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5.30.2014

A ditadura eliminou a futura vanguarda intelectual, política e artística. Não se pode deixar que isso repita

Foto: MARCOS DE PAULA/ESTADÃO CONTEÚDO
Cérebros ceifadosO desaparecimento de Amarildo seguiu o padrão do de Rubens Paiva, deputado federal em 1964

Por Lincoln Secco, professor livre-docente de História Contemporânea na USP - sociedade
Em 1983, eu estava no último ano do Ensino Fundamental quando um livro didático de Educação Moral e Cívica me despertou a desconfiança. A ditadura havia criado aquela disciplina em 1969, mas, na minha época, ninguém mais levava aquilo a sério.
No livro em questão, o mundo se dividia em dois: o livre e o totalitário (socialista). A imagem que representava os países socialistas era a de pessoas tristes cercadas por uma corda diante de um desfile militar. De repente, eu disse sorrindo: “Então o Brasil faz parte do mundo socialista?” Foi minha primeira ironia escolar...
Os livros de Educação Moral e Cívica eram obrigatórios e seus autores eram militares, religiosos, áulicos civis do regime e oportunistas em geral, mas no início dos anos 80 o ensino de História já havia retornado às salas, ainda que em tempo reduzido. Por isso muitos professores usavam o tempo das duas disciplinas para lecionar apenas História.
E aqueles terríveis livros didáticos ficavam na gaveta. Lembro-me que no Ensino Médio os meus professores simplesmente adotaram clássicos da historiografia de esquerda, como A História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman, e História Econômica do Brasil, de Caio Prado Júnior!
Entretanto, foi tão forte o fascismo cotidiano instalado em 1964 que uma revisão se iniciou.
Alguns historiadores passaram logo a justificar a ditadura. De maneira sub-reptícia, é claro! Argumentaram que havia dois golpes em andamento e que tanto a esquerda quanto a direita viviam às portas dos quartéis em busca da ala “nacionalista” das Forças Armadas; que a população, cansada do “populismo”, apoiava os golpistas; e que a opção pela luta armada teria promovido a verdadeira ditadura, que só começou depois do AI-5, em 1968. Antes teríamos um “regime autoritário”...
Por mais que se atribuam intenções improváveis ao presidente João Goulart, os dois únicos partidos que o sustentavam ideologicamente estavam muito longe do golpismo. O PCB havia se definido pelo caminho pacífico da aliança com a “burguesia nacional” em 1958 e o PTB jamais formulou um projeto de “república sindicalista”.
A ideia de que os golpistas representavam os anseios da população foi desmontada pelo historiador Luiz Antonio Dias em entrevista à revista CartaCapital. Com base em pesquisas feitas pelo Ibope às vésperas do golpe, mas não divulgadas à época, ele mostrou que Jango tinha amplo apoio popular.
E há mais. Está no prelo o emocionante relato do guerrilheiro da ALN Takao Amano, cujo título dá conta dos sonhos de uma geração (Assalto ao Céu, Coleção Memória Militante, ECA-USP). Ele revela que, além da luta dos povos do Terceiro Mundo na época, a impossibilidade de se manifestar publicamente, as torturas e os assassinatos que já ocorriam desde 1964 foram determinantes para a adoção de grupos armados de proteção aos militantes de esquerda.
Nos anos 60, a rebeldia estudantil se fez acompanhar de uma verdadeira revolução cultural. Os maiores artistas produziam suas obras. Os jovens desafiavam as regras do “bom comportamento”. Os melhores economistas, médicos, engenheiros e cientistas sociais saíam de seus locais de trabalho habituais para planejar a reforma agrária, o desenvolvimento industrial, a alfabetização em massa e a melhora da saúde da população.
Aquela efervescência transbordava os limites da velha política do Congresso ou do pensamento misógino e racista da alta oficialidade do Exército. Nas ruas pressionava-se por uma democracia plena e por reformas dentro da ordem. Afinal, quem devolveu plenos poderes legais ao presidente Goulart num plebiscito foi o povo! Embora o historiador não faça esse tipo de pergunta, ela é inescapável: “Que Brasil nós teríamos sem o golpe de 1964?”
A ditadura promoveu a eliminação física de toda a futura vanguarda intelectual, política, sindical e artística daquele novo país que ela interrompeu. Os jovens que não foram trucidados, ela humilhou, prendeu, ameaçou e expulsou. Ela ceifou as melhores cabeças das universidades brasileiras. Basta lembrar que cerca de 10% dos mortos e desaparecidos oficiais no País eram estudantes ou professores da USP. Outras universidades foram invadidas, depredadas. E sabemos como a repressão atingiu na verdade milhares de pessoas.
O “melhor” símbolo da ditadura foi a Casa da Morte de Petrópolis. Ela foi um centro clandestino onde as pessoas eram torturadas, estupradas, esquartejadas e, depois, lançadas à fornalha de uma usina de açúcar. Mas, como ela, muitos quartéis, residências e delegacias foram usados como pequenos campos de extermínio de adversários do regime ou simples “suspeitos”.
A exigência de que uma ditadura não se repita é a primeira de todas para a educação. Trata-se aqui de uma paráfrase de Theodor Adorno, um dos expoentes da Escola de Frankfurt, o qual escreveu um famoso ensaio com o título Educar Depois de Auschwitz.
Naquele ensaio ele mostrava que justificar o nazismo seria algo tão monstruoso que nem deveria ser preciso expor a meta precípua de toda a educação: a de que Auschwitz não se repita! No entanto, a ditadura no Brasil ainda encontra apoio em círculos políticos, jurídicos e da imprensa, e os criminosos daquela época não foram punidos, ao contrário do que aconteceu na Argentina, Chile e Uruguai.
Ao contrário, governos constituídos falam da ameaça à ordem que protestos sociais representariam e invocam uma lei contra o terrorismo, demonstrando o quanto o vocabulário da ditadura continua em vigor ao lado de práticas que ela consolidou.
O sequestro, a tortura e o desaparecimento do auxiliar de pedreiro Amarildo Dias de Souza, em 2013, no Rio de Janeiro, seguiram a mesma sequência do caso do deputado Rubens Paiva durante a ditadura. E diante de simples “rolezinhos” de jovens da periferia paulistana ou do “vandalismo” de protestos contra os gastos suntuários da Copa do Mundo, vemos o espancamento e a prisão ilegal de jovens desarmados. Há quem ainda veja nas manifestações “uma regressão à barbárie”.
No entanto, a barbárie já estava posta com o golpe militar de 1964. Estudá-la e calar todos os que a defendem é o primeiro passo de uma educação para a democracia.
Publicado na edição 85, de abril de 2014
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