brasileiro desde 1976, quando a Funai auxiliou a Petrobrás a realizar perfurações para avaliar a existência (ou não) de petróleo na região. A frente de atração na época foi de tal forma improvisada que sequer o motor do peque-peque funcionava. Nessa ocasião, estima-se que dois terços da população matis tenha morrido como decorrência do contato.
Em 1996, os Matis aceitaram participar de outra frente de atração, dessa vez destinada a contatar os índios Korubo que viviam próximos ao local onde a Funai planejava instalar um frente de vigilância da terra indígena na confluência dos rios Ituí e Itacoaí, para evitar invasão de caçadores e madeireiros.
Hoje, os Matis e outros povos indígenas trabalham em situação de penúria administrativa de recursos e precariedade, junto a outros servidores do governo brasileiro, nessa frente de proteção, onde também é realizado o atendimento de saúde para o pequeno grupo de índios Korubo contatado em 1996.
O ano de 2016 começou intenso no Vale do Javari. Nessa última semana, o movimento indígena ocupou a sede da Funai no município de Atalaia do Norte e exigiu a renúncia do responsável local, a fim de conseguir o diálogo entre o órgão federal e os índios.
Como é costume, os servidores que estão na ponta do atendimento sofrem as consequências de uma política pública mal planejada e gerida a partir de Brasília, distante das bases.
Os índios Matis querem ser ouvidos pela Funai, sobretudo porque dois homens de seu povo foram mortos pelos isolados em dezembro de 2014, possivelmente ocasionando a morte de outros tantos Korubo que ainda viviam em isolamento.
É hora da política de ignorar os índios voltar a ser aquilo que foi conquistado pelos sertanistas e servidores da Funai em 1987. Uma política que não ignora os índios, mas protege os povos em isolamento. Os Matis querem participar das decisões sobre os vizinhos Korubo, de quem são também parentes.
O movimento indígena pede agora que exista um diálogo efetivo dos servidores de Brasília e das coordenações locais com o movimento indígena. O diálogo parece ser o primeiro passo para o fim de uma política de “índios ignorados”.
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-funai-e-a-farsa-da-politica-dos-indios-isolados

Candidato Bernie Sanders democrata nos EUA e o caminho para uma esquerda popular

  • Arrancada de candidato democrata revela: é possível vencer preconceitos da mídia com propostas concretas, em vez de discurso doutrinário, exemplo a ser seguido pela esquerda brasileira
Por Cauê Seignemartin Ameni para revista Carta Capital - Sociedade e Política para a População

Foto: Gage Skidmore
Bernie SandersBernie Sanders disputa com Hillary Clinton a candidatura Democrata à presidência dos EUA. Na foto, o atual senador discursa em Phoenix, no Arizona.
Diminui a cada dia, nos EUA, a distância que separava a candidata oligárquica do Partido Democrata à Casa Branca, Hillary Clinton, do outsider à sua esquerda, o senador Bernie Sanders.
O próprio New York Times reconhece: em um mês, Hillary viu sua vantagem de 20 pontos percentuais, entre os membros do partido aptos a votar nas eleições primárias, derreter para 7 pontos. 
Outras sondagens já mostram uma virada na primárias de dois estados importantes. Em Iowa, onde começa a disputa (em 1º/2) e New Hampshire (9/2), Sanders está à frente com 5 pontos de vantagem. Sua liderança concentra-se entre os candidatos mais jovens, onde tem o dobro de preferência. Quais as razões? A esquerda brasileira teria algo a aprender com elas?
A primeira grande barreira que Sanders parece saber enfrentar é a do preconceito. Para frear a ascensão do candidato, seus adversários apostam no desgaste da palavra que o senador emprega para definir a si mesmo: “socialista”.
Contudo, Sanders não se presta ao papel de espantalho, analisa Robert Reich, professor de Políticas Públicas da Universidade de Berkeley e ex-ministro do Trabalho (no governo de Bill Clinton).

Segundo ele, as pessoas começaram a entender que o senador não é o socialista retratado nas caricaturas da Fox News, mas alguém capaz de tratar a aristocracia financeira com a dureza necessária.
“Há um século, Theodore Roosevelt quebrou a Standard Oil porque ela representava um perigo à economia dos EUA. Hoje, os bancos de Wall Street representam um perigo ainda maior”, diz Reich.
 Refere-se a uma proposta de Sanders, que pretende restabelecer a lei Glass-Steagall, revogada em 1999 por pressão do lobby de Wall Street. A lei tem dois objetivos: 1) combater a cartelização bancária; e 2) impedir a especulação desenfreada com ativos financeiros.
Joseph Stiglitz, Nobel de Econômica, e Nouriel Roubini, o economista que previu a crise de  2008, concordam com a reforma em Wall Street proposta pelo senador. “O plano mais modesto de Hillay Clinton é inadequado” conclui Reich.
O colapso financeiro de 2008, causado por Wall Street, parece não ter promovido apenas instabilidade econômica. Também abriu as portas para o que o sociólogo Immanuel Wallerstein chama de “o colapso do centro”, em muitas “democracias” ocidentais.
As pesquisas norte-americanas revelam um cenário eleitoral semelhante ao registrado nas urnas espanholas, portuguesas e gregas, onde parte da esquerda conseguiu se reinventar e transformar a revolta dos 99% em novas esperanças.
Como na Europa, há dois grandes desafios. O primeiro é formular propostas mais ousadas e atraentes que os pré-candidatos da nova direita. Nos EUA, são hoje mais carismáticos e nacionalistas, gente como o bilionário Donald Trump e o religioso Ted Cruz. O segundo é superar velha esquerda, insossa porém poderosa, representada por Hillary Clinton.
Aparentemente, Sanders progride. Não decola somente nas pesquisas eleitorais, mas também nos sinais de um engajamento social massivo. O senador atingiu, há dias, nova marca histórica de doações individuais: 2 milhões de apoiadores. Bateu o recorde ao dobrar o inédito desempenho de Obama em 2008.
Bernie SandersNos últimos três meses, Sanders angariou US$ 33 milhões para sua campanha, 
apenas US$ 4 milhões a menos que Hillary
Nos últimos três meses, angariou US$ 33 milhões para sua campanha, apenas US$ 4 milhões a menos que Hillary — que aceitou doações de Wall Street e de lobistas das grandes redes de prisões privadas. Na soma total Sanders continua em desvantagem: obteve U$ 73 milhões, enquanto Clinton angariou US$ 112 milhões.
Do lado do Partido Republicano, a maior dificuldade dos pré-candidatos tem sido propor saídas para estancar o aumento da pobreza, segundo aponta Eduardo Porter no New York Times. Entre os países da OCDE, os EUA figuram entre as piores colocações quando o assunto é desigualdade de renda e pobreza.
Estão atrás até mesmo dos estigmatizados “PIGS” da Europa (Portugal, Itália, Grécia e Espanha), e à frente apenas do México. Porter mostra como o plano de mais austeridade do histriônico bilionário Donald Trump e Ted Cruz, ligado ao movimento ultradireitista Tea Party e ex-assessor de George W. Bush, só aprofundariam ainda mais a crise no país.
E, para azar dos dois, aliados do 1% da elite financeira, 63% dos norte-americanos acham a questão da desigualdade muito importante, mostra pesquisa recente do Gallup.
 Por isso, mesmo tendo uma cobertura midiática 23 vezes menor que Trump, o socialista Bernie Sanders tem um potencial de vitória crescente, com uma vantagem de 13% nas eleições gerais sobre a principal liderança republicana; e uma rejeição nacional menor que Clinton (59% dos americanos a consideram “desonesta e nada confiável”).
Isso explica porque Sanders foi capaz de reunir multidões – mais de 100 mil pessoas, na soma de seus últimos comícios — além de uma onda de seguidores nas redes sociais. Tornou-se, de longe, a maior atração na campanha eleitoral.
Enquanto os ventos sopram à direita nos países afetados recentemente pela crise, como na América Latina, parecem empurrar à esquerda nos países que hoje lutam contra a recessão imposta após a crise.
http://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-palavras/bernie-sanders-e-o-caminho-para-uma-esquerda-autentica