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9.05.2020

Como Cristo melhora a vida na face da terra


Hoje, nas Co­mu­ni­dades Ecle­siais de Base da Amé­rica La­tina, é essa mesma gente sim­ples que relê a Bí­blia e, graças à as­ses­soria ci­en­tí­fica de exe­getas como Carlos Mes­ters, des­cobre que o Jesus da fé, o Cristo, se faz de novo pre­sente na his­tória através dos que oram "Pai Nosso" porque, juntos, buscam o "pão nosso", frei Betto ...

Entre o Jesus histórico e o teológico ...

por Frei Betto no Correio da Cidadania – Sociedade - Jesus e Surgimento da Igreja Católica Primitiva

Imagem no site Correio da Cidadania

Em seu clás­sico Jesus, pu­bli­cado no início do sé­culo 20, Ru­dolf Bult­mann ad­mitiu que "agora já não po­demos co­nhecer qual­quer coisa sobre a vida e a per­so­na­li­dade de Jesus, uma vez que as pri­mi­tivas fontes cristãs não de­mons­tram in­te­resse por qual­quer das duas coisas (vida e personalidade), sendo, além disso, frag­men­tá­rias (como juntar um quebra-cabeças gigante) e, muitas vezes, len­dá­rias; e não existem ou­tras fontes sobre Jesus".

A au­to­ri­dade in­te­lec­tual de Bult­mann pôs uma pedra sobre esse veio de pes­quisa. In­te­ressar-se pelo Jesus his­tó­rico era perda de tempo. Porém, em 1953, Ernst Käse­mann que­brou o tabu na trilha do mé­todo de es­tudo bí­blico de Orí­genes que, no sé­culo 3, con­si­de­rava-se um ca­çador que an­dava si­len­ci­o­sa­mente pela flo­resta até pres­sentir al­guma coisa se mo­vendo. Então, partia em sua per­se­guição (simbólico).

A van­tagem de Käse­mann e de todos que se de­bru­çaram sobre o Jesus his­tó­rico na se­gunda me­tade do sé­culo 20 é que, agora, muitas coisas se mo­viam e tra­ziam luz onde antes havia trevas (onde havia desconhecimento, hoje, verdades foram levadas ao público). Em 1947, três be­duínos pas­to­re­avam seus re­ba­nhos a oeste do Mar Morto. Um deles viu dois bu­racos na en­costa de um pe­nhasco e atirou uma pedra no menor. Es­cu­taram um som, como se a pedra ti­vesse ba­tido em jarras de barro. Dias de­pois, o mais jovem es­calou so­zinho o pe­nhasco e en­fiou-se pela ca­verna. Nas jarras não havia ne­nhum te­souro. Mas uma delas con­tinha dois em­bru­lhos de pano e um rolo de couro (era o início de fatos, atos e ações de Jesus inéditas ou até então desconhecidas).
Os be­duínos guar­daram o achado em um saco e o amar­raram, por vá­rias se­manas, no pau de uma tenda pró­xima a Belém. De­pois, pas­saram os em­bru­lhos a um re­cep­tador de Belém, o sa­pa­teiro Kando que, sem saber o valor do que tinha em mãos, mos­trou-os a pes­soas que se in­te­res­savam por an­ti­gui­dades. Os dois em­bru­lhos de pano e o rolo de couro eram os pri­meiros Ma­nus­critos do Mar Morto a serem des­co­bertos. Logo, ou­tros do­cu­mentos foram en­con­trados em di­versas ca­vernas (teoricamente construídas por cristãos primitivos).

James H. Char­lesworth re­jeita o mé­todo da dis­si­mi­la­ri­dade ou prin­cípio de des­con­ti­nui­dade, que pro­cura des­tacar Jesus como fi­gura sin­gular (aquele que viveu entre os humildes e conhecia as elites), como um peixe fora das águas ju­daicas de seu tempo. Para o autor, "Jesus de Na­zaré, como homem his­tó­rico, tem que ser visto dentro do ju­daísmo" (pois foi judeus) (p. 10, grifo do autor). Em­bora se in­te­res­sasse, como cristão, pelas ques­tões te­o­ló­gicas re­fe­rentes a Jesus, ele se detém, na­quela obra, nos li­mites da his­to­ri­o­grafia (se baseia somente em evidencias concretas, provadas cientificamente). Os do­cu­mentos que ana­lisa per­mitem co­nhecer me­lhor o con­texto em que Jesus viveu e, por­tanto, o sig­ni­fi­cado de al­gumas de suas pa­la­vras e ações.

Jesus era muito mais judeu do que su­pomos - é o que o livro, ba­seado em farta e eru­dita do­cu­men­tação, de­monstra em lin­guagem aces­sível aos lei­tores em geral. Não se trata de en­focar Jesus e o ju­daísmo, mas Jesus no ju­daísmo.

Imagem na internet, reprodução

O autor ar­gu­menta que já dis­pomos de re­cursos ci­en­tí­ficos su­fi­ci­entes para ter al­guma ideia da com­pre­ensão que Jesus tinha de si mesmo (Jesus teve percepção de suas ações e obras, que influenciava as pessoas  e a história, assim como costumes da época vivida, persistindo ao longo dos 2020 anos). Com­prova, por exemplo, que o tí­tulo "Filho do Homem", fre­quente na boca de Jesus, não é uma cri­ação cristã, já que é en­con­trado em do­cu­mentos ju­daicos an­te­ri­ores à des­truição de Je­ru­salém pelos ro­manos, entre os anos 66 e 70 (era uma expressão utilizada pelos profetas em suas pregações). Todos os evan­ge­lhos são pos­te­ri­ores àquela data. Numa exe­gese de­ta­lhada da in­tri­gante Pa­rá­bola dos Vi­nha­teiros Ho­mi­cidas (Marcos 12, 1-12), não re­luta em de­fender que Jesus se sentia ado­tado como filho por Deus (simbolismo por demais marcante até os dias de hoje).

Char­lesworth não pes­quisa Jesus para mostrá-lo "como um herói do pas­sado a ser ad­mi­rado" (p. 31), mas para des­tacar a ve­ra­ci­dade de certos fatos da vida dele, como a es­colha dos dis­cí­pulos em um con­texto em que o ha­bi­tual era os alunos es­co­lherem o mestre. En­quanto seus con­tem­po­râ­neos cul­tu­avam um Deus dis­tante, Jesus tra­tava Deus como um Pai muito ín­timo, re­pleto de com­paixão e amor, es­pe­ci­al­mente para com os po­bres e pe­ca­dores. Isso des­toava dos ju­deus da época, que cla­mavam por vin­gança di­vina e exi­giam a pu­nição dos maus (é possível perceber que pouco ou quase nada mudou até hoje entre as pessoas que recebem da sociedade a prerrogativa do julgamento e avaliação, das ações a atos humanos).

Tendo con­vi­vido com grupos es­sê­nios - pois 4 mil deles es­pa­lhavam-se pela Pa­les­tina -, deles Jesus teria her­dado o ce­li­bato "por amor ao Reino" (Ma­teus 19, 10-12). Cri­ti­cava, porém, suas pu­ri­fi­ca­ções for­ma­listas (que se faziam presentes nas manifestações públicas, desvendadas por pesquisadores e estudiosos) que os im­pedia de amar o pró­ximo e re­co­nhecer que no co­ração de uma pros­ti­tuta pode haver mais pu­reza do que em todas as ablu­ções ri­tuais (regras sociais). E com eles tinha em comum, além do tempo e do lugar (Pa­les­tina), as mesmas an­tigas tra­di­ções he­braicas (hebreus foi o povo antepassado dos judeus), como a lei­tura de Isaías e a reza dos Salmos.

A con­clusão do autor aplaca o re­ceio dos que temem a ver­dade his­tó­rica: "o fato de se exa­mi­narem do­cu­mentos con­tem­po­râ­neos de Jesus e de se es­tudar ar­que­o­logia, no en­tanto, nunca deve ser en­ca­rado como uma ten­ta­tiva de provar ou dar su­porte a qual­quer fé ou te­o­logia. Uma fé au­tên­tica não pre­cisa disso. Fi­ló­logos, his­to­ri­a­dores e ar­queó­logos não podem dar aos cris­tãos um Se­nhor res­sus­ci­tado, mas podem ajudar a com­pre­ender me­lhor a vida, o pen­sa­mento e a morte de Jesus" (p. 142) (Nesta passagem, fr. Betto transforma a escuridão do desconhecido em luz transparente como uma água límpida e saborosa).

O cu­rioso é que, dos do­cu­mentos ana­li­sados no livro, os três mais im­por­tantes - Pseudo-epí­grafos, Ma­nus­critos e Nag Ham­madi - não foram des­co­bertos por ar­queó­logos ou pes­qui­sa­dores, mas por gente sim­ples do povo. Hoje, nas Co­mu­ni­dades Ecle­siais de Base da Amé­rica La­tina, é essa mesma gente sim­ples que relê a Bí­blia e, graças à as­ses­soria ci­en­tí­fica de exe­getas como Carlos Mes­ters, des­cobre que o Jesus da fé, o Cristo, se faz de novo pre­sente na his­tória através dos que oram "Pai Nosso" porque, juntos, buscam o "pão nosso".

Publicado no Correio da Cidania: 22/08/2020
 
        * Frei Betto - as­sessor de mo­vi­mentos so­ciais. Autor de 53 li­vros, edi­tados no Brasil e no ex­te­rior, ga­nhou por duas vezes o prêmio Ja­buti 1982, com “Batismo de Sangue”, e 2005 com “Típicos Tipos”. Como pesquisador e historiador durante meses, desvendou segredos da Igreja Católica Primitiva e sua relação com a vida de Cristo, em Jerusalém e locais por onde Jesus viveu no seu tempo. Como pesquisador investigativo, escreveu o livro “Entre todos os homens” referente a esse tema.

Fonte:  https://www.correiocidadania.com.br/colunistas/frei-betto/14329-entre-o-jesus-historico-e-o-teologico