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9.06.2015

Crianças estão entre as vítimas dos efeitos nocivos dos agrotóxicos no Brasil

Dados inéditos da Universidade de São Paulo indicam que entre 2007 e 2014 foram notificadas 2.150 intoxicações, somente na faixa etária de 0 a 14 anos de idade; número pode ser 50 vezes maior, devido a falta de fiscalização municipal, estadual e federal.
por Cida de Oliveira - Sociedade e Alimentação (fonte no final)
Foto ELIANA DE SOUZA LIMA/EMBRAPA
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Adoecimento: é comum a pulverização de veneno sem equipamento de proteção
São Paulo – Crianças e adolescentes estão entre as principais vítimas dos efeitos nocivos dos agrotóxicos. Um estudo do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), com base em dados do Ministério da Saúde e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mostra que entre 2007 e 2014 foram notificadas em todo o país 2.150 intoxicações somente na faixa etária entre 0 e 14 anos de idade. O dado, alarmante, não reflete o real, que pode ser 50 vezes maior. Isso porque de cada 50 casos de intoxicação por esses venenos, apenas um é notificado no serviço de saúde.
Os dados, inéditos, foram apresentados pela professora Larissa Mies Bombardi, do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP) durante o seminário Impacto dos Agrotóxicos na Vida e no Trabalho, realizado quarta-feira (2) na Câmara dos Vereadores de São Paulo.
Promovido pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, entre outros parceiros que lutam pelo banimento agrotóxicos e das sementes transgênicas no Brasil, o evento integra a programação da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que está divulgando a atualização de seu Dossiê Impactos dos Agrotóxicos na Saúde.
Estudiosa do tema, a professora conta que só entre 1999 e 2009, o Sistema Nacional de Informações Toxicológicas (Sinitox), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mostra que foram registradas 62 mil intoxicações por agrotóxicos no país.
"São 5.600 intoxicações por ano, 15,5 por dia, uma a cada 90 minutos. Nesse período houve 25 mil tentativas de suicídio com uso de agrotóxico. O dado é alarmante, representando 2.300 casos por ano. São seis por dia”, afirma Larissa, reforçando para o fato que o dado pode ser 50 vezes maior.
Para o presidente do Consórcio de Segurança Alimentar do Sudoeste Paulista e dirigente da Federação da Agricultura Familiar de São Paulo, José Vicente Felizardo, as crianças sempre estiveram expostas a esses venenos no campo, principalmente na plantação de tomates, que predomina em sua região. Ele conta que até o ano 2000 a contaminação na faixa etária entre 5 e 14 anos ocorria durante o trabalho, quando essas crianças manuseavam agrotóxicos, "temperando a calda" – fazendo a diluição. "Eram comuns mortes de crianças", conta.
Conforme ele, as denúncias não surtiam efeito. Até que em 2000 uma criança de 5 anos morreu depois de beber agrotóxico. "Ela estava na roça com a mãe. Bebeu agrotóxico. Conseguimos mobilizar a imprensa, mostrando as embalagens. Desde então, a coisa começou a caminhar."
No entanto, pouca coisa mudou. Segundo Felizardo, crianças pequenas ainda são levadas às roças de tomate pelas mães. "Elas ficam dormindo na sombra enquanto a mãe trabalha. E na hora de pulverizar, a criança é pulverizada junto. Por isso, os números não surpreendem.”
Os venenos afetam também a saúde dos mais velhos. Conforme Felizardo, nos acampamentos de tomate é comum os trabalhadores, ainda adolescentes, desenvolverem depressão e alcoolismo. "Não são raras as tentativas de suicídio, todas sem registro. Na região de Jaú, se a gente ver as pessoas que estão fazendo tratamento de câncer, a maioria está exposta aos agrotóxicos", conta Felizardo.
O dirigente chama ainda a atenção para o assédio, desleal, da indústria do veneno. Em sua região há poucos técnicos. "Se reunir todos os agrônomos do poder público, temos em torno de 40 técnicos para assistência técnica. Uma empresa na cidade vizinha tem, sozinha, 36 agrônomos, cada um com um carro, que sai a cada propriedade vendendo os agrotóxicos. E a cada 15 dias fazem palestra, faz churrasco e bebida e chama os agricultores para fazer propaganda. É muito diferente a atenção. É desleal."
Desde 2009, o Brasil lidera o consumo mundial desses venenos, utilizando sobre suas lavouras um quinto de todo o agrotóxico produzido no mundo. Tamanho consumo está provocando uma verdadeira epidemia, silenciosa e violenta, colocando em risco a vida e saúde dos camponeses, trabalhadores rurais e seus familiares, em contato direto com o produto, e a população da cidade, que consume alimentos cada vez mais encharcados.
http://www.redebrasilatual.com.br/saude/2015/09/criancas-e-adolescentes-sao-as-principais-vitimas-dos-efeitos-nocivos-dos-agrotoxicos-no-brasil-5789.html

Em busca de uma cerveja "genuinamente" brasileira

A bióloga Gabriela Montandon pesquisa leveduras nativas para criar uma bebida feita com fermento local brasileiro em Minas Gerais
por Rodrigo Casarinio - Sociedade e Cultura (fonte no final)



E a levedura, garantem alguns, não o cervejeiro, quem faz a cerveja. Os micro-organismos são os responsáveis, na fermentação, por transformar o açúcar proveniente dos maltes em álcool e gás carbônico, além de contribuir com aromas e sabores. Dão vida e alma à bebida.
Gabriela Montandon, de 30 anos, acredita piamente nisso. Animada, a bióloga mostra uma bela taça com um líquido semelhante a um milk-shake. Trata-se da levedura que fermenta uma de suas cervejas na Grimor, fábrica artesanal de Belo Horizonte. Em suas mãos está o primeiro fermento cervejeiro genuinamente brasileiro, encontrado em nossa biodiversidade, isolado em laboratório e homologado, fruto de suas pesquisas acadêmicas. 
Montandon começou a produzir cerveja em casa em companhia de Paulo Patrus, seu sócio, em uma experiência que daria origem à Grimor. Enquanto estudava para se tornar uma das primeiras juízas de concursos cervejeiros do País, percebeu gastar mais tempo com o hobby do que com o mestrado em Ciências Biológicas. “Estava me dedicando mais ao conhecimento cervejeiro do que à 
minha própria profissão de pesquisadora.” Então a ficha caiu: por que não unir as duas experiências?
Em 2011, apresentou sua dissertação de mestrado com a cabeça no futuro. Ao constatar que praticamente toda a matéria-prima utilizada na bebida é importada e ao se lembrar que a Universidade Federal de Minas Gerais possui o maior banco de leveduras da América Latina, decidiu partir em busca dos inéditos fermentos cervejeiros nacionais. 
Havia um obstáculo. Ao conversar com Carlos Rosa, seu futuro orientador, foi informada de que todas as linhas de pesquisa sobre bebidas até então existentes na universidade se dedicavam à cachaça. Se quisesse pesquisar sobre cerveja, teria de começar praticamente do zero. “Tinha vontade de mudar algo com meus estudos e a gente cria estruturas para defender o que queremos, as coisas não estão prontas à espera da gente. Ninguém ali tinha trabalhado com cerveja, então inaugurei essa linha no laboratório”, recorda a pesquisadora, que em 2012 começou seu doutorado.
Graças a um congresso em Araraquara, a pesquisa de Montandon deu uma inesperada guinada. Na cidade do interior paulista, a bióloga conheceu o belga Denis De Keukeleire, autoridade em lúpulos, outro ingrediente essencial da bebida. Trocaram contatos e, meses depois, surpreendeu-se ao receber um e-mail. Surpreendeu-se ainda mais com o conteúdo da mensagem: o professor, já aposentado, perguntava se ela não gostaria de transformar o seu curso em um doutorado-sanduíche, uma parte desenvolvida na Bélgica. De Keukeleire diz ter visto “paixão nos olhos” da mineira e se propôs a indicá-la a um colega, Guido Aerts.
“Parecia até uma pegadinha alguém desse escalão escrever para mim. Normalmente, os alunos procuram os mestres. Ali, meu mundo se abriu. Academicamente eu precisava de mais recursos para fazer um trabalho responsável, com as metodologias, controles e certificações que a ciência exige.”
A bióloga, que pretendia cursar uma parte do doutorado em Portugal, mudou a rota e foi parar no país reconhecido pela maneira com que seus cervejeiros lidam com o fermento. Chegou no laboratório, em agosto de 2013, com uma bagagem essencial: grupos de leveduras de todas as regiões do Brasil. 
Ao longo de um ano e meio na Bélgica, Montandon testou as linhagens para descobrir as mais apropriadas. “Nem todas eram boas. Nunca tinham fermentado uma cerveja. Esse é um ambiente novo para elas. Contudo, uma parte mostrou-se bastante interessante, com bom perfil de aroma e capacidade de fermentação.”
Além da qualidade da levedura em si, outro norte da pesquisa foi encontrar linhagens viáveis comercialmente. O que dava certo em pequenos tubos de 10 mililitros precisava se mostrar útil em produções de 2 mil litros, como aquela realizada em Belo Horizonte. Montandon tem produzido desde o início do ano, após seu retorno da Bélgica. 
 “De alguma forma contribuo para a comunidade acadêmica, pois isso é patrimônio brasileiro.”  A expectativa é que em um futuro próximo essas leveduras identificadas pela bióloga obtenham direitos de uso definidos e disponíveis para as microcervejarias do País. Aí é só esperar pelas boas cervejas 100% nacionais. Graças, em boa parte, a uma mineira com “paixão nos olhos”.
*Reportagem publicada originalmente na edição 865 de CartaCapital, com o título "Sabor da terra"
http://www.cartacapital.com.br/revista/865/sabor-da-terra-1621.html

Quando o mundo desiste do "marginal", menos a professora...um filme atual

Relação de adultos e crianças no filme "Numa Escola de Havana" é a alegoria de uma fronteira indefinida entre a simples punição e os princípios que agonizam, em uma sociedade com vários problemas sociais

por Matheus Pichonelli - Sociedade e Cultura (fonte no final)
O cenário é cortado por trilhos no filme “Numa Escola de Havana”, de Ernesto Daranas, que estreou na quinta-feira 3/set/2015, em São Paulo. Naquele cenário, transitar é assumir riscos, e eles se espalham entre prédios envelhecidos, ruas e calçadas diminutas, escadarias de madeira, pontes envelhecidas e casas pouco arejadas. Logo nas primeiras cenas, a alegoria parece gritar: nenhuma fronteira é bem delimitada quando todos os caminhos se espremem e se embrenham. A começar pela fronteira entre a infância, a adolescência, o mundo adulto e a velhice.
O protagonista, Chala, é um menino de 11 anos que assume a função de homem da casa ao percorrer o centro antigo da cidade em busca de dinheiro. A mãe, prostituta, é viciada em álcool e remédios. O pai é desconhecido, e o único adulto sóbrio que circula pela casa rejeita qualquer afeto pelo garoto. Pelo contrário, estabelece com ele uma relação comercial de gente grande. O garoto, que pode se seu filho, cuida dos cães e os ensina a brigar. O adulto faz as apostas nas rinhas ilegais de Havana.
Numa Escola de HavanaCarmela, a professora interpretada por Alina Rodriguez, no filme "Numa Escola de Havana"
No filme, há um fundo moral que perpassa todo o cenário de regras e proibições numa ordem tão autoritária quanto caótica. A regra básica para ampliar possibilidades é transgredir. Sobretudo quando as possibilidades estão fechadas e destinadas à eliminação.
O esforço das autoridades em categorizar sintomas retirados do contexto - o garoto problemático e agressivo deve ser afastado da escola, definem - é sempre uma violência de mão dupla. Para a polícia, a direção da escola, os vizinhos e a própria família, a agressividade ora ingênua ora gratuita dos jovens-adultos dentro da escola é um sintoma a ser isolado. É um problema do Estado. Um problema que, isolado, deixa de se manifestar. É quando crianças passam a ser tratadas como animais.
Para quem acompanhou com atenção o debate sobre a redução da maioridade penal no Brasil, assistir ao filme pode ser um exercício educativo. Melhor que definir fronteiras, expõe o diretor, é compreender seus contracampos. No filme, a única personagem capaz de entender essas contradições e apontar caminhos é uma professora prestes a se aposentar.
Rígida, calejada e maltratada pela direção e assistentes sociais, ela tem o respeito dos estudantes porque em algum momento ultrapassou a função estabelecida entre eles e se aprofundou. Essa relação, em tese pouco recomendada, não é construída num velho quadro negro, mas num pacto de confiança, selado com visitas às casas dos alunos, conversas no canto da escola, contato com os pais e - sobretudo - transgressões consentidas, como permitir que sua melhor aluna siga estudando mesmo sabendo que sua matricula é falsificada.
Os demais, justamente os que dizem cumprir seu papel, parecem incapazes de perceber que transitam entre o paternalismo e o abandono. Os gestores daquele sistema de ensino são os síndicos que olham o regulamento, aplicam as normas e dormem tranquilos - para usar uma metáfora desenvolvida por Christian Dunker para explicar nossas relações intramuros e nossa incapacidade de compreender o nó das próprias tragédias.
Enquanto o mundo pede para encarcerar as bestas-feras, a professora é a única que ainda as vê como crianças. É a única também que as leva a sério. Que não faz voz de criança para negociar nem grita quando quer enquadrar. Sabe que, fora daquela sala de aula, os adultos também tiveram de lidar cedo demais com as ruínas do mundo adulto e agora sobrevivem pisoteando fronteirasDaquela escola em Havana, um dos pais está preso. Outro é vendedor ambulante ilegal. Outro é contraventor. 
Não se sabe em que momento aqueles pais deixaram as brincadeiras de criança e embruteceram. Provavelmente quando começaram a correr perigo na infância. Quando violar fronteiras passou a determinar uma sobrevivência.
Num mundo de acordos opacos entre legalidade e ilegalidade, missão e vocação, regras e punições, a professora da velha escola é a representação de uma última fronteira que pode e deve permanecer intocada: a que determina o momento em que jogamos a toalha e desistimos de nossas crianças. Como quando deixamos de tratá-la como uma. Numa Escola de Havana é a história de um princípio que agoniza.
http://www.cartacapital.com.br/cultura/quando-o-mundo-desiste-do-marginal-menos-a-professora-4081.html
 
 

No Brasil, o imposto é sobre o "consumo", nos países desenvolvidos é sobre a "renda"

  •  Para entender um pouco os impostos brasileiros

    • Ajuste fiscal esbarra na injusta carga tributária brasileira

  • Recessão afetou consumo, fonte de mais da metade da arrecadação nacional. Países desenvolvidos preferem taxar renda e patrimônio
por André Barrocal, da revista Carta Capital  Sociedade, Impostos e Distribuição de Renda
Antônio Cruz/ Agência Brasil
Impostos
O ideal seria taxar o patrimônio, não o consumo
O ajuste fiscal do governo produziu um resultado oposto ao pretendido, como se vê no Orçamento proposto para 2016, com um rombo de 30 bilhões de reais e estimativas de que a dívida pública só cairá no último ano da gestão Dilma Rousseff. Não era difícil imaginar o tiro no pé. Ao contrário dos países desenvolvidos, a carga tributária brasileira, principal fonte de dinheiro do poder público, concentra-se no consumo. E este recuou junto com o PIB, graças à recessão causada pelo ajuste.
Em 2013, último dado disponível na Receita Federal, 51,3% da arrecadação no País nasceu da taxação sobre o comércio de bens e serviços. Entram na conta impostos federais (Cofins, PIS e IPI), o ICMS estadual e o ISS municipal. Nos países ricos, o peso da tributação do consumo é bem menor. Na média dos filiados à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), é de 34%, segundo dados de 2010. Na OCDE, prefere-se taxar mais a renda e o patrimônio (38% da carga total) do que no Brasil (22%).
O consumo é a base do maior imposto do País, o ICMS, que em 2013 respondeu por 7,5 pontos percentuais da carga tributária de 35,9%. No primeiro semestre, porém, o varejo teve o pior resultado em 12 anos. Não podia ser diferente. Graças ao ajuste fiscal, houve 500 mil demissões de janeiro a julho, algo inédito desde 2002. A taxa oficial de desemprego subiu de 4,3% para 7,5%, enquanto a renda média estacionou em 2,1 mil reais mensais. Não surpreende que a Cofins, quarto maior tributo do País, tenha, de janeiro a julho, gerado 3% a menos do que na comparação com os mesmos sete meses de 2014. Uma perda de 5 bilhões de reais.
O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, sabe da importância do consumo para as finanças públicas. No segundo semestre de 2014, antes de ser chamado para o cargo, Levy publicou um artigo sobre “Robustez Fiscal”. Escreveu ele: “A maior incidência dos tributos no Brasil se dá sobre a cesta de consumo, onerada tanto pelos impostos federais quanto estaduais e municipais (ICMS, IPI, ISS e PISCOFINS). Essa incidência é muito maior do que na maioria dos países, inclusive desenvolvidos, e tem efeitos negativos sobre a distribuição de renda.”
Os “efeitos negativos sobre a distribuição de renda” podem ser traduzidos em linguagem didática. “No ato do consumo, o rico, o pobre e a classe média pagam o mesmo imposto. Se o imposto é elevado, pior ainda, porque o pobre pagará uma carga desproporcional à sua renda. Portanto, melhor é que o imposto sobre o consumo seja baixo”, diz o economista João Sicsú, ex-diretor de Estudos e Políticas Macroeconômicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Os alimentos são um exemplo ilustrativo dos efeitos perversos da tributação sobre o consumo. A alimentação tem um peso aproximado de 20% no orçamento das famílias brasileiras. Segundo levantamento da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a taxação média nos alimentos é de 17%. Nos principais países da União Europeia, diz Sicsú, é de 5%. Na Inglaterra, é zero. Em 34 dos 50 estados norte-americanos, idem.
Para Sicsú, a crise fiscal brasileira oferece uma oportunidade para se discutir a reforma do sistema tributário, de modo a reequilibrar o ônus entre os segmentos da sociedade. Ao mesmo tempo em que desoneraria o consumo, afirma, o Estado deveria carregar mais na taxação da renda e do patrimônio, especialmente sobre os mais ricos. Opções para a nova equação não faltam.
Os lucros e dividendos recebidos por sócios e donos de empresas são isentos de imposto de renda, jabuticaba existente só no Brasil e na Estônia, segundo o economista Rodrigo Orair, pesquisador do Ipea. Nas contas dele, acabar com a mordomia poderia render uns 50 bilhões de reais por ano.
O imposto de renda cobrado das pessoas físicas tem alíquota máxima de 27,5% no Brasil. É a menor alíquota máxima entre todos os 116 países que tiveram seus sistemas tributários pesquisados por uma consultoria, a KPMG. Nos Estados Unidos, o teto é de 39,6%. Japão e Chile cobram 40%. Inglaterra, Austrália e França, 45%.
O IPTU dos fazendeiros, o ITR, rende 800 milhões de reais por ano e deveria gerar bem mais, segundo o economista José Roberto Afonso, incrédulo com uma arrecadação “insignificante em um país de tais dimensões”.
Os impostos sobre herança e doações também oferecem “um enorme espaço fiscal”, na opinião dele. A taxação das heranças morde no máximo 8% e representa irrisórios 0,09% da carga tributária total, 4 bilhões de reais em 2013. Na Inglaterra, diz Sicsú, a mordida chega a 40%. No Chile, a 35%. No Japão, a 55%. Na França, a 60%.
Proposto pelo governo ao Congresso com previsão de déficit, a lei orçamentária de 2016 deverá sofrer ajustes durante sua votação pelos parlamentares até dezembro. Há boas chances de vingar uma solução via aumento de impostos. “A perda do grau de investimento”, diz o relator-geral do orçamento, deputado Ricardo Barros (PP-PR), “é mais cara do que algum aumento de carga tributária. O setor produtivo sabe disso e vai apoiar.”
Será que o capital também toparia uma reformulação mais profunda da tributação nacional?
 http://www.cartacapital.com.br/economia/ajuste-fiscal-esbarra-na-injusta-carga-tributaria-brasileira-1336.html

A minha empregada era quase da família...será?

Por Leonardo Sakamoto, em seu blog - Sociedade e Igualdade de Direitos Sociais


“Que horas ela volta'', de Anna Muylaert, é um filme obrigatório pelo incômodo que provoca ao discutir as mudanças sociais através das relações de uma trabalhadora empregada doméstica, seus patrões, sua filha e o filho deles. E, ao mesmo tempo, por ter a coragem de lembrar de falar em esperança nesses tempos em que achamos que qualquer luz no fim do túnel pode ser um trem.

O Brasil gosta de se comportar como uma sociedade de castas. Não de forma escrachada (a elite social, econômica, política, intelectual não aprecia nada muito cru). Preferimos um cozido de relações em que todos pareçam viver em paz – desde que, é claro, cada um saiba (e fique em) seu lugar. Daí, para provar o contrário, essa elite mostra à exaustão a história do Joãozinho, que comia biscoitos de lama e andava na miséria plena e, que por conta própria, sem a ajuda de ninguém, estudou e virou diretor de uma multinacional – como se a exceção fosse a regra.

Uma sociedade em que as correntes que mantém a exploração trabalhista deixam de ser feitas de ferro, passando a ser incutidas diretamente na cabeça dos explorados. A ponto de muitos deles defenderem essa exploração, criticando os “baderneiros'' que vão contra as regras sociais. Mesmo que essas regras não tenham sido democraticamente discutidas, mas impostas pela tradição – de cima para baixo.

Participei de um bate-papo com a diretora mediado pela jornalista Natália Engler, na TV UOL/SP, nesta sexta (4/set/2015). Não vou me alongar sobre o filme porque acabarei cometendo um spoiler. Se não quiserem vê-lo pela temática, vejam pela Regina Casé que está excelente no papel de Val, a empregada.

Aproveito para elencar alguns pontos que já trouxe aqui, mas acho pertinente retomar por conta do filme.

Durante as discussões sobre emenda constitucional que elevou os direitos das trabalhadoras empregadas domésticas para um patamar mais próximo do restante da população, lemos e ouvimos um festival de preconceitos. O que foi ótimo para nos lembrarmos do que somos feitos de verdade e o tanto que falta ainda para que possamos nos olhar no espelho sem sentir vergonha.

Ainda hoje, escutamos ecos de reclamações de senhoras e senhores sobre o inferno no qual mergulharam suas vidas a partir do momento que “essa gente'' passou a achar que era “igual a eles''. Alguns exemplos coletados (na vida real, não no filme):

– Pedi para a mocinha que trabalha lá em casa ficar mais duas horinhas porque o Arnaldo ia se atrasar do tênis e ela disse que não. Disse que tinha os filhos em casa. E os meus?

– Ela não quis trocar a folga. Disse que tinha marcado uma viagem. Agora, esse povo viaja!

– Deve ser enchente. Ela, apesar de morar na favela, é mulher honesta, nunca falta.

– Pediu demissão e se foi. E tá me processando por direitos! Eu que a tratava como uma filha.

– Não são que nem nós, que tivemos criação.

– Ela disse que não quer mais dormir no quartinho dela porque é fechado e não tem janela. Na favela dela, também não deve ter…

É incrível o ressentimento de alguns por terem sido obrigados a ceder um tiquinho à qualidade de vida dessa gente “que não sabe o seu lugar'', como é possível ver na timeline de muitos “homens e mulheres de bem''.

Seja na superfície, através de piadinhas, risinhos, ironias e preconceitos, seja estruturalmente, pela impossibilidade de ir a um hospital sem enormes filas, estudar em uma boa escola, voltar para casa com conforto, viver em um bairro com saneamento básico e ter a certeza de que os filhos chegarão à idade adulta, já passamos o recado de quem manda e quem obedece.

Detesto acordar de manhã com um especialista no rádio ou na TV dizendo que não é o momento de garantir direitos a determinada categoria de trabalhadores porque a economia não aguenta, vai gerar mais informalidade, as estruturas do país não suportam esse luxo ou porque o bagre-de-cabelo-moicano não se reproduziu ainda este ano.

Reclamam que isso vá gerar uma hecatombe sobre as contas previdenciárias – mas na hora em que precisam de alguém para fazer o trabalho sujo por eles ninguém fala nada. Se ignorarmos os direitos desses trabalhadores, estamos considerando que uma sociedade pode aceitar basear o seu crescimento sobre o esfolamento de um determinado grupo.

A Organização Internacional do Trabalho demorou meio século para conseguir aprovar uma convenção sobre os direitos das trabalhadores empregadas domésticas. A civilizada Europa precisava de mão de obra barata, mas não queria garantir aos imigrantes os mesmos direitos de quem nasceu no continente. Através dessa exploração do trabalho informal, regulava o custo de vida em várias economias.

Como já disse aqui, incomodo-me bastante que muitas plantas dos apartamentos no Brasil ainda tenham o “Quarto de Empregada” destacado, ao lado da cozinha e da lavanderia – versão contemporânea da senzala. Pode parecer besta, mas isso é carregado de simbolismo e, portanto, fundamental, herança da escravidão oficial, que moldou o nosso país.

Aquele tantinho de espaço ao lado das vassouras, rodos e produtos de limpeza, destinado à criadagem me irrita. Se ela tiver que dormir no serviço, deveria compartilhar um espaço mais digno. Um quarto de hóspedes, por exemplo.

– Ela é quase da família.

– Você colocaria seu filho para dormir no quartinho de empregada?
– Não. Mas que comparação boba. É diferente.

O problema é que a realidade social brasileira, bem como o diabo, vive no “quase''.

Somos quase um país justo.

Conseguimos ser quase civilizados.

A dignidade aqui é quase respeitada.

A gente quase trata pobre como gente.
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2015/09/a-minha-empregada-era-quase-da-familia.html