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6.17.2021

Domínio Ilegal e Destruição do Cerrado Brasileiro no Sul da Bahia

 

Ligações perigosas: fundos de pensão internacionais, incêndios e grilagens em Matopiba- PI

O Ministério Público Federal (MPF) possui inquérito civil[12] aberto desde 2016 para apurar denúncias de crimes ambientais, aquisição ilegal de terras e danos para comunidades rurais do entorno das fazendas controlada pelo Grupo Radar no Maranhão, mas até o momento não houve nenhuma responsabilização das empresas e/ou seus agentes...

por redação da ong Arco é Fogo – Sociedade, Cerrado e Queimadas

Fazendas adquiridas na Bahia pelo fundo de Harvard (EUA), cerca de 750 mil hectares, por meio da subsidiaria Caracol Agropecuária Limitada. Crédito: AidEnvironment.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em recente parecer técnico, e o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), em julgamento realizado em outubro de 2020, reconheceram que dois dos maiores compradores estrangeiros de terras agrícolas no Brasil – os fundos de pensão[1] da TIAA-CREF (Teachers Insurance and Annuity Association of America – College Retirement Equities Fund) e o fundo de investimentos da Universidade de Harvard (Havard Management Co.) (EUA)– adquiriram ilegalmente centenas de milhares de hectares de terras agrícolas no Cerrado brasileiro. Os detalhes sobre as decisões que reconhecem a compra ilegal de terras e a apuração dos incêndios nas fazendas controladas pelos fundos estão no novo relatório[2] da AATR (Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia), Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e GRAIN.

Desde 2008, esses fundos acumularam cerca de 750.000 hectares no país, com seus negócios de terras agrícolas estando ligados à apropriação ilegal de terras, à expulsão violenta de comunidades tradicionais e rurais, ao desmatamento, incêndios e outros danos sociais e ambientais na região[3] . Tudo isso, ademais, burlando a legislação brasileira que limita o controle de terras por estrangeiros[4] .

Notas

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(Des)encobrindo as aquisições ilegais de terras

Em maio de 2019 o Incra emitiu um parecer[5] sobre a questão, detalhando como todas as terras adquiridas pela TIAA após 2010 foram realizadas em violação à Lei Federal nº 5.709/1971[6] e ao entendimento fixado pelo Parecer LA-01 da AGU, de 2010, que impõe limites à aquisição e arrendamento de terras agrícolas também por empresas registradas no Brasil, mas efetivamente controladas por empresas estrangeiras. Segundo o Incra, as compras de terras pela TIAA que foram realizadas através da empresa brasileira Radar Propriedades Agrícolas e outras subsidiárias brasileiras devem ser consideradas nulas, pois, apesar destas empresas serem registradas no país, a maior parte de suas ações são de propriedade de empresas estrangeiras. As empresas associadas foram caracterizadas como parte do mesmo “grupo econômico”, constituindo uma arquitetura financeira que mascara o real controle exercido pelo fundo TIAA-CREF. Como resultado, o setor do Incra responsável pela supervisão e fiscalização das aquisições de terras por entidades estrangeiras, recomendou a anulação dos títulos de todas as fazendas adquiridas através das subsidiárias da TIAA, desde 2010, cobrindo mais de 150.000 ha.

Além disso, o Incra constatou que as aquisições de terras da TIAA foram baseadas em esquemas de grilagem de terras comumente utilizados na região, por meio da apropriação ilegal de terras públicas e posterior reivindicação fraudulenta de sua titularidade legal. O Instituto declarou que este era um motivo adicional para a anulação dos títulos de terras de TIAA.

O órgão de terras federal ainda não realizou uma avaliação das aquisições de terras de Harvard, que foram realizadas de maneira semelhante. Entretanto, em 6 de outubro de 2020, o Tribunal de Justiça da Bahia emitiu uma sentença[7] bloqueando o registro de terras para uma das maiores aquisições de terras agrícolas de Harvard no Brasil – uma aglomeração de 107.000 hectares de terras conhecida como Gleba Campo Largo, no município de Cotegipe, região Oeste do estado. O tribunal também reabriu a investigação sobre a aquisição das terras da Gleba Campo Largo por Harvard, com base em provas fornecidas pela Procuradoria Geral do Estado (PGE) da Bahia de que se tratava de terras públicas que haviam sido transferidas ilegalmente para propriedade privada.

Harvard tem tentado vender as propriedades da Caracol Agropecuária e suas outras fazendas brasileiras em face de críticas crescentes e protestos dos próprios estudantes da instituição. Incapaz de encontrar um comprador, decidiu transformar[8] a sua divisão de terras agrícolas em uma empresa independente de capital privado chamada SolumPartners e trazer o grupo de seguros AIG como sócio. Embora não esteja evidente quais terras agrícolas foram transferidas para a Solum e quais permanecem sob gestão de Harvard, a responsabilidade pelos incêndios e conflitos de terras gerados pelas compras de terras agrícolas de Harvard no Brasil permanece com a Universidade. Conforme reconhecido pelo parecer do INCRA sobre o caso TIAA, sob a lei brasileira, as terras ainda seriam consideradas controladas pelo mesmo “grupo econômico”.

Notas

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Incêndios e desmatamento nas fazendas dos Fundos de pensão: comunidades tradicionais impactadas

A decisão do TJ-BA ocorreu no momento em que os incêndios voltaram a engolir as fazendas controladas pelo fundo de Harvard. Conforme dados de satélite compilados pela AidEnvironment, um total de 8.500 hectares foram queimados entre agosto e outubro de 2020, nas Fazendas Cachoeirinha (7.626 ha), em Mansidão, cuja propriedade também é reivindicada pelo Estado[9] , e na Faz. Campo Largo (878 ha), que compõe o conjunto de fazendas na área de 107 mil hectares grilados da Gleba Campo Largo.

Notas

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  Fazenda Campo Largo - Grupo Caracol Agropecuária S/A, Cotegipe - BA – meados de outubro de 2020 (área incendiada em vermelho, 878 ha). Crédito: AidEnvironment.

 

  Fazenda Cachoerinha - Grupo Caracol Agropecuária S/A, Mansidão - BA – 29 de agosto de 2020 (7.626 ha incendiados). Crédito: AidEnvironment.

 

Em Mansidão, as fazendas adquiridas estão localizadas na região conhecida como Baixões, onde aproximadamente 400 famílias posseiras, de dez comunidades tradicionais de fecho e fundo de pasto estão sendo impactadas pelo desmatamento e queimadas.

  Morador dos Baixões produzindo seu adobe para levantar a casa. Crédito: Thomas Bauer, CPT.

Casa de Farinha de Seu Manuel Mocó em Baixões. Crédito: Thomas Bauer, CPT.

Mulheres raspando mandioca na casa de farinha em Baixões. Crédito: Thomas Bauer, CPT.

Encontro na comunidade de Baixões. Crédito: Thomas Bauer, CPT.

Família de moradores dos Baixões em frente da sua casa. Crédito: Thomas Bauer, CPT.

Na gleba Campo Largo, no município de Cotegipe, as 240 famílias posseiras que foram violentamente expulsas após a venda para o fundo de Harvard continuam no entorno da área e seguem na expectativa de retornar para a terra, que segue sendo degradada com queimadas e desmatamentos.

Como é sabido, o ciclo do fogo está em grande medida associado ao ciclo da grilagem e desmatamento como forma de ocultar a invasão de terras públicas e do crime ambiental. Neste caso, recentemente, o Instituto do Meio ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (INEMA) concedeu uma controversa[10] autorização de supressão de 5.212 hectares de vegetação nativa, válida para 4 anos, em favor da Caracol Agropecuária S/A para um conjunto de fazendas da Gleba Campo Largo. Não estão entre elas as duas fazendas alvo dos incêndios, indicando que possivelmente o fogo tem sido utilizado para encobrir desmatamento ilegal por parte da Caracol. A situação é igualmente catastrófica em outra fazenda de Harvard muito próxima, no estado vizinho do Piauí. Na Fazenda Coelho, um incêndio maciço destruiu uma grande faixa de área florestal na propriedade, queimando mais de 8.600 hectares dentro dos limites da propriedade e 11.000 hectares no total. Tanto a Gleba Campo Largo como a Fazenda Coelho foram adquiridas por Harvard através de sua subsidiária brasileira Caracol Agropecuária.

[10]

  Fazenda Coelho - Grupo Caracol Agropecuária S/A, Floriano - PI – 03 de setembro de 2020 (área incendiada em vermelho, 11.000 ha). Crédito: AidEnvironment.

 

Este ano a AidEnvironment também encontrou grandes incêndios nas fazendas da TIAA na região do Cerrado. No início de outubro de 2020, os incêndios destruíram as áreas de reserva florestal das fazendas da TIAA em Santa Filomena, Piauí, transformando cerca de 1.360 hectares em cinzas. Neste município, o fundo controla, por meio da Tellus Brasil Participações S/A, 4.500 hectares das fazendas Ludmila e Laranjeiras, adquiridas da família de notório grileiro que atua na região, tendo sido desmembradas em vários outros imóveis, a partir de 2016, cujos nomes foram alterados para o agora denominado Condomínio Frutal.

[11]

Grupo de Fazendas em Santa Filomena no Piauí registrada em nome de Tellus. Crédito: AidEnvironment.

 

Participações S/A, subsidiária da TIAA. Fogos ativos em 01 de outubro 2020 e área incendiada em 16 de outubro de 2020 (1.360 ha de área queimada em vermelho). Crédito: AidEnvironment.

 

Essas fazendas localizam-se no extremo noroeste do planalto denominado de “Chapada Até Que Enfim”, próximas às comunidades ribeirinhas de Baixão Fechado, Salto, e da comunidade indígena do povo Gamela, Morro D’água. Segundo relatos das comunidades, os frequentes desmatamentos e queimadas têm provocado mudanças nos regimes de chuvas, diminuição dos brejos, nascentes e vazão dos rios, além de erosão e aumento da turbidez dos corpos d’água.

O buriti, fruto tradicional do Cerrado, é fonte de renda para as famílias camponesas do estado do Piauí. Crédito: Rosilene Miliotti – FASE.

 

A infinitude desmatada e queimada no estado do Piauí. Quilômetros e quilômetros estão assim em grandes propriedades griladas no estado. Crédito: Rosilene Miliotti – FASE.

Desmatamento e monocultivos no Sul do Piauí, região de Cerrado, que acumula uma história de conflitos agrários. Crédito: Rosilene Miliotti – FASE.

 

Os desmatamentos e queimadas ilegais, no entanto, são utilizados em paralelo às requisições para supressão de vegetação junto aos órgãos ambientais. Desde 2010, a Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí (SEMAR) vem autorizando desmatamentos nestas áreas. Em 2018, em que pese as denúncias e fortes indícios da grilagem, a SEMAR autorizou queima controlada pelo empreendimento, conforme publicação no Diário Oficial à época. No Maranhão, por sua vez, a Fazenda Santana, também da TIAA, no município de Riachão, teve incêndios significativos em 2019, e em 2020, mais 500 hectares foram queimados.

 

Fazenda Ribeirão do Meio – registrada em nome da Radar Propriedades Agrícolas em Riachão (MA). Fogos ativos em 27 de julho de 2020 e área incendiada em 09 de outubro de 2020 (894 ha de área queimada em vermelho). Crédito: AidEnvironment.

 

Fazenda Santana – registrada em nome da Tellus Brasil Participações SA em Riachão (MA). Fogos ativos em 16 de julho de 2020 e área incendiada em 24 de setembro de 2020 (546 ha de área queimada em vermelho). Crédito: AidEnvironment.

O Ministério Público Federal (MPF) possui inquérito civil[12] aberto desde 2016 para apurar denúncias de crimes ambientais, aquisição ilegal de terras e danos para comunidades rurais do entorno das fazendas controlada pelo Grupo Radar no Maranhão, mas até o momento não houve nenhuma responsabilização das empresas e/ou seus agentes.

Neste cenário, é possível concluir que o desmatamento e as queimadas, sejam as ilegais ou as autorizadas pelos órgãos ambientais em frágeis processos de vistoria e análise de documentos, são a principal forma de consolidar a grilagem de terras, com a efetiva tomada de posse sobre os imóveis adquiridos que ainda possuam vegetação nativa, incrementando o preço da terra e intensificando a especulação imobiliária, que antecede a conversão das áreas para produção de grãos.

[12] Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais – AATR Bahia

Grain

Rede Social de Justiça e Direitos Humanos

Fonte:  https://agroefogo.org.br/ligacoes-perigosas-fundos-de-pensao-internacionais-queimadas-e-grilagens-no-matopiba/