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9.18.2014

O que está em jogo no Brasil ?

O que há de verdadeiramente novo na candidatura da candidata do PSB significa um retrocesso não só político como civilizacional.


Escrevo esta crônica de Cuiabá, capital do Estado do Mato Grosso e que é também a capital do que no Brasil se designa por agronegócio (agricultura industrial de monocultura: soja, algodão, milho cana do açúcar), a capital do consumo de agrotóxicos que envenenam a cadeia alimentar e da violência contra líderes camponeses e indígenas que defendem as suas terras da invasão e do desmatamento ilegais. Reúno-me com líderes de movimentos sociais, um deles (indígena Xavante) chegado à reunião clandestinamente por estar sob ameaça de morte. Deste lugar e desta reunião torna-se particularmente claro o que está em jogo nas próximas eleições no Brasil.

As classes populares – o vasto grupo social de pobres, excluídos e discriminados que viu o seu nível de vida melhorado nos últimos doze anos com as políticas de redistribuição social iniciadas pelo ex-presidente e continuadas pela Presidenta – estão perplexas mas têm os pés bem assentes no chão e não me parece que sejam facilmente iludidas. Sabem que as forças conservadoras que se opõem à Presidenta estão apostadas em recuperar o poder político que perderam há doze anos. Conscientes de que a época do ex-presidente transformou ideologicamente o país, não o poderão fazer pelos meios e com os protagonistas habituais. Para pôr fim a essa época é necessário recorrer a alguém que a evoque, a candidata do PSB, o desvio contra-natura para chegar ao poder. A pouco e pouco as classes populares vão conhecendo o programa da candidata do PSB e identificando, tanto o que nele é transparente, quanto o que nele é mistificatório.
 
É transparente o regresso ao neoliberalismo que permita os lucros extraordinários decorrentes das grandes privatizações (da Petrobras ao pré-sal) e da eliminação da regulação macroeconómica e social do Estado. Para isso se propõe a total independência do Banco Central e a eliminação das diplomacias paralelas (leia-se, total alinhamento com as políticas neoliberais dos EUA e da UE). É mistificatório o recurso a conceitos como o de “democracia de alta intensidade” e de “democratizar a democracia” – conceitos muito identificados com o meu trabalho mas de que é feito um uso totalmente oportunístico – como se fosse uma novidade política quando, de fato, do que se trata é, no seu melhor, a continuação do que tem vindo a ser feito em alguns estados de que é exemplo mais notável o do Rio Grande do Sul.

Acresce a tudo isto que o que há de verdadeiramente novo na candidatura da candidata do PSB significa um retrocesso não só político como civilizacional. Trata-se da certificação da maioridade política do evangelismo conservador. O grupo parlamentar evangélico é já hoje poderoso no Congresso e o seu poder está totalmente alinhado, não só com o poder econômico mais predador (a bancada ruralista), a que a teologia da prosperidade confere desígnio divino, como com as ideologias mais reacionárias do criacionismo e da homofobia. A candidata do PSB, se eleita, levará tais espantalhos ideológicos para o Palácio do Planalto para que de lá façam a pregação do fim da política, da ilusão da diferença entre esquerda e direita, da união entre ricos e pobres. Tirando o verniz religioso, trata-se do regresso democrático à ideologia da ditadura, no ano em que o Brasil celebra o mais longo e mais brilhante período de normalidade democrática da sua história (1985-2015).

Em face disto, por que estão perplexas as classes populares? Porque a Presidenta nada faz ou diz para lhes mostrar que está menos refém do agronegócio que a candidata do PSB. Nada faz ou diz para mostrar que é urgente iniciar a transição para um modelo de desenvolvimento menos centrado na exploração voraz dos recursos naturais que destrói o meio ambiente, expulsa camponeses e indígenas das suas terras e assassina os que lhe oferecem resistência. Bastaria um pequeno-grande gesto para que, por exemplo, os povos indígenas e afrodescendentes se sentissem protegidos pela sua Presidente: mandar publicar as portarias de identificação, de declaração e de homologação de terras ancestrais, portarias que estão prontas, livres de qualquer impedimento jurídico e apenas engavetadas por decisão política.

O que as classes populares e os seus aliados parecem não saber é que não basta querer que a Presidenta ganhe as eleições. É necessário vir para a rua lutar por isso. Ao contrário, os adversários dela sabem isso muito bem.

http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/O-que-esta-em-jogo-no-Brasil/31807

Violência nos partos de nascimentos, até quando?

De Douglas Belchior - feminino

A vivência e a troca de experiências que a luta social nos proporciona é extremamente enriquecedora.

Há debates e aprofundamentos em determinados temas que estão muito além de livros e de frias salas de aula.

E há textos que doem.

O debate sobre violência obstétrica é um dessas temas. Corriqueiro, presente, naturalizado. E que precisa ser questionado e combatido com muita radicalidade. Bem como denuncia a Professora Vanessa Gravino.

Leiam e sintam.

 Gravida

Por Vanessa Gravino

A construção de uma sociedade mais justa e igualitária, também passa pelo direito de parir e nascer com dignidade, sem que o parto seja uma ameaça à vida das mulheres e das crianças. Hoje, no Brasil, uma a cada quatro mulheres sofre ou sofreu algum tipo de violência durante o parto. Além disso, 90% das mortes de mulheres grávidas poderiam ser evitadas se elas recebessem atendimento adequado. No entanto, quando tocamos nesta questão, esbarramos em pontos relevantes: a mercantilização da saúde e o preconceito racial, destacando que as mulheres que mais sofrem ou morrem por decorrência da gravidez são mulheres negras.

No que se refere à mercantilização da saúde, segundo dados do Ministério da Saúde, mais de 50% dos partos realizados no Brasil atualmente são cesáreas. Se tratarmos apenas das redes particulares este número sobe para, aproximadamente, 83%. A cesárea é uma cirurgia, deve ser utilizada apenas em casos extremos, para salvar vidas, não pode ser regra. No entanto, é muito comum, médicos e médicas orientarem a realizar cesárea colocando-a como “mais segura” que o parto normal. Esta orientação não é acaso. Um parto normal pode demorar horas, já a cesárea é realizada em pouco mais de uma hora. Algumas delas são feitas quando a mulher entra em trabalho de parto, mas os médicos não querem esperar e forçam psicologicamente a mulher para que aceite a cirurgia da cesárea, com argumentos sem qualquer embasamento científico. A mulher, refém daquela situação, aceita tal cirurgia. Outras ainda são agendadas antes mesmo da mulher estar em trabalho de parto, o que é ainda pior, pois o bebê nem “amadureceu” dentro da mulher para ser arrancado do útero. Esses profissionais (se é que podemos chamá-los assim) ganham muito dinheiro em pouco tempo de trabalho. Não importa aqui se a vida das mulheres e dos bebês está colocada em risco, pois enxergam a saúde como mercadoria. Infelizmente esse quadro de violência obstétrica é rotina nos hospitais privados.

A pressão pela realização da cesárea sem necessidade, a violência psicológica que humilha mulheres, principalmente mulheres negras, numa situação de vulnerabilidade é o que chamamos de violência obstétrica. Nos hospitais públicos também há muita violência obstétrica apesar do índice de cesárea ser menor. Acontece que no sistema público há inúmeras intervenções desnecessárias ao longo do trabalho de parto. Dentre elas estão a episiotomia (corte entre a vagina e o ânus para facilitar a saída do bebê), falta de analgesia (caso a mulher solicite), pressão sobre a barriga para empurrar o bebê (manobra de Kristeller), lavagem intestinal, retirada de pelos pubianos, exames de toque frequentes para verificar dilatação, deixar a mulher deitada durante horas em posições desconfortáveis esperando o parto, o “pedido” para se calar quando as mulheres gritam e até ameaças à mulher e à criança.

As mulheres negras sofrem consequências ainda maiores. O preconceito racial no Brasil faz com que a violência obstétrica, em relação a essas mulheres, carregue as marcas do Brasil escravocrata. Elas escutam frases e comentários racistas e humilhantes na hora do nascimento de seus filhos e filhas. É comum os hospitais do SUS deixarem mulheres negras esperando mais tempo, por acreditarem que “as negras são mais resistentes à dor”, ou ainda, porque o momento do parto é o momento de pagarem pelo “ato” cometido, ou seja, “na hora de transar foi bom, agora aguenta”.

A luta feminista, negra e de direitos humanos deve passar – também – pela busca de um parto humanizado para as mulheres negras e trabalhadoras. Um parto que respeite sua fisiologia e sua autonomia. Onde as mulheres possam de fato ter informações verdadeiras sobre as formas de nascer, para que suas escolhas estejam pautadas não pela mercantilização da saúde, mas por evidências científicas.

Por mais casas de parto!

Por mais equipes humanizadas em maternidades!

Por apoio aos profissionais humanizados que estão no mercado de trabalho!

Infelizmente esta ainda não é uma realidade em nosso país. Mas, é um tema que devemos abordar com extrema urgência no interior dos debates de violência contra as mulheres e de extermínio da população negra.

 http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2014/09/16/violencia-obstetrica-ate-quando/