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11.06.2015

A democracia na Améria Latina sobreviverá contra o golpe da imprensa



  • Ignacio Ramonet: maior batalha da esquerda na América Latina é contra 'golpe midiático' 
  • Quanto a emissora Telesur, o jornalista francês do Le Monde falou sobre comunicação e avanço popular na região 

por Pedro Aguiar de Quito/Equador - Sociedade e Liberdade de Expressão

O maior confronto enfrentado na América Latina atualmente é “a batalha midiática”, desde pelo menos o ano de 2002, quando a tentativa frustrada de derrubar o governo na Venezuela deu início a um novo tipo de golpe de Estado, o “golpe midiático”, transferindo aos meios de comunicação privados o papel de partido político nas oposições aos governos.
A avaliação foi feita pelo jornalista e professor Ignacio Ramonet, ex-editor do jornal Le Monde Diplomatique, quando esteve no evento “Comunicação e Integração Latino-Americana”, realizado no Equador há algum tempo.
Organizado pelo Ciespal (Centro Internacional de Estudos Superiores da Comunicação para a América Latina), foi comemorado na ocasião os dez anos de fundação da Telesur, canal multinacional de televisão mantido por diversos governos da região. Fundada por iniciativa de alguns países, três anos após o golpe fracassado na Venezuela, a emissora nasceu com o papel de promover uma alternativa na cobertura das notícias latino-americanas, feita por jornalistas e comunicadores da própria região.
Agência Andes (arquivo/2012)
Ex-editor do 'Le Monde Diplomatique', Ignacio Ramonet é jornalista e professor espanhol radicado na França
“Nos últimos 15 anos, todos os governos progressistas que chegaram ao poder democraticamente na região vêm sendo mantidos por via eleitoral. Nenhum deles foi derrotado nas urnas. Por isso, a resistência à mudança vem sendo cada vez mais brutal, apelando para novos tipos de golpes, alguns com fachada judicial, parlamentar, e sempre com forte ajuda da mídia”, disse Ramonet, lembrando os casos do Paraguai, Honduras e investidas recentes no Equador, Argentina e no Brasil.
Ao lado de Ramonet, a presidente da empresa, Patricia Villegas, lembrou que as principais coberturas do canal até agora foram justamente em países que não participam do consórcio, como a campanha militar contra a guerrilha das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o golpe contra o presidente Manuel Zelaya, em Honduras, em 2009.
“Naquele momento, o mundo só pôde acompanhar o que acontecia em Honduras, minuto a minuto, graças ao sinal da Telesur. Porque as emissoras privadas globais ou não estavam lá, e as que estavam preferiam ignorar”, disse.
Para Ramonet, o grande mérito da Telesur ao longo dessa década foi oferecer “uma outra leitura” sobre os acontecimentos da América Latina e do mundo, fugindo das perspectivas de redes privadas como CNN, Fox News, Rede Globo, Rede Record, Jornal Folha, Jornal Estadão, Revista Veja, Jornal New York Times, Jornal El Clarin  entre outros que, para ele, seguem praticamente a mesma linha midiática.
“Estou convicto de que a CNN vai desaparecer, não por falta de capital, mas por falta de audiência”, previu Ramonet, para a plateia de jornalistas, intelectuais e estudantes reunida no auditório equatoriano. “A Telesur não tem concorrência. Esse é o sonho de qualquer canal. Porque as outras fazem mais ou menos a mesma coisa”, deixando de utilizar a criatividade e o bom senso.
'Convergência digital'
Segundo o jornalista — que é espanhol mas vive radicado na França desde 1972 —, a maior mudança na comunicação nos últimos dez anos foi a integração das várias plataformas, a chamada “convergência digital”: smartphones, tablets e computadores, que tiraram da televisão o posto de tela principal da mídia. E, se antes as inovações tecnológicas estouravamapareciam primeiro nas cidades ricas da Europa e dos EUA, aponta Ramonet, agora já são disseminadas simultaneamente nas grandes metrópoles da América Latina, Ásia, Índia, China e de outras regiões em desenvolvimento.
“As novas plataformas abandonam a continuidade que obrigava o espectador a assistir tudo linearmente; agora ele pode ver o que quiser, na ordem que quiser. Os canais que se adaptarem melhor são os que têm mais chance de sobreviver”, aponta.
Patricia Villegas enfatizou que a adaptação às novas plataformas é uma de suas maiores preocupações da Telesur. “Não adianta fazer conteúdos-espelho ou replicar informações, que se repetem de forma idêntica na TV, na web, no Facebook, no Twitter, no Google. Os conteúdos precisam ser complementares e diferentes, porque o público procura formas diferentes de informação”, disse ela.
Divulgação/Ciespal
Congresso 'Comunicação e Integração Latino-Americana' em Quito, capital equatoriana
A Telesur celebra também o início da produção de conteúdos em inglês. “Não estamos traduzindo informações, mas produzindo diretamente em inglês”, enfatizou Patricia Villegas. Segundo ela, a entrada na esfera anglófona sinaliza a intenção da empresa em ampliar sua presença global. Por enquanto restrita ao site e às redes sociais, a Telesur em inglês iniciou transmissões também como canal de televisão, com sede em Quito no Equador.
Sul geopolítico
“Na América Latina, vários intelectuais e lideranças políticas têm o vício de só ver a relação regional com o 'gigante do norte', os Estados Unidos. Mas também é extremamente importante considerar nossa relação com a China, a África, o Oriente Médio. A Telesur tem a tarefa de transportar a missão progressista da América Latina para o resto do mundo”, disse Ramonet.
Justamente por isso, Villegas diz que o canal continua expandindo seu universo de pautas para outras regiões, como o ataque da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, e mais recentemente na crise financeira da Grécia, quando o canal enviou jornalistas para Atenas e investiu na cobertura ao vivo. “Às vezes perguntam aos nossos repórteres: 'O que vocês estão fazendo aqui?'. Estamos aqui porque a nossa ideia de 'sul' não é apenas geográfica, mas principalmente geopolítica. Enxergamos a informação como um serviço, e não como mercadoria”, além de esclarecer a atual situação econômica mundial, a geopolítica dos países participantes dos Bric's, as guerras na Ásia e África, imigração para a Europa, entre outros assuntos da atualidade mundial.
“Durante muito tempo na América Latina, o jornalismo era um privilégio das emissoras privadas, e as TVs públicas ficavam relegadas à programação educativa, cultural e folclórica. Daí a importância de investir em produzir informação numa tela pública e educativa. Não se trata de um monólogo do Estado, mas de dar voz também aos grupos comunitários, como indígenas e afrodescendentes, contra a folclorização dessas comunidades”, concluiu Patricia Villegas.
Da teoria à prática
“É fundamental a teoria que reflete sobre a prática para dar-lhe sentido e compreender melhor a realidade para fazer diferente”, comentou Ramonet.
O diretor do CIESPAL, o espanhol Francisco Sierra, refletiu a tentativa de descrédito sobre a Telesur e outras mídias públicas, assim como contra as iniciativas de regulação e democratização da mídia pelos governos da “guinada progressista”, lembrou o ataque da mídia privada feito contra a campanha da Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação (NOMIC) e o Relatório MacBride da Unesco (Órgão da ONU para Educação, Ciência e Cultura), entre os anos 70 e 80.
Ele recordou o legado do comunicólogo boliviano Luis Ramiro Beltrán (falecido), que não apenas teorizou sobre a comunicação latino-americana, mas ajudou a promover fóruns e encontros internacionais para criar iniciativas práticas de alternativas midiáticas na região naquela mesma época. “É importantíssimo aprendermos e nos inspirarmos com os processos de democratização da comunicação em curso em outros países da América Latina. O congresso permite esse diálogo”, disse Pasti ao jornal Opera Mundi.
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/41125/ignacio+ramonet+maior+batalha+da+esquerda+na+america+latina+e+contra+golpe+midiatico.shtml