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5.18.2014

Peabiru, caminhos rústicos usados por vários povos antigos

Rede de estradas. Trilhas e passagens que cruzavam a região são conhecidas há séculos por índios e viajantes e foram usadas pela expedição já lendária de Cabeza de Vaca para chegar até Assunção, no Paraguai
     
Por Maria Cristina Dias Dos Reis Lima - História

Onde começam ou onde terminam, quando foram abertos e com objetivos, que povos foram pioneiros... São muitas as dúvidas e histórias sobre os chamados Peabirus, caminhos rústicos, seculares, que cortam o Centro/Sul do País, fazendo uma ligação do Oceano Atlântico com o interior do Brasil até os Andes. Mas eles compõem uma rede que já era conhecida e usada por índios e - quem sabe? - outros povos mais antigos, muito antes da chegada por aqui dos primeiros conquistadores
portugueses e espanhóis. Estudioso do assunto há mais de 40 anos, o geógrafo e professor Olavo Raul Quandt esclarece alguns fatos sobre estes caminhos e garante que o lendário adelantado espanhol Alvar Nuñes Cabeza de Vaca, que em 1541 atravessou a América do Sul a pé, com uma comitiva de cerca de 400 homens, desembarcou da Baía da Babitonga e cruzou o chamado “Caminho Velho”, entre Joinville e Garuva, rumo ao Paraguai, onde assumiu o governo da Província de La Plata. Com isto, questiona as teorias vigentes, que dizem que o governador desembarcou na foz do rio Itapocu, em Barra Velha, e de lá partiu para sua longa viagem.
  Cenário de beleza e mistérios. No passado, região era habitada por índios guaranis na maior parte do litoral, caingangues e xoclengues. Mas os botocudos evitavam o Monte Crista, isso permitia que os guaranis usassem o caminho
Quandt explica que estes “caminhos rústicos”, chamados Peabirus, já eram percorridos pelos índios das nações tupy (os guaranis) e gê (xoclengues, caingangues, também conhecidos como botocudos) há centenas de anos e depois foram usadas por espanhóis e portugueses rumo ao interior. Eram picadas, veredas não apropriadas para o uso de rodas, embora, mais tarde, em algumas áreas planas, isso fosse possível. Em alguns trechos, como na subida para o Monte Crista, entre Joinville e Garuva, contavam com escadarias feitas de pedras cortadas, o que, segundo o pesquisador, é indício que são anteriores aos índios que as usavam. “Os guaranis já percorriam estes caminhos. E antes deles outras civilizações. Mas os guaranis não trabalhavam com pedras, não tinham ferramentas para a fazer a escadaria do Monte Crista”, garante.
Os vários caminhos cortavam o continente. Quandt revela que há anos, pesquisando a genealogia da família, descobriu que o bisavô Johann Mehl tinha uma pousada em Rio Negro, onde os tropeiros podiam parar, passar a noite, cuidar dos cavalos. O local ficava em um destes Peabirus, no sentido Norte/Sul, que ligava Viamão, no Rio Grande do Sul, a Sorocaba, em São Paulo. “Ele estava na rede de caminhos rústicos da América do Sul, que atravessa o continente”, constata ele que pesquisa a genealogia da família desde 1953, a partir de  1973 começou a se interessar também pelos Peabirus e hoje tem três livros publicados sobre o assunto.
Havia ainda “estradas” (não na acepção atual da palavra) no sentido Leste-Oeste, como a que ligava a Baía da Babitonga até Assunção, passando pelo Monte Crista e que, segundo o pesquisador, foi trilhada por Cabeza de Vaca e seus homens. “O caminho do Monte Crista é um trechinho do que Cabeza de Vaca percorreu. Ele passou por ali”. E várias picadas paralelas e atalhos ligando uma a outra.
A Estrada Velha de Três Barras também fazia parte dessa rede. Mas não a estrada que passa pelo Rio Bonito, e que hoje é a rua 15 de Novembro – esta, segundo o pesquisador, foi aberta por Leónce Aubé, representante do príncipe de Joinville, na segunda metade do século 19. Trata-se de outro caminho, que parte de um braço do rio Palmital, o rio do Saco, e segue até a atual cidade de Tijucas do Sul. Essa estrada, mais antiga, tinha dois nomes, de acordo com a referência: Caminho dos Ambrósios, (Tijucas do Sul era o Campo dos Ambrósios) ou Estrada Três Barras, para quem vinha do Planalto. É ela quem sobe para o Monte Crista e de lá segue para Tijucas do Sul e ainda pode ser percorrida.
 Ainda estão lá. Em alguns trechos, como na subida para o Monte Crista, há escadarias feitas de pedras cortadas, anteriores aos índios.
Começo na baía Babitonga
Para afirmar que o início da epopeia de  Cabeza de Vaca nestas terras foi a baía Babitonga, Olavo Raul Quandt se apoia no manuscrito “Información hecha por el Gobernador del Río de la Plata, Cabeza de Vaca, donde mediante un interrogatorio de 87 preguntas se dan a conocer todos los sucesos que ocurrieron em la Armada y expedición de dicho Governador hasta su llegada a la Asunción del Paraguay, em cuyas declaraciones se articulan posesiones de outros territorias”, cujo original se encontra no Archivo General de Indias, em Sevilha, na Espanha. “É o documento principal que comprova que o Cabeza de Vaca não entrou pelo Itapocu, e sim, pela baía Babitonga”, explica, mostrando a cópia do documento.
O texto é um depoimento do próprio Cabeza de Vaca, feito em 1543. Nele, o adelantado (como ele é chamado) declara que a entrada por terra, em direção a Assunção, ocorreu na “Baya de Ytabuan”. “Trata-se da da baía de São Francisco, também conhecida como Babitonga, situada entre a Ilha de São Francisco e o continente. Ytabuan é um topônimo preservado até os nossos dias em sua variante 'Itapoá', que é o nome do atual município situado no setor norte da terra firme”, escreveu Quandt em seu livro “O Caminho Velho e o Adelantado”, de 2012. No documento, Cabeza de Vaca menciona o local seis vezes  como ponto de partida para a caminhada de mais de quatro meses rumo ao Paraguai.
Segundo o pesquisador, o adelantado citou em outro documento o nome do rio “Itabocu”, o que teria causado o equívoco. Porém, ele destaca que o rio Itapocu, na época, tinha o nome de rio dos Dragos devido à quantidade de jacarés do papo amarelo que havia em suas águas. Além disso, era comum não colocar a localização exata de pontos estratégicos para manter o sigilo sobre elas. “Ele não podia publicar o nome exato”, afirma”, lembrando que no caso do material encontrado no  Archivo General de Indias, não havia esse impedimento, já que ele era restrito, e não de uso público.
Rogério Souza Jr/ND
 Pesquisa. A partir de 1973, Olavo Raul Quandt começou a se interessar também pelos Peabirus e hoje tem três livros publicados sobre o assunto
Trilhas de pedras no Monte Crista
Ainda hoje, muitos trechos ainda são identificados e usados por aventureiros - e repleto de lendas. Um exemplo é o que leva ao cume do Monte Crista. Olavo Quandt conta que os Tupis-guaranis e os caingangues e xoclengues eram inimigos e viviam em áreas distintas: os guaranis na maior parte do litoral (com exceção de um trecho) e os caingangues e xoclengues no Alto Vale, foz do Itapocu e interior de Joinville.
Mas os chamados “botocudos” evitavam o Monte Crista. “Os índios eram supersticiosos e, por alguma razão, os xoclengues evitavam aquele trecho. Isso permitia que os guaranis usassem esse caminho ”, afirma o pesquisador, lembrando algumas das lendas que se ouvem no local, como a dos raios que caíram duas vezes, no mesmo dia, no mesmo pinheiro.
No livro “Era uma vez um simples caminho”, a pesquisadora Elly Herkenhoff fala de histórias e mistérios que rondam não só o Monte Crista, mas também o Castelo dos Bugres. “Há muita gente que jura ter ouvido vozes, vindas dos fundos das cavernas existentes tanto no Monte Crista no Castelo dos Bugres”, escreve. E lembra a lenda de tesouros ocultos, perdidos no tempo. “No Monte Crista – assim reza a tradição – há tesouros imensos, que os jesuítas, ao serem expulsos do Brasil, ali esconderam em lugar seguro, até hoje não descoberto ou, quem sabe, já descoberto e redescoberto e mexido e remexido e saqueado há muito tempo...”. Histórias que até hoje encantam quem frequenta a região.