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3.27.2023

Trabalho Escravo: Legislativo, Judiciário e Executivo desprezam Mão-de-Obra humilde brasileira

Resgates como o das vinícolas  gaúchas multiplicam-se e chocam a sociedade. Mas expressam tendências do pós-golpe 2016: desmonte dos direitos; jornadas intermináveis e precarização da vida – tudo em nome de lucros selvagens das empresas brasileiras e estrangeiras

por Henri Acselrad* em Outras Palavras e IHU Unissinos – Sociedade e Desprezo pelo Trabalho Humano

 Foto do IHU Unissinos na internet

Introdução

Após a eleição presidencial de 2018, especulou-se, no Brasil, sobre a eventual contradição, no interior do governo federal então eleito, entre, de um lado, um programa ultra-liberal capitaneado por um economista formado na Escola de Chicago (EUA) e, por outro, um suposto nacionalismo autoritário sustentado por militares que ganharam presença numérica na máquina governamental. Ao longo da gestão governamental do período 2019-2022, foi tornando-se clara a ausência de contradição e mesmo a convergência de forças na promoção articulada do que poderíamos chamar de um trabalho precarizado: forças que pretendiam aprofundar as condições de exploração do trabalho no campo e nas cidades e, também, forças que pressionam territórios indígenas e tradicionais para favorecer a expansão de áreas para a grande agropecuária e a mineração, tanto por empresas brasileiras como estrangeiras.                                    

O que teria unificado estas forças de diferentes origens então instaladas no governo?

O que estes diferentes blocos econômicos e sociais de forças demonstraram ter em comum foi a expectativa de configurar um projeto liberal-autoritário (domínio de bancos, militares, altos funcionários públicos entre outros), voltado para a des-montagem de direitos e a elevação da lucratividade dos negócios, tanto pelo aumento dos ganhos por unidade de trabalho empregada, como pela extensão das áreas exploradas, inclusive pela ocupação de terras públicas.

Constituição Federal 1998 e Leis Trabalhistas Des-cumpridas (laissez-faire)

Por um lado, a pretensão de abandonar a vida política às leis do mercado penetrou as esferas do Estado, justificando medidas in-diferentes à pobreza, ao desen-raizamento social, à dis-criminação racial, à destruição do meio ambiente e da saúde coletiva. Por outro lado, tornou-se explícita a recusa a tudo o que pudesse evocar solidariedade entre pessoas, povos e gerações. 

Aqueles sujeitos que, na retórica neo-liberal, são apresentados como incapazes de competir, por não se terem supostamente mostrado suficientemente empreendedores, são, pelo viés autoritário, dis-criminados e in-feriorizados. Na lógica deste liberalismo autoritário, não se justificaria, para os supostos “perdedores” da ordem competitiva pública, a adoção de políticas de combate à des-igualdade ou de proteção à saúde. A eles restaria aceitar trabalhar nas condições que lhes são ofertadas, desprovidos de direitos e de proteção social, condições nas quais, por uma concepção monolítica e abstrata, o chamado “mercado” se mostraria inclinado a acolhê-los (exploração de pessoas semelhante a escravidão). 

Assim é que, compassivo com relação aos que dizem sofrer a “horrível condição de ser patrão”, imediatamente após sua eleição em 2018, o presidente que encarnou este projeto explicitamente in-igualitário ameaçou os trabalhadores de que, caso não abrissem mão de seus direitos, não obteriam emprego [1].

Neste caldo ideológico, a portaria do Ministério do Trabalho – que, em 2017, tentou, sem sucesso, legalizar o trabalho escravo – não deveria ser entendida em separado do projeto mais amplo de aplicar, ao mercado de trabalho formal, uma reforma trabalhista que tornasse mais estritas as normas disciplinares impostas, não só aos escravizados pela dívida, mas aos trabalhadores em geral. Não por acaso representantes do agronegócio alegaram, na ocasião daquela iniciativa, que “as novas condições políticas” – leia-se, aquelas geradas pelo golpe parlamentar destituinte de 2016 brasileiro – autorizavam a legalização de condições de trabalho até então julgadas degradantes [2].

Nas condições vigentes a partir de então, não se trataria apenas de um retorno às formas tradicionais de imobilização do trabalho – dispositivos de fixação da mão de obra em espaços isolados e de pouca visibilidade pública – mas da emissão de um sinal dis-ciplinador dos trabalhadores em geral, pelas possibilidades abertas de se impor maior penalidade e precarização do trabalho, além da redução dos salários.

Para entendermos a conexão entre as condições de existência do as-salariamento formal e o trabalho em condições análogas à da escravidão, não custa lembrar o economista polonês Michael Kalecki [3] que, nos anos 1940, já havia caracterizado as razões pelas quais o estado de laissez-faire (des-cumprimento das leis brasileiras) é o preferido do empresariado: por meio da retração ou re-localização de seus próprios investimentos, os empresários influenciam o nível (do emprego ou des-emprego) e, consequentemente, induzem os graus de disciplina que esperam obter dos trabalhadores (ou empregados).

Conclusão

Para entender a continuidade de casos de trabalho análogo ao da escravidão, nas vinícolas do Sul, no interior de São Paulo, de Goiás e em Duque de Caxias, no festival de música de São Paulo em março/2023, temos que reconhecer a influência da conjuntura e da correlação de forças sociais que vigorou nos últimos anos. A conjuntura aberta com a eleição de um novo governo em 2022 leva não só à exigência de se fazer cumprir a legislação que regula a contratação de trabalho vindo de fora de uma região (cumprimento da Constituição Federal 1998 e Leis Trabalhistas), mas a de por em pauta a garantia dos direitos de auto-defesa dos trabalhadores em todas as áreas onde o ser humano atua no Brasil.

Notas

[1] - É difícil ser patrão, Folha de SP, 4/12/2018.

[2] - Só temos a comemorar’, diz Blairo sobre regras para fiscalizar trabalho escravo, O Globo, 17/10/2017.

[3] - Michael Kalecki, “Aspectos políticos do pleno emprego”. In: Crescimento e ciclo nas economias capitalistas, Hucitec, São Paulo, 1983 [1944], p. 54-60.

*Henri Acselrad, professor do IPPUR / UFRJ e pesquisador do CNPq

Edição: Blog do Cachoeira

Publicado IHU Unissinos: 27 março 2023

Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/627344-quando-ser-precario-e-quase-ser-escravizado

 

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