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9.26.2014

Pesquisa que diz que o brasileiro é um dos sujeitos mais felizes do mundo

O BV, Brasil de Verdade
Arquivo do DCM - O BV, Brasil de Verdade
Como é o país que você na mídia? E como é o Brasil visto pelos brasileiros?
Bem, parecem dois países diferentes.
Acaba de sair uma pesquisa mundial do instituto Gallup, em associação com a empresa americana de bem estar Healthways.
Foram ouvidas pessoas de 135 países, com o objetivo de avaliar o grau de satisfação delas. As entrevistas focavam em aspectos vitais da vida de cada um de nós: de dinheiro a saúde, das relações sociais ao encaixe na comunidade.
O Brasil ficou em quinto lugar.
É uma posição excepcional. Nas piores colocações você encontra países em guerra, como Iraque e Afeganistão.
Isto significa que o brasileiro está feliz. É feliz. É otimista. Gosta de seu país e de sua vida, e acha as coisas vão melhorar.
Não preciso dizer que este levantamento foi virtualmente ignorado pela imprensa brasileira. O único lugar em que o vi – além do próprio DCM – foi no site da Exame.
Compare o brasileiro tal como é apresentado pela mídia com este que emergiu da pesquisa.
O BM – chamemos assim o Brasileiro da Mídia – é um sujeito atormentado, neurótico, infeliz, revoltado. Tem ódio do seu país, e desprezo pelos seus conterrâneos. Sente vergonha de dizer que é brasileiro no exterior.
Ele pode ser personificado em Jabor, numa referência masculina, ou em Rachel Sheherazade, numa referência feminina.
Agora examinemos o BV, o Brasileiro de Verdade. É aquele que os estrangeiros escontraram nas ruas, na Copa do Mundo. Afável, sorridente, bem humorado, gentil. De bem com a vida, de um modo geral.
O BV é a negação do BM.
Um desses dois brasileiros não faz sentido, e você pode bem imaginar qual.
O que está por trás do retrato grotescamente distorcido do Brasil e dos brasileiros feito por jornais, revistas, telejornais etc?
É o pavor de que, mostrando o brasileiro médio como um sujeito feliz, você esteja promovendo, indiretamente, o PT.
É um pensamento de brutal obtusidade.
O BV, o Brasileiro de Verdade, tem um caso de amor não com este partido ou aquele – mas com o Brasil.
Pode mudar o partido no Planalto que a alegria que está na alma do brasileiro permanecerá.
Compare o BM com as palavras ditas e escritas por Jabor. Num artigo recente publicado no Globo, ele escreveu: “Hoje, sabemos que somos parte da secular estupidez do país. Assumir nossa doença talvez seja o início da sabedoria.”
“Nossa doença”?
Jabor deveria olhar para o espelho ao formular este tipo de pensamento. Ele é um infeliz, um amargurado, um derrotado.
Um BM, em suma.
O BV, como mostra a pesquisa do Gallup, e como todos nós sabemos por experiência própria, é o oposto de Jabor.


Sobre o Autor
O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.
http://www.diariodocentrodomundo.com.br/por-que-ninguem-da-a-pesquisa-que-diz-que-o-brasileiro-e-um-dos-sujeitos-mais-felizes-do-mundo/

9.24.2014

Sim, havia qualidade de vida nas pequenas cidades do interior, no Brasil...antes da TV

A vida em Estouros, povoado a 290 km de Belo Horizonte, segue um ritmo que parece eterno. Não é necessário relógio. Acorda-se com o raiar do Sol e dorme-se quando as estrelas começam a surgir. Os homens trabalham a terra e as mulheres cuidam da casa e dos filhos. Nas refeições, as famílias se alimentam daquilo que a terra lhes devolve. Feijão, arroz, couve, abóbora. De vez em quando, carne de porco ou de galinha, criados no quintal. Ali não se conhece hambúrguer, pizza nem maionese. Tem gente que no mês passado tomou Coca-Cola pela primeira vez na vida. Os jornais só aparecem para embrulhar encomenda. Estouros é um lugar sem aquele eletrodoméstico que ocupa o lugar central na residência da maioria dos brasileiros — um aparelho de TV.
O que é a TV? O menino Ivanei Carlos Martins, 10 anos, 7 irmãos criados por um lavrador de Estouros, que todos os dias caminha 12 km para ir à escola e voltar, explica: “É uma caixa de som com um espelho na frente”. O irmão mais velho, Wilson, já viu TV nas redondezas. Mas, se pudesse, Wilson não compraria um aparelho. Uma égua de 3 anos teria maior utilidade: “Eu descansaria das pernas. A gente anda sempre a pé ou no caminhão do leite”. Wilson assistiu a uma exibição do programa Aqui Agora, do SBT, e ficou de olhos esbugalhados. Não se conforma até hoje: “A gente vê batida de carro, roubo”, espanta-se. “Tem bandido que mata a pessoa à toa. Aqui não tem nada disso. Aqui a gente mata porco. E para comer”. Outro habitante de Estouros, Luciano Felisberto Filho, tem outra lembrança do único programa de TV a que já assistiu. “Não dá para assistir tanta coisa junta. Não entendo o que vejo. O povo fala muito”.
É mesmo estranha a vida sem o espelho falante do pequeno Ivanei. O povoado de Serra Velha, em Santa Catarina, que tem 300 habitantes e 60 casas, fica encravado numa montanha e o acesso é restrito a uma única estrada. Ali nunca se ouviu falar do ministro da Fazenda, do Fernando Henrique Cardoso, do Lula, nem do último carro mais novo. Tampouco de Roberto Carlos, Pelé ou Madona. O ídolo naquelas paragens é o professor Santanor Petersen, único na região, proprietário de uma caminhonete que faz 30 km/h como velocidade máxima. Bem diferente dos veículos saídos de uma linha de montagem, a caminhonete do professor Petersen tem a carroceria de madeira, que sobrou de um corte de árvores, e o motor de um barco. Pessoa mais bem informada da cidade, o professor não sabe qual o nome da atual presidenta da República.
Esse país indiferente à passagem do tempo, com muito menos dinheiro e conforto, menos violência e perversidade, integra uma das mais bem-sucedidas utopias nacionais. A do Brasil rural, de pessoas simples e valores estabelecidos, de pequenos heróis e pequenos vilões naturais em qualquer parte. É um país delicioso de ver e explorar, como descobriram as novelas rurais que a TV produz e eles não vêem. É o país desconhecido das grandes metrópoles. Mas é uma utopia urbana achar que o povo desses lugares quer ficar assim. TV é eletricidade, eletricidade é progresso, e não há como preferir um lampião de querosene a uma lâmpada, nem é possível achar que o cidadão que não sabe o nome da presidenta é mais feliz do que aquele capaz de recitar a lista de todos os ocupantes do Planalto de 1964 para cá, ou aquela que conhece todas as artistas de novelas. É só mais ignorante, mas a felicidade não é medida por aí.
Há 6 meses, em Lagoa do Oscar, lugarejo do interior de Minas, correu o boato de que, enfim, os postes de luz chegariam ao local. Foi um alvoroço. O roceiro Domingos Ferreira Conceição, um senhor já de meia-idade, percorreu 110 km apenas para fazer uma troca. Entregou uma espingarda nova para um muambeiro, que lhe deu uma TV portátil trazida do Paraguai. O roceiro aguardou 4 meses pela luz. Como ela não veio, vendeu a TV para um caminhoneiro, que pagou "200 mil reais" (sic) por ela. Mas não desistiu. “As crianças só falam do dia em que terão uma TV em casa”, diz.
Com 3 mil moradores, a 700 km de Salvador, Muquém do São Francisco é outro exemplo. Ali não existe luz elétrica, água encanada nem rede de esgoto. Mas tem TV. Um aparelho, de propriedade da prefeitura, ligado a um gerador a óleo diesel. Todos os dias, o funcionário Francisco Raimundo Cardoso pega o televisor de 20 polegadas em um barraco onde ele fica trancado e o transporta até a praça da cidade. Ali, cercada com arames farpados, a TV fica ligada das 6 da tarde até às 11 da noite.
TV Muquém 1994TV em Muquém do São Francisco, BA
Muquém é um município paupérrimo, com orçamento de 70 mil reais por mês. Com esse dinheiro, o prefeito Carlos Moreno Pereira paga o salário de 130 funcionários públicos e investe 20 mil reais na área de saúde. As escolas da cidade lhe custam o mesmo que a conta do gerador da TV: 3 mil reais por mês. Até o prefeito acha um absurdo. “É um luxo gastar dinheiro com o gerador”, reconhece. Mas não há alternativa. Desde que a TV foi instalada, no final de 1991, é sucesso absoluto. Nos dias normais, reúne de 30 a 50 pessoas na praça. Em grandes momentos, passa de 100. Quando se transmite futebol, a plateia se divide. As mulheres querem ver as novelas; e os homens, futebol. A última palavra é da primeira-dama, Vera Lúcia Pereira, que sempre acaba dando preferência à plateia feminina.
Captava por antena parabólica diretamente do Rio de Janeiro e de São Paulo, a TV de Muquém tem uma peculiaridade: não apresenta comerciais. Enquanto os telespectadores do país inteiro assistem a um carrocel de anúncios publicitários, ali a tela fica escura. O impacto sobre os hábitos de consumo é menor. A plateia só é atingida pela propaganda inserida dentro dos programas. Por essa razão, as donas de casa começam a trocar os temperos caseiros por industrializados e ficam satisfeitas quando descobrem que a TV mostra a mesma pasta de dentes que guardam na dispensa.
“A TV é vista em muitas comunidades como símbolo de status“, afirma a socióloga Sara Chicid da Via, da Universidade de São Paulo (USP). “As pessoas mudam de comportamento em função do que passam a ver”. Um dos mais antigos hábitos dos adolescentes de Muquém era o “papo do comitê”. Eles se encontravam todas as noites nas escadarias de um prédio utilizado como comitê de um partido político para conversar e fazer brincadeiras. “Eram mais de 20 pessoas”, lembra Carla Rejane Almeida, 18 anos. Nesses papos se falava , por exemplo, de Noemi, a garota mais bonita da cidade, e de Reivaldeo e Gildásio, os “gatos” mais paquerados. Agora não se fala mais disso. Estão todos assistindo à televisão na praça. E a TV...
A reportagem reproduzida acima, foi publicada no dia 05 de janeiro de 1994 na revista Veja. Apesar de estar mais de 20 anos atrasada, apesar de relatar uma realidade social que ficou no passado, ela continua viva como relato histórico, ao deixar registrado como era a vida nos pequenos municípios e povoados do interior do Brasil, antes da chegada definitiva da energia elétrica e, principalmente, da TV.
Textos jornalísticos não resistem ao tempo. Mas não se pode generalizar. Alguns, de tão bem escritos, continuam informando por décadas. Se não servem mais para relatar os fatos atuais, permanecem vivos como importantes registros históricos de outras épocas.
Os textos jornalísticos relatam fatos, e estes estão sempre presos ao tempo em que aconteceram. Passam-se os dias e aquela reportagem magnífica já ficou ultrapassada por novos fatos, novas notícias, novos tempos. E esses novos tempos fazem rapidamente esquecer de um passado recente.
http://charlezine.com.br/sem-espelho-falante/

9.18.2014

O que está em jogo no Brasil ?

O que há de verdadeiramente novo na candidatura da candidata do PSB significa um retrocesso não só político como civilizacional.


Escrevo esta crônica de Cuiabá, capital do Estado do Mato Grosso e que é também a capital do que no Brasil se designa por agronegócio (agricultura industrial de monocultura: soja, algodão, milho cana do açúcar), a capital do consumo de agrotóxicos que envenenam a cadeia alimentar e da violência contra líderes camponeses e indígenas que defendem as suas terras da invasão e do desmatamento ilegais. Reúno-me com líderes de movimentos sociais, um deles (indígena Xavante) chegado à reunião clandestinamente por estar sob ameaça de morte. Deste lugar e desta reunião torna-se particularmente claro o que está em jogo nas próximas eleições no Brasil.

As classes populares – o vasto grupo social de pobres, excluídos e discriminados que viu o seu nível de vida melhorado nos últimos doze anos com as políticas de redistribuição social iniciadas pelo ex-presidente e continuadas pela Presidenta – estão perplexas mas têm os pés bem assentes no chão e não me parece que sejam facilmente iludidas. Sabem que as forças conservadoras que se opõem à Presidenta estão apostadas em recuperar o poder político que perderam há doze anos. Conscientes de que a época do ex-presidente transformou ideologicamente o país, não o poderão fazer pelos meios e com os protagonistas habituais. Para pôr fim a essa época é necessário recorrer a alguém que a evoque, a candidata do PSB, o desvio contra-natura para chegar ao poder. A pouco e pouco as classes populares vão conhecendo o programa da candidata do PSB e identificando, tanto o que nele é transparente, quanto o que nele é mistificatório.
 
É transparente o regresso ao neoliberalismo que permita os lucros extraordinários decorrentes das grandes privatizações (da Petrobras ao pré-sal) e da eliminação da regulação macroeconómica e social do Estado. Para isso se propõe a total independência do Banco Central e a eliminação das diplomacias paralelas (leia-se, total alinhamento com as políticas neoliberais dos EUA e da UE). É mistificatório o recurso a conceitos como o de “democracia de alta intensidade” e de “democratizar a democracia” – conceitos muito identificados com o meu trabalho mas de que é feito um uso totalmente oportunístico – como se fosse uma novidade política quando, de fato, do que se trata é, no seu melhor, a continuação do que tem vindo a ser feito em alguns estados de que é exemplo mais notável o do Rio Grande do Sul.

Acresce a tudo isto que o que há de verdadeiramente novo na candidatura da candidata do PSB significa um retrocesso não só político como civilizacional. Trata-se da certificação da maioridade política do evangelismo conservador. O grupo parlamentar evangélico é já hoje poderoso no Congresso e o seu poder está totalmente alinhado, não só com o poder econômico mais predador (a bancada ruralista), a que a teologia da prosperidade confere desígnio divino, como com as ideologias mais reacionárias do criacionismo e da homofobia. A candidata do PSB, se eleita, levará tais espantalhos ideológicos para o Palácio do Planalto para que de lá façam a pregação do fim da política, da ilusão da diferença entre esquerda e direita, da união entre ricos e pobres. Tirando o verniz religioso, trata-se do regresso democrático à ideologia da ditadura, no ano em que o Brasil celebra o mais longo e mais brilhante período de normalidade democrática da sua história (1985-2015).

Em face disto, por que estão perplexas as classes populares? Porque a Presidenta nada faz ou diz para lhes mostrar que está menos refém do agronegócio que a candidata do PSB. Nada faz ou diz para mostrar que é urgente iniciar a transição para um modelo de desenvolvimento menos centrado na exploração voraz dos recursos naturais que destrói o meio ambiente, expulsa camponeses e indígenas das suas terras e assassina os que lhe oferecem resistência. Bastaria um pequeno-grande gesto para que, por exemplo, os povos indígenas e afrodescendentes se sentissem protegidos pela sua Presidente: mandar publicar as portarias de identificação, de declaração e de homologação de terras ancestrais, portarias que estão prontas, livres de qualquer impedimento jurídico e apenas engavetadas por decisão política.

O que as classes populares e os seus aliados parecem não saber é que não basta querer que a Presidenta ganhe as eleições. É necessário vir para a rua lutar por isso. Ao contrário, os adversários dela sabem isso muito bem.

http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/O-que-esta-em-jogo-no-Brasil/31807

Violência nos partos de nascimentos, até quando?

De Douglas Belchior - feminino

A vivência e a troca de experiências que a luta social nos proporciona é extremamente enriquecedora.

Há debates e aprofundamentos em determinados temas que estão muito além de livros e de frias salas de aula.

E há textos que doem.

O debate sobre violência obstétrica é um dessas temas. Corriqueiro, presente, naturalizado. E que precisa ser questionado e combatido com muita radicalidade. Bem como denuncia a Professora Vanessa Gravino.

Leiam e sintam.

 Gravida

Por Vanessa Gravino

A construção de uma sociedade mais justa e igualitária, também passa pelo direito de parir e nascer com dignidade, sem que o parto seja uma ameaça à vida das mulheres e das crianças. Hoje, no Brasil, uma a cada quatro mulheres sofre ou sofreu algum tipo de violência durante o parto. Além disso, 90% das mortes de mulheres grávidas poderiam ser evitadas se elas recebessem atendimento adequado. No entanto, quando tocamos nesta questão, esbarramos em pontos relevantes: a mercantilização da saúde e o preconceito racial, destacando que as mulheres que mais sofrem ou morrem por decorrência da gravidez são mulheres negras.

No que se refere à mercantilização da saúde, segundo dados do Ministério da Saúde, mais de 50% dos partos realizados no Brasil atualmente são cesáreas. Se tratarmos apenas das redes particulares este número sobe para, aproximadamente, 83%. A cesárea é uma cirurgia, deve ser utilizada apenas em casos extremos, para salvar vidas, não pode ser regra. No entanto, é muito comum, médicos e médicas orientarem a realizar cesárea colocando-a como “mais segura” que o parto normal. Esta orientação não é acaso. Um parto normal pode demorar horas, já a cesárea é realizada em pouco mais de uma hora. Algumas delas são feitas quando a mulher entra em trabalho de parto, mas os médicos não querem esperar e forçam psicologicamente a mulher para que aceite a cirurgia da cesárea, com argumentos sem qualquer embasamento científico. A mulher, refém daquela situação, aceita tal cirurgia. Outras ainda são agendadas antes mesmo da mulher estar em trabalho de parto, o que é ainda pior, pois o bebê nem “amadureceu” dentro da mulher para ser arrancado do útero. Esses profissionais (se é que podemos chamá-los assim) ganham muito dinheiro em pouco tempo de trabalho. Não importa aqui se a vida das mulheres e dos bebês está colocada em risco, pois enxergam a saúde como mercadoria. Infelizmente esse quadro de violência obstétrica é rotina nos hospitais privados.

A pressão pela realização da cesárea sem necessidade, a violência psicológica que humilha mulheres, principalmente mulheres negras, numa situação de vulnerabilidade é o que chamamos de violência obstétrica. Nos hospitais públicos também há muita violência obstétrica apesar do índice de cesárea ser menor. Acontece que no sistema público há inúmeras intervenções desnecessárias ao longo do trabalho de parto. Dentre elas estão a episiotomia (corte entre a vagina e o ânus para facilitar a saída do bebê), falta de analgesia (caso a mulher solicite), pressão sobre a barriga para empurrar o bebê (manobra de Kristeller), lavagem intestinal, retirada de pelos pubianos, exames de toque frequentes para verificar dilatação, deixar a mulher deitada durante horas em posições desconfortáveis esperando o parto, o “pedido” para se calar quando as mulheres gritam e até ameaças à mulher e à criança.

As mulheres negras sofrem consequências ainda maiores. O preconceito racial no Brasil faz com que a violência obstétrica, em relação a essas mulheres, carregue as marcas do Brasil escravocrata. Elas escutam frases e comentários racistas e humilhantes na hora do nascimento de seus filhos e filhas. É comum os hospitais do SUS deixarem mulheres negras esperando mais tempo, por acreditarem que “as negras são mais resistentes à dor”, ou ainda, porque o momento do parto é o momento de pagarem pelo “ato” cometido, ou seja, “na hora de transar foi bom, agora aguenta”.

A luta feminista, negra e de direitos humanos deve passar – também – pela busca de um parto humanizado para as mulheres negras e trabalhadoras. Um parto que respeite sua fisiologia e sua autonomia. Onde as mulheres possam de fato ter informações verdadeiras sobre as formas de nascer, para que suas escolhas estejam pautadas não pela mercantilização da saúde, mas por evidências científicas.

Por mais casas de parto!

Por mais equipes humanizadas em maternidades!

Por apoio aos profissionais humanizados que estão no mercado de trabalho!

Infelizmente esta ainda não é uma realidade em nosso país. Mas, é um tema que devemos abordar com extrema urgência no interior dos debates de violência contra as mulheres e de extermínio da população negra.

 http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2014/09/16/violencia-obstetrica-ate-quando/

9.16.2014

A presença da mulher na Igreja: retórica sem mudanças significativas



Adital - Por Patricia Fachin - feminino
"As conquistas do feminismo são cotidianas e se manifestam em políticas públicas em favor das mulheres, políticas frutos de suas próprias lutas e em mil e uma atividades nas quais o respeito às mulheres é garantido”, diz a teóloga.
A teologia feminista adotada por Ivone Gebaraparte da aproximação "das dores e das perguntas das pessoas sem ter uma resposta arrumada e doutrinária” e "das situações reais onde as pessoas se encontram”. É assim que a teóloga católica, narra, na entrevista a seguir, sua aproximação com o feminismo e como foi "levada a perceber” o quanto sua "maneira de fazer teologia não incluía os sofrimentos e sonhos das mulheres”. Por conta disso, foi necessário pensar uma teologia feminista.
Para Ivone, "há uma grande diferença entre o fazer teológico feminista e o fazer teológico tradicional afirmado como atual teologia oficial da Igreja”. Segundo ela, apesar de a "afirmação comum”, "Deus é Deus”, refletir "o pensamento de muita gente”, há "múltiplas significações da palavra Deus”. Ela explica: "Mesmo quando dizemos só há um Deus, essa afirmação é vivida de maneiras diferentes. Nas diferentes tradições cristãs e na vida das pessoas ordinárias, a palavra Deus, embora todos a utilizem, não significa a mesma coisa para todo mundo porque cada pessoa vivencia esse Mistério Maior à sua maneira. Nesse sentido se pode dizer que cada um faz a sua teologia embora pertençamos a uma mesma Igreja. Todos nós queremos viver o amor, mas cada um o vive à sua maneira ou segundo a sua história e interpretação”. Do mesmo modo, a teóloga católica aponta uma distinção entre ateologia feministae a teologia oficial da Igreja. "A teologia feminista nasceu da constatação da cumplicidade de certo cristianismo com a opressão e dominação das mulheres inclusive no interior da Igreja. (...) Por isso, o Deus das mulheres feministas que buscam libertar-se de muitas formas de opressão histórica não tem a mesma imagem legalista e controladora de outras teologias”, explica.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, a teóloga também comenta a situação das irmãs religiosas norte-americanas que constituem a LCWR, e que estão sendo avaliadas pelo Vaticano. Para ela, "a situação das religiosas norte-americanas é um exemplo de conflito atual entre uma parte da hierarquia católica e mulheres inteligentes, com excelente formação e atuação em diferentes meios sociais”.
Na mesma linha, ela assegura que "as teologias feministas existentes nunca foram foco de interesse do papa Francisco e nem de outros”. Nesse sentido, menciona, o fato de o Papa Francisco não aludir "ao movimento feminista que na Argentina teve e tem uma das expressões mais significativas da América Latina” é visto com estranheza.
"Nessa postura, o papa criou certa confusão nas informações, sobretudo quando afirma a necessidade de repensar a presença da mulher na Igreja, sua vocação e coisas nesse estilo, que é mais retórica do que posturas que revelem mudanças significativas. É claro que a tradição patriarcal onipresente e a máquina burocrática do Vaticano assim como das Igrejas locais não facilitam mudanças institucionais para as mulheres. Mas elas caminham apesar dos pesares, afirmando sua liberdade de existir e expressar suas necessidades e seus sonhos”, conclui.
Ivone Gebaraserá condecorada com o título de Doutora Honoris Causa das Faculdades EST por sua contribuição com o debate e a formação teológica no contexto brasileiro e latino-americano, durante o II Congresso Internacional da Faculdades EST, que ocorre entre os dias 8 e 12 de setembro. A outorga do título será no dia 10 de setembro, quarta-feira, às 19h, em São Leopoldo, RS.
Ivone Gebaraé doutora em Filosofia pela Universidade Católica de São Paulo e em Ciências Religiosas pelaUniversité Catholique du Louvain, na Bélgica. Ela lecionou durante 17 anos no Instituto de Teologia do Recife - ITER, até sua dissolução, decretada pelo Vaticano, em 1989.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como iniciou sua trajetória na Igreja e em que momento passou a ter interesse pelas ideias feministas e a defender uma postura feminista na Igreja?
Ivone Gebara - Não é a primeira vez que me fazem esta pergunta. Provavelmente por uma parte vou me repetir na resposta, mas por outra parte, cada resposta é uma resposta dada em um tempo diferente.
Gosto de dizer que vários acontecimentos contribuíram para que eu abraçasse o feminismo. No final dos anos 1970, por conta de um trabalho de formação alternativa do qual fazia parte com outros professores do Instituto de Teologia do Recife, fui levada a perceber o quanto a minha maneira de fazer teologia não incluía os sofrimentos e sonhos das mulheres. Dolorosamente, uma mulher me acordou para o fato de que meus exemplos sempre se referiam à vida de homens, e que mesmo sendo eu mulher, desconhecia a vida real das mulheres, sobretudo das pobres. Disse ‘dolorosamente’ porque eu estava habituada a fazer análises de conjuntura e tive dificuldade de aceitar o fato de que eu não incluía de forma especial a vida das mulheres operárias, camponesas, domésticas na minha abordagem. Consegui entrar num processo de conversão e abrir-me a um mundo que era meu, mas que eu não via ou não priorizava. Comecei a resgatar a minha história pessoal, a das mulheres de minha família, das minhas colegas de trabalho e perceber que meus instrumentos de análise se fundavam em chaves masculinas, visto que retratavam especialmente situações de protagonismo masculino. Muitas vezes também eram análises abstratas e teóricas.
Outro caminho foi a leitura de textos de teólogas da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Fiquei impressionada com a denúncia que faziam do mundo patriarcal e das violentas consequências sobre a vida das mulheres. Eu não usava a expressão "mundo patriarcal” e nem outras comuns ao feminismo da época. Pouco a pouco fui aprendendo uma nova linguagem que na realidade era mais um novo instrumental de análise para compreender a violência física e simbólica em relação às mulheres. Comecei a sentir e a refletir sobre as diferenças, sobre o público e o privado, sobre o uso das representações de Deus, sobre o simbolismo nas religiões. Um mundo novo se descortinava.
Interação latino-americana
Nesse tempo outras mulheres da América Latina também acordaram para o complexo problema da opressão das mulheres nas Igrejas, e pudemos nos organizar e participar de encontros internacionais nos quais partilhávamos percepções e ideias. Isto alargou muito meus horizontes feministas.
Creio que um fato decisivo em minha vida foi encontrar as ‘Católicas pelo Direito a Decidir’ do Uruguai. Isto aconteceu no início de 1980. A abordagem que faziam da opressão sexual das mulheres e sua luta contra a descriminalização e legalização do abortoabriram mais uma janela em minha reflexão.
Lembro-me de uma feminista leiga que me perguntou uma vez: o que você como teóloga tem a dizer sobre a violência sexual vivida pelas mulheres? O que tem a dizer sobre o estupro e o aborto? Em que sua teologia modifica o pensamento misógino e sexista da Igreja Católica? Confesso que na hora me senti confusa e não sabia o que responder. Percebi imediatamente que mais uma vez a teologia que eu aprendera e que eu ensinava carecia de uma transformação radical, de uma revolução antropológica, de outras referências. A teologia da libertação já me ensinara muito. Mas um novo passo precisava ser dado.
Desafios como esses foram crescendo ao longo de minha vida e me ensinando a aproximar-me das dores e das perguntas das pessoas sem ter uma resposta arrumada e doutrinária. Esse é um método teológico que chamo feminista, embora não exclusivo, pois parte das situações reais onde as pessoas se encontram, consideram a pessoa como mais importante do que a lei, a norma ou a doutrina. Somos convidadas a sentir a vida antes de pensá-la. Somos convidadas a ouvir sem dar respostas imediatas. Somos convidadas a buscar juntas saídas para as muitas situações difíceis e complexas da vida.
Esta metodologia baseada em nossas vidas passa a ser crítica das posturas hierárquicas preestabelecidas e por isso mesmo é dificilmente aceita pela cúpula das igrejas. O fato de afirmar a necessidade das mulheres de escolherem e decidirem sua vida apesar das limitações que nos constituem geraram conflitos inevitáveis e isto até os dias de hoje.
IHU On-Line - A senhora está acompanhando a situação das irmãs norte-americanas da LCWR, que estão sendo avaliadas pelo Vaticano por conta de não seguirem a doutrina da Igreja? Se sim, como vê a atuação delas nos EUA?
Ivone Gebara - A situação das religiosas norte-americanas é um exemplo de conflito atual entre uma parte da hierarquia católica e mulheres inteligentes, com excelente formação e atuação em diferentes meios sociais. São essas mulheres que constituem a LCWR. A dificuldade da hierarquia católica é de aceitar a autodeterminação dessas mulheres religiosas que, na realidade, estão conscientes de que não necessitam da aprovação de um sacerdote ou um bispo para viver o amor e a justiça aos quais se sentem chamadas. Não necessitam pedir permissão para ler, estudar, ajudar grupos e convidar pessoas para suas reuniões conforme a vontade de um bispo. Elas ousaram assumir seu direito de serem cidadãs e são punidas por isso. Na Igreja Católica Romana as mulheres e em especial as religiosas não têm cidadania total. Tenho acompanhado, na medida do possível, o complexo processo que essas religiosas estão vivendo e elas têm todo o meu apoio.
Impressiona-me o fato de que o Papa Francisco não tenha tomado uma posição mais aberta em relação a elas. Há dois anos, oCardeal Mülleras criticou e acusou de promotoras de temas radicais de feminismo. Essa acusação perdura até hoje, mesmo se outras palavras são usadas. A cúpula eclesiástica teme ser acusada de misoginia e se defende, mas seu comportamento é mais do que misógino. Infelizmente eles se apegam a um incrível biologismo ou à consideração da anatomia como destino. Deduzem do fato de Jesus de Nazaré ser do sexo masculino argumentos em favor da exclusão das mulheres. E nessa linha dão mais importância à função sacerdotal da qual Jesus não fez parte em detrimento de uma compreensão mais ética do Cristianismo onde dimensões inclusivas e múltiplas poderiam ser acentuadas. Jesus não pertencia à elite sacerdotal de Israel. Ao contrário, a criticou e tomou distância em relação a ela. Jesus levou uma vida de proximidade com homens, mulheres, crianças, judeus e estrangeiros. Com eles e elas viveu pregando através de sua vida o Reinado de Deus através de ações concretas capazes de modificar a vida das pessoas. Isso lhe valeu incompreensões, injúrias e a crucifixão.
IHU On-Line - O que diferencia a teologia feminista da teologia, ou que aspectos a teologia feminista agrega à teologia, considerando que Deus é Deus e não se trata de uma discussão de gênero apesar de nos referirmos a Deus Pai?
Ivone Gebara - Há uma grande diferença entre o fazer teológico feminista e o fazer teológico tradicional afirmado como atual teologia oficial da Igreja. A primeira coisa que quero comentar é a afirmação comum "Deus é Deus” presente na pergunta e que reflete o pensamento de muita gente. Chamo a atenção para o fato das múltiplas significações da palavra Deus. Mesmo quando dizemos só há um Deus, essa afirmação é vivida de maneiras diferentes. Nas diferentes tradições cristãs e na vida das pessoas ordinárias, a palavra Deus, embora todos a utilizem, não significa a mesma coisa para todo mundo porque cada pessoa vivencia esse Mistério Maior à sua maneira. Nesse sentido se pode dizer que cada um faz a sua teologia, embora pertençamos a uma mesma Igreja. Todos nós queremos viver o amor, mas cada um o vive à sua maneira ou segundo a sua história e interpretação. Para tomar exemplos dos Evangelhos, a teologia de uma mulher que sofre de fluxo de sangue não é a mesma daquela do fariseu que entra no Templo e se afirma como justo. A teologia da Inquisição não é a mesma dos Direitos Humanos defendida hoje por tantas pessoas.
Teologia tradicional x teologia feminista
Nessa linha quero distinguir a teologia feminista da teologia oficial da Igreja. A teologia feministanasceu da constatação da cumplicidade de certo cristianismo com a opressão e dominação das mulheres inclusive no interior da Igreja. Nasce da consciência de que as mulheres são apenas formalmente "sujeitas de direitos”. Nasce da constatação de que a opressão significa a consideração da mulher como sendo criada subalterna ao homem e, mesmo quando se fala em complementar se entende muitas vezes subalterna. Não podemos nos esquecer do mito de Adão e Eva criada de uma de suas costelas. Isto tudo leva à formulação de interpretações e doutrinas que reforçam certos estereótipos que entregam ao masculino o poder de decisão inclusive sobre nossas vidas.
As teologias feministas todas nascidas das estruturas patriarcais que ainda continuam muito presentes em nós tentam propor mudanças pessoais e coletivas que possam de fato incidir sobre o coletivo ou sobre a vida social. As mudanças são lentas, mas a cada situação é preciso rever o que estamos querendo. Por isso, o Deus das mulheres feministas que buscam libertar-se de muitas formas de opressão histórica não tem a mesma imagem legalista e controladora de outras teologias. A própria luta de muitos grupos de mulheres justifica a existência das teologias feministas e sua pertinência mesmo minoritária nos dias de hoje.
IHU On-Line - Como a senhora avalia os avanços nas discussões de gênero, considerando que os debates iniciais tratavam especialmente das mulheres, mas posteriormente avançou-se para a defesa dos direitos LGBT, fala-se também em transgênero e, inclusive, mais recentemente, em terceiro gênero? Aliás, a Alemanha criou uma categoria chamada terceiro gênero para os pais poderem registrar os filhos como "masculino”, "feminino” ou "indefinido”. Para onde essa discussão está nos levando?
Ivone Gebara - Este não é o espaço para explicar como o conceito gênero se tornou um instrumento de análise do feminismo. Há uma longa história. Em linhas gerais, quando se falava de gênero se pensava na existência de apenas dois gêneros: o masculino e o feminino. As outras experiências humanas como a dos bissexuais, transgêneros e indefinidos não apareciam. Alguns médicos europeus e norte-americanos depararam com a realidade dos bebês que nasciam com o sexo biológico indefinido. Precisava-se esperar um bom tempo até que os pais e mesmo a criança decidissem de seu gênero através de cirurgias ou outros tratamentos. As famílias e também os registros de nascimento eram afetados por essa realidade inesperada. Por isso países como a Alemanha introduziram a opção sexo "indefinido” para se dar o tempo necessário para uma provável decisão.
Sem dúvida estamos avançando na questão à medida que descobrimos novos aspectos da complexa sexualidade humana que não pode ser mais reduzida a um esquema binário: ‘ou isso ou aquilo’. Mas, junto com os avanços surgem novos problemas de identidade, novas situações, novos desafios. Tudo isso faz parte da condição humana e da vida em sociedade que nos convida cada dia a tentar compreender-nos de novo. E nessa compreensão ajustar nossa linguagem, nossos sentimentos, nossas posturas políticas e leis sociais.
IHU On-Line - O feminismo ainda tem algo a dizer nos dias de hoje?
Ivone Gebara - Pelo que expus acima, minha resposta é afirmativa, embora tenha de convir que a forma e os desafios do feminismo sejam diferentes nos tempos atuais. Muitas vezes as lutas feministas não aparecem ligadas à tradição primeira do feminismo. Refiro-me, sobretudo, às novas gerações de mulheres que lutam por seus direitos. Assistimos, por exemplo, à reação de mulheres ao estupro em série feito por um famoso médico de São Paulo, agora preso. As que o denunciaram, na realidade, não se diziam feministas, mas tinham consciência da dignidade de suas vidas como mulheres. Em muitas universidades, grupos vêm denunciando o estupro, antes considerado como coisa comum e que acabava sempre na impunidade. Hoje, em diferentes universidades, as mulheres estão mais lúcidas e mostram a cara para denunciar os agressores.
Hoje, igualmente, o tráfico de mulheres e a exploração das meninas por grupos nacionais e internacionais têm tido um alerta grande de ONGs, universidades, governos e igrejas. Isto não é chamado de feminismo, mas na realidade tem a ver com as lutas feministas do passado e do presente que ajudaram na conscientização de vários problemas e afirmaram a dignidade das mulheres. As conquistas do feminismo são cotidianas e se manifestam em políticas públicas em favor das mulheres, políticas fruto de suas próprias lutas e em mil e uma atividades nas quais o respeito às mulheres é garantido.
IHU On-Line – Em linhas gerais, como avalia o pontificado de Francisco? Há espaço para a teologia feminista neste pontificado?
Ivone Gebara - De uma maneira geral e bastante rápida, pode-se dizer que os feminismos e as teologias feministas existentes nunca foram foco de interesse do papa Francisco e nem de outros. É claro que meu julgamento se apoia em suas posturas públicas. É estranho que nunca aludisse ao movimento feminista que na Argentina teve e tem uma das expressões mais significativas da América Latina. Da mesma forma não menciona a existência de teólogas feministas nem na América Latina, nem em outros continentes, quando sabemos o quanto elas escreveram, ensinaram e até foram perseguidas pela Igreja Católica nos séculos XX e XXI.
Não creio que esse silêncio seja real desconhecimento dos fatos, mas sim uma postura político-eclesiástica. Não falar de alguém ou de um movimento mundial, tentar até ignorá-lo é não permitir que ele apareça na sua força histórica. É não dar-lhe importância e não considerá-lo como algo que poderia trazer alguma contribuição para a Igreja. Nessa postura, o papa criou certa confusão nas informações, sobretudo quando afirma a necessidade de repensar a presença da mulher na Igreja, sua vocação e coisas nesse estilo, que é mais retórica do que posturas que revelem mudanças significativas. É claro que a tradição patriarcal onipresente e a máquina burocrática do Vaticano assim como das Igrejas locais não facilitam mudanças institucionais para as mulheres. Mas elas caminham apesar dos pesares, afirmando sua liberdade de existir e expressar suas necessidades e seus sonhos.
http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=82401

9.09.2014

O Oriente antecipou a ciência ocidental?

Casos como o de Abu Rayhan al-Biruni, que antecipou conhecimentos atribuídos a Copérnico em cinco séculos, indicam que pensadores importantes podem ter sido esquecidos
por Paulo Yokotaciência oriental
iD-Stanley / Flickr
Estátua de Abu Rayhan al-BiruniEstátua de Abu Rayhan al-Biruni no parque Laleh, em Teerã, no Irã
Os estudos recentes divulgados pelas revistas científicas de alto prestígio, como a Science, mostram a extensão de algumas lacunas históricas existentes na cultura Ocidental, pelo desconhecimento das contribuições de outras regiões, como fica explicito no artigo elaborado por Richard Stone publicado em junho último. Uma ponta deste tipo de iceberg começa a ser vista, quando S. Frederick Starr, presidente da Central Asia-Caucasus Institute da Johns Hopkins School of Advanced International Studies de Washington, nos Estados Unidos, apresentou recentemente informações de alta relevância na conferência sobre o período medieval da Ásia Central. Nomes pouco conhecidos fora dos círculos restritos, como Abu Rayhan al-Biruni do atual Uzbequistão, mostram que mentes privilegiadas teriam contribuído para o Renascimento Oriental, que se observou a partir de 800 até 1.500 depois de Cristo, muito antes da Renascença na Europa. Como as antecipações dos conhecimentos atribuídos a Copérnico cinco séculos depois, pelo qual a Terra orbita em torno do Sol, ou intuindo a noção até da existência das Américas com base na lógica, mesmo que al-Biruni nunca tenha navegado por oceanos.
É compreensível que o Ocidente pouco conhecesse do que ocorreu na Ásia Central desde a Antiguidade, pois ficou inibido pela pretensão que tendia a desconsiderar outras culturas como a muçulmana ou as asiáticas. A Rota da Seda que ligou Xian, a antiga capital da China aos árabes, chegando até Istambul na atual Turquia, passando pela Ásia Central, permitiu florescer importantes grupos de fecundos pensadores ao longo desta rota, ao unir a Ásia à Europa. Muitos antigos povos em todo o mundo, entre eles asiáticos, se interessavam pela astronomia, o que permitiu avanços nos conhecimentos como da matemática, com a acumulação de dados e uso de uma lógica sofisticada e rigorosa.
Há que se lamentar sempre as destruições das bibliotecas como de Alexandria no Egito e Constantinopla na capital do Império Otomano cujos acervos deveriam conter conhecimentos importantes para a humanidade, acumulados ao longo da história, por povos de tradições diferentes dos ocidentais.
Joseph Needham, da Universidade de Cambridge, certamente foi o pioneiro a interessar-se pelo precioso cabedal de conhecimentos que foram reunidos ao longo da Rota da Seda, cujos documentos são mantidos na instituição que ele organizou na Inglaterra. O seu foco de atenção estava centrado nas contribuições chinesas em matéria de conhecimentos e avanços tecnológicos ao longo da história, quando existem muitos outros.
Como sempre, há estudiosos que são céticos sobre as contribuições medievais para as descobertas acadêmicas consideradas modernas. Outros concordam, no entanto, que havia mentes brilhantes que chegaram aos princípios da álgebra e trigonometria, a invenção do algoritmo e do astrolábio, e até dos fundamentos da medicina moderna, e entre eles al-Biruni era certamente um destaque.
S. Frederick Starr, um arqueólogo pela prática, pois efetuou dezenas de viagens à Ásia Central, está na vanguarda de um movimento acadêmico para documentar o Renascimento Oriental e os fatores que estimulavam os que participaram dele. Situados na encruzilhada das culturas vibrantes da China, Índia, Oriente Médio e Europa, por serem de tradição comercial sabiam calcular de forma surpreendente desde a tenra idade.
Al-Biruni era versado não só em ciências exatas e antropologia, como na farmacologia e filosofia. Embora somente 31 dos seus textos tenham sobrevivido ao tempo, seria o autor de nada menos de 150. Nascido em 973 DC no atual Uzbequistão, usou o sol do meio dia para calcular a latitude de sua terra natal quando tinha somente 16 anos. Adulto, viajou muito e desenvolveu uma técnica para medir a circunferência da Terra, usando um astrolábio, trigonometria esférica e a lei dos senos. Seu cálculo difere somente em meros 16,8 quilômetros dos atuais, utilizando-se meios mais sofisticados. Ele introduziu o conceito de gravidade específica e aplicou em dezenas de minerais e metais, fazendo medições precisas com três casas decimais, o que os europeus só obtiveram no século XVIII.
Ele se preocupou com a determinação meticulosa das coordenadas para definir a direção de Meca de todos os lugares para os quais viajou, visando as orações islâmicas, notadamente na Eurásia. Depois de marcar o conhecido num globo, descobriu que três quintos da superfície da Terra não tinham sido explorados. Ele concluiu que uma ou mais massas de terra deveriam estar entre a Europa e a Ásia, não havendo nada para impedir a existência de terras habitadas, suspeitando do que seriam as futuras Américas, assunto que desperta muitas disputas.
http://www.cartacapital.com.br/internacional/o-oriente-antecipou-a-ciencia-ocidental-1516.html

9.01.2014

Sebastião Salgado: Biografia Familiar e Globalização - ponto de mutação da mãe Gaia

De olho no Genesis
Por Simone Amorim, de Veneza - Entrevista - Rev. Planeta - Edição 497  

Na Antártica, Sebastião Salgado fotografou-se refletido no olho de um elefante-marinho bebê.

No fim do mundo, na Antártica, Sebastião Salgado fotografou-se refletido no olho de um elefante-marinho bebê (veja acima). Foi como se um elo da cadeia da evolução se fechasse diante do fotógrafo brasileiro.
O mineiro Sebastião Salgado é um dos fotógrafos mais famosos do mundo, celebrado pelo virtuosismo dramático das suas fotos em preto e branco, como em Genesis, seu último trabalho, de 2013, que aborda a natureza intocada nos lugares mais remotos do planeta. Em 1969, esse mineiro de Aimorés, ex-militante do movimento estudantil, emigrou desgostoso para a França com a mulher, a então estudante de arquitetura Lélia Wanick Salgado, a fim de fazer uma tese de pós-graduação em economia. Na Europa, trabalhou como economista na Organização Internacional do Café e participou de missões do Banco Mundial. Fez suas primeiras fotos a trabalho, na África.
Em 1973, Salgado virou fotógrafo independente e construiu uma reputação sólida nas agências Sygma, Gamma e Magnum, na França. Hoje, dirige sua própria agência, a Imagens da Amazônia.O casal, que tem dois filhos, continua a viver em Paris. Na abertura da exposição Genesis, na casa Tre Oci, em Veneza, Salgado e Lélia conversaram com a PLANETA sobre a inspiração de seu trabalho, a preparação das reportagens, as dificuldades enfrentadas em viagens e o sempre delicado momento de escolher as melhores entre milhares de fotos. Para além das imagens, o casal está empenhado na obra do Instituto Terra e no Projeto Terrinha, desenvolvidos na fazenda da família, no Vale do Rio Doce, em  Minas, onde estão sendo plantados 2,5 milhões de árvores nativas da Mata Atlântica em terrras devastadas. Ambos os projetos promovem a silvicultura e a educação ambiental na comunidade.
Como a fotografia nasceu para você?
Sebastião: A minha fotografi a nasceu lá pelo interior de Minas Gerais, com as colinas e as montanhas fantásticas da minha região. Seguramente, foram aquelas luzes do período anterior às chuvas, as nuvens fabulosas,  os raios fantásticos, as montanhas sem fim. Eu tinha o sonho de ir ver mais longe. Acho que foram a luz e o relevo de Minas que entraram na minha fotografi a. Quando olho uma fotografi a
minha, vejo um pouco dessa luz por tudo.
Como é viver longe do Brasil?
Sebastião: Foi difícil morar tanto tempo fora. Quando eu saí, em 1969, havia um Brasil, e hoje há outro. As cidades tinham  se modificado e as pessoas tinham envelhecido. Deixei os meus pais ainda fortes, jovens, e reencontrei-os envelhecidos. Foi muito difícil. A sina de refugiado é difícil. Acho que os países que recebem refugiados e imigrantes têm que respeitálos porque eles deixam muito para trás quando saem, perdem muito.
É difícil se destacar como fotógrafo estrangeiro em outro país?
Sebastião: Não, não foi. Os franceses têm um grande sentido de solidariedade. Fui bem-aceito e respeitado, tive a possibilidade de trabalhar. A minha base de trabalho é a França, mas o meu trabalho é o mundo. Eu viajo sempre. No projeto Genesis eu voltava à França para fazer edição, reabastecer a energia vital com a família e continuar correndo o planeta.
Como nasceu o projeto Genesis?
Sebastião: O projeto nasceu em Aimorés, no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. Quando começamos a plantar uma floresta na fazenda dos meus pais, voltou a vontade de fotografar. Naquele momento eu tinha   praticamente abandonado a fotografi a. Voltei fotografando a natureza. Acho que a natureza é uma prioridade global. Temos de priorizar o ambiente como fazemos com a redistribuição da riqueza e o fim da pobreza. O ambiente é uma necessidade suprema.
Qual é o critério para escolher os lugares visitados no Genesis?
Lélia: Fizemos pesquisas durante dois anos e elegemos 32 destinos. São lugares ainda puros, que não sofreram transformações. Procuramos animais selvagens, não domesticáveis, e comunidades que vivem de maneira original, distantes das sociedades de consumo em que vivemos. Organizar o acesso a esses lugares é sempre complicado. Por exemplo, no Pantanal, para chegar a alguns lugares tivemos de contar com fundações, ONGs, procurar guias, etc.
E a logística, a alimentação?
Lélia: Levamos alimentação para onde vamos. Até porque nesses lugares não há lugar para comprar comida. Na Amazônia, os índios caçam para eles e, logicamente, não têm a obrigação de caçar para nós. Também não podemos dar-lhes a nossa alimentação, para não interferir na sua cultura. Em algumas expedições, havia 20 mulas para carregar tudo e forragem para alimentar os animais. Organizar a equipe, decidir o número de pessoas  que viaja conosco, também não é fácil. Em Galápagos, no Equador, alugamos um barco durante dois meses. Eram o capitão e mais três pessoas. Dois caminhavam conosco, um guia e um ajudante com as mochilas. Às vezes, o barco nos deixava em um lugar, passávamos dois ou três dias sozinhos e ele ia nos pegar em outro ponto.
Como conseguir transporte?
Lélia: O mais difícil é caminhar, subir e descer dentro da floresta. Foi muito complicado caminhar na África quando Sebastião foi fotografar os gorilas das montanhas de Ruanda e do Congo. É bem difícil caminhar atrás de gorilas. Temos de caminhar muito rápido entre aclives e declives e há várias plantas que se enredam nos pés. Você cai bastante.
Como se faz a edição em meio a tantas fotografias do Genesis?
Lélia: Cada vez que voltamos de uma reportagem, fazemos um recorte de uma quantidade de imagens. Essas imagens são as que vão para as revistas. Em seguida, fazemos ampliações grandes das melhores e guardamos. No fim, escolhemos as mais representativas para o projeto. A quantidade fi nal, eu escolho. Eu fiz o livro. O Genesis tem mais de 500 fotos e a exposição, quase 250. Há duas versões do livro, o livro grande e o menor, que são completamente diferentes. O livro menor é como a exposição, dividido em cinco seções. Já o grande é mais estético, com uma foto atrás da outra seguindo certo caminho. Como era um livro para ser vendido no Hemisfério Norte, fiz para ser vista uma foto por dia. Começa com fotos do inverno, com lugares frios, vai esquentando de acordo com o passar do ano e termina voltando para o frio.
Como foi a mudança das câmeras analógicas para digital?
Lélia: Depois dos atentados de 11 de Setembro, ficou complicado passar pelos radares dos aeroportos com filmes. Como o Sebastião viajava com 500 filmes, tinha de abrir a bolsa e mostrá-los à polícia para eles não passarem pelo raio X, que estraga a qualidade dos filmes. Isso era muito complicado, uma cena em cada aeroporto. Era assim até ele fazer uns testes com algumas câmeras novas e resolver passar a fotografar no modo  digital. Facilitou muito! Antes carregava uma mala com quilos de filmes e agora carrega uma caixinha cheia de cartões de memória.
O que você sentiu quando fotografou um gorila que se viu refletido na lente da câmera?
Sebastião: Foi uma coisa muito forte, muito importante. Eu estava fotografando no Parque Virunga, em Ruanda, e um jovem gorila veio na minha direção. Eu estava com câmeras de médio formato, que são câmeras grandes com lentes planas na frente. Quando você olha direto numa lente, é como um espelho. Ele fez um movimento e identificou o movimento. Ele estava se vendo no espelho! Chegou pertinho de mim e começou a colocar o dedo na boca e a retirar, e a identificar que era o dedo dele. Estava se vendo pela primeira vez e tendo a consciência da imagem vista em reflexo. Eu fiquei emocionado. Senti-me dentro da minha espécie, há 50 mil anos, tomando água num riacho e vendo minha imagem pela primeira vez. Eu estava presenciando um dos elos da cadeia da evolução na minha frente.
Na Antártica, você surge refletido no olho de um elefante-marinho.
Sebastião: Exatamente. Nessa foto eu estou refletido no olho desse bebê de elefante-marinho na Ilha Geórgia do Sul, dentro do Círculo Polar Antártico. É uma volta completa, não? Qual é a mensagem de Genesis? Sebastião: Gostaria que as pessoas vissem nessa exposição uma compreensão do planeta. Gostaria que respeitassem o planeta, admirassem-no e compreendessem que também são parte dele. Nós também somos natureza.
Você elogia os parques naturais dos Estados Unidos. E a Amazônia?
Sebastião: Os americanos realmente conseguiram guardar, desde o século XIX, uma grande quantidade de terras convertida em parques nacionais. São territórios realmente protegidos, inclusive no Alasca. O Brasil precisa tomar essa posição. O tratamento que americanos, canadenses e australianos deram às populações indígenas foi uma barbaridade, uma chacina. O Brasil não. Temos uma instituição chamada Funai que consegue proteger boa parte das tribos indígenas. O Brasil é o único país do mundo que possui 12,5% do território com população indígena.
Temos comunidades ainda sem contato com a civilização. A Funai trata de protegê- las da melhor maneira possível. Como nasceu o Instituto Terra?
Lélia: Quando fotografamos Os Imigrantes, houve momentos difíceis, duros, como o massacre dos hutus contra os tutsis, em Ruanda. A gente saiu abalada. Nessa época, os meus sogros, idosos, donos de uma fazenda no Vale do Rio Doce, em Minas, quiseram que a gente a comprasse. Compramos, mas não sabíamos o que fazer com ela. Então, começamos a observar que a terra estava degradada, e tive a ideia de replantar a floresta. O Sebastião adorou e começamos a trabalhar. Temos um amigo, engenheiro florestal, que fez um projeto. Ele viu quais espécies da Mata Atlântica existiam antes. Estamos plantando 2,5 milhões de árvores em 700 hectares. Começamos com o nosso dinheiro, montamos o projeto e saímos atrás de patrocinadores. Recebemos ajuda da administração da Emilia Romagna, da província de Roma, do Friuli, de Veneza e da cidade de Parma. Também dos EUA, França e Espanha. Quinze anos depois, temos dois milhões de árvores, uma floresta “criança”, maravilhosa. E o Projeto Terrinha? Lélia: A implantação da floresta trouxe ideias. Tínhamos que difundir a silvicultura que estávamos implantando na região. Então, focamos na educação ambiental. Isso significa pensar nas crianças. O Terrinha é um projeto de conscientização ambiental para crianças nas escolas.
http://revistaplaneta.terra.com.br/secao/entrevista/de-olho-no-genesis