por Rui Martins para jornal Correio do Brasil –
Sociedade e Organização Socio-política
Brasileira
Esta é mais que uma coluna, é uma importante
entrevista concedida por Cesar Benjamin a Zuenir Ventura em 2008 para o livro
“1968: o que fizeram de nós”. Nesta entrevista, Cesar Benjamin, um dos
resistentes na luta armada contra a ditadura, já falava na corrupção dentro do
PT. Partido do qual saiu, embora tivesse sido um dos cofundadores. Como afirma
neste trecho “Introduziram (nessa época) no PT uma arma nova: dinheiro.
Quem, numa disputa ou numa guerra, introduz uma arma nova, desconhecida, adquire
uma superioridade monumental sobre o adversário. É por isso que os chamados
“operadores” ganharam importância: nessa época, Delúbio Soares, por exemplo,
era o obscuro representante da CUT no FAT, que é uma enorme fonte de dinheiro.
Nenhum de nós pôde perceber, em tempo real, a dimensão da mudança que estava
acontecendo, até porque tudo se passava nas sombras. O fato é que a Articulação
começou a manejar recursos crescentes. Isso absorveu muitas prefeituras do PT –
Santo André, Ribeirão Preto, muitas outras. Os esquemas foram se multiplicando.
Marx tem uma frase em que ele fala no “poder dissolvente” do dinheiro. Onde o
dinheiro domina, as qualidades se dissolvem. Lula e Zé Dirceu foram dissolvendo
o PT em um banho de dinheiro, cooptando todos os que podiam cooptar.
Patrocinaram uma seleção negativa, que favorecia os piores.”
Para Cesar Benjamin, já havia crise em 2008 – ” A
atual crise brasileira é muito grave. E, lamentavelmente, o sistema político
que substituiu o regime militar falhou, pois não é capaz de gestar alternativas
nacionais consistentes. É comandado, de um lado, por forças supranacionais, que
controlam a formulação e a execução da política econômica; de outro, por forças
subnacionais, que formam bancadas no Congresso Nacional – a bancada do
agronegócio, da construção civil, das escolas privadas – e recebem pedaços do
Estado em concessão. Fazer política, no Brasil, é gerenciar esse arranjo. Não
há nenhuma instância pensando a dimensão nacional e o longo prazo. Não ouvimos
falar mais na esperança-Brasil, mas sim no custo-Brasil. Estamos saindo da história.
Isso me dói”. (Nota do Editor, Rui Martins).
ZUENIR VENTURA — Você tem sido muito coerente com
os princípios da sua juventude. Como foi sua trajetória pós-68?
CÉSAR BENJAMIN – A idade talvez tenha me
diferenciado um pouco. Pode ser que eu tenha vivido mais intensamente o sonho
de 68 porque tinha 14 anos e não 20 ou 21. É uma diferença grande, nessa fase
da vida. Não era sequer universitário, estava terminando o que hoje se chama o
primeiro grau. Além disso, para mim, 68 durou 10 anos. Vivi na clandestinidade
a partir de 69, até agosto de 71, quando fui preso. Em seguida, tive uma
experiência muito marcante, que foi um longo período em solitária. Passei mais
de três anos e meio sem ver ou falar com ninguém, sem olhar uma paisagem, sem
ter uma notícia do mundo. Enquanto meus amigos viviam outras experiências, como
o exílio, eu era confrontado com o silêncio. Isso me conduziu ao limiar de
sentimentos e percepções que estão presentes na minha vida até hoje, para o bem
e para o mal.
ZUENIR VENTURA — O psicanalista Helio Pellegrino dizia que você só não enlouqueceu porque tem uma cabeça muito boa. Dá para você verbalizar a experiência?
ZUENIR VENTURA — O psicanalista Helio Pellegrino dizia que você só não enlouqueceu porque tem uma cabeça muito boa. Dá para você verbalizar a experiência?
CÉSAR BENJAMIN – Não. É a experiência do silêncio.
Como nunca fui condenado, não sabia quanto tempo permaneceria preso. Fiquei
cinco anos na prisão, entre 71 e 76, a maior parte no período Médici. A
ditadura estava fortíssima, inabalável. Eu era muito jovem, nunca tinha visto a
mudança de um ciclo político. Só conhecia a própria ditadura. Estava convencido
de que ia ficar pelo menos 20 anos naquela pequena cela. Talvez fosse viver
toda a minha vida ali. Me preparei para isso.
ZUENIR VENTURA — Quais foram os momentos mais difíceis?
ZUENIR VENTURA — Quais foram os momentos mais difíceis?
CÉSAR BENJAMIN – A fase de interrogatórios é sempre
muito difícil. Quando eu estava saindo da Polícia do Exército da Barão de
Mesquita, um oficial comentou que meu primeiro interrogatório havia durado
trinta horas, ininterruptamente. Minha grande lembrança desse período é a sede.
Você grita muito e não recebe água, e tudo recomeça. Vi meu corpo secar. É uma
lembrança assustadora. Até hoje, quando bebo um copo d´água, faço uma espécie
de ritual interior de agradecimento, silenciosamente. Depois, já na solitária,
um momento difícil foi a noite do golpe militar no Chile, em 73. Os militares vieram
comemorar a morte de Allende na minha cela. Foi assim que tive a notícia. Foi o
fundo do poço. Depois dos golpes no Uruguai, na Argentina e no Brasil, o Chile
era o bastião da resistência. Fiquei muito abalado, chorei. Mas também houve
gestos de grande humanidade, que eu gosto de lembrar. Na Polícia do Exército da
Vila Militar, eu ficava nu na cela completamente vazia. Os ladrilhos eram muito
frios, de modo que eu passava as noites em pé. Com alguma freqüência, os
sentinelas me emprestavam mantas nas madrugadas, o que lhes poderia custar a
prisão. Eu devolvia as mantas antes do dia clarear. Depois, nesses anos todos,
de vez em quando alguém enfiava um jornal por baixo da porta. Isso me permitia
recordar em que data estava, pois não era fácil manter a noção do tempo, que é
psicologicamente importante. Eu não chegava a ver quem fazia isso, e essas
pessoas não poderiam esperar qualquer retribuição minha. Eram gestos gratuitos,
de pura bondade. Havia duas datas muito emotivas para mim: o meu aniversário e
o Natal. Sempre me esforcei para não deixá-las passar sem que eu percebesse.
ZUENIR VENTURA — Seu aniversário quando é?
ZUENIR VENTURA — Seu aniversário quando é?
CÉSAR BENJAMIN – Cinco de maio. Nesses dias, eu me
lembrava muito de uma poesia do Fernando Pessoa chamada “Aniversário”, que
começa assim: “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos / Eu era feliz e
ninguém estava morto”. Sempre fui um leitor de Pessoa. Um verso resumia
exatamente o que eu sentia: “O que sou hoje é estar eu sobrevivente a mim mesmo
como um fósforo frio.” Tenho também a lembrança forte de um Natal. Eu estava no
Batalhão de Manutenção de Armamentos, onde passei a maior parte do tempo, uns
três anos. Minha cela era pequena e encravada no chão, sem nenhuma vista para
fora. Havia três portas até se chegar nela, duas de grade e uma maciça, a da
própria cela. Quando se está preso, é engraçado, a visão tem pouca importância,
porque quando se vê uma coisa ela já está junto. Você só vê o que já está
acontecendo ao seu lado. Em compensação, a audição se desenvolve de maneira espetacular.
Mais do que a audição (pois eu fiquei surdo de um ouvido durante os
interrogatórios), é a capacidade de interpretar sons. Eu sabia o que acontecia
em volta, fora da cela, interpretando sons. Nessa noite de Natal, pressenti que
vinham pessoas em minha direção, porque ouvi o barulho do molho de chaves que
abria as três portas. Eu reconhecia esse molho, especificamente, e sabia
diferenciá-lo dos outros. “Vai chegar gente.” Fiquei esperando. Abriram a
primeira porta, a segunda, a terceira e entraram na minha cela uns dez ou doze
soldados, um sargento, um tenente, trazendo uma bandeja de latão com
avelãs, aquelas coisas de Natal. Um deles disse: “Nós estamos de serviço e o
quartel nos deu uma ceia. Viemos aqui dividir com você.” Eu tive vontade de
chorar ali mesmo, na hora, mas me segurei, sem conseguir dizer nada. Fiquei
mudo. Só quando saíram eu me permiti chorar. Foi um desses gestos gratuitos de
solidariedade, a que me referi. [nesse momento do relato, Cesinha faz um grande
esforço para não chorar] Em outra noite, aconteceu uma coisa parecida, mas
engraçada: começaram a abrir as portas de madrugada e eu me levantei do
colchão. Entrou uma comitiva militar na cela, fardada, bastante formal,
liderada por um general. Ficaram me olhando, sem dizer nada, até que o general
perguntou: “Você está desgostoso da vida?” Eu disse: “Não.” Todos foram embora,
imediatamente. O único diálogo foi esse. Nunca entendi por que um general foi
me visitar de madrugada para fazer essa pergunta.
ZUENIR VENTURA – Você nunca pensou em contar essa experiência em livro?
ZUENIR VENTURA – Você nunca pensou em contar essa experiência em livro?
CÉSAR BENJAMIN – Acho que nunca vou contar, porque
só escreveria no momento em que me achasse suficientemente maduro para isso. Um
homem que consegue contar a sua vida, com algum valor, é um sábio. Acho que
nunca vou ser tão sábio. Poderia sair uma coisa mistificada: um menino que
lutou, que foi meio herói. A minha vida, porém, é muito mais complexa do que
isso. Não saberia contá-la. Preferi continuar em silêncio.
ZUENIR VENTURA – Quando você saiu do PT e por quê?
ZUENIR VENTURA – Quando você saiu do PT e por quê?
CÉSAR BENJAMIN – Fui expulso do Brasil em 76
e voltei em 78, antes da anistia, animado com o avanço do movimento pela
redemocratização e o ressurgimento do movimento operário. Ajudei a fundar o PT
e militei nele, intensamente, até 95. Saí quando comecei a ver coisas muito
estranhas. Na verdade, foi um processo que culminou em 94, mas começou em 89.
Você deve se lembrar como foi aquela campanha. Aliás, não foi uma campanha, mas
um movimento no Brasil inteiro: primeira eleição presidencial depois de décadas!
O Lula começou com 2,5%. Não tínhamos nada, mas éramos milhares, cheios de
garra. O povo foi entendendo isso. Me lembro de uma noite ali no Catete, em
frente a uma loja de televisores, uma pequena multidão de umas 50 pessoas vendo
o horário eleitoral, e eu no meio. Eu participava da coordenação do programa de
governo da campanha, e naquela noite o nosso programa de TV estava
especialmente bem-feito, transmitindo muita autenticidade. Senti uma
eletricidade percorrendo as pessoas, uma emoção, um silêncio profundo, emotivo
e respeitoso. Cheguei em casa e disse para a minha mulher:
“Nós vamos ganhar a eleição”. E ela: “Você está louco”. Praticamente ganhamos, pois saímos de 2,5% e chegamos a 49%. Paradoxalmente, foi no fim dessa campanha que me acendeu a luz amarela com o Lula.
ZUENIR VENTURA – Como assim?
“Nós vamos ganhar a eleição”. E ela: “Você está louco”. Praticamente ganhamos, pois saímos de 2,5% e chegamos a 49%. Paradoxalmente, foi no fim dessa campanha que me acendeu a luz amarela com o Lula.
ZUENIR VENTURA – Como assim?
CÉSAR BENJAMIN – Na reta final, houve o episódio da
grosseira manipulação do debate Lula versus Collor na Globo. No dia seguinte,
fizemos uma manifestação de protesto na porta da emissora, uns oito mil
militantes. A edição do debate foi numa sexta à noite; a manifestação foi no
sábado; no domingo foi a eleição. Collor venceu por pequena margem, e a edição
do debate foi decisiva para esse resultado. Nos dias seguintes, fui para São
Paulo. Lá, logo depois dessa seqüência de eventos, encontrei o Lula, que me
disse: “Cesinha, sabe quem me ligou anteontem?” Como eu não sabia, ele
completou: “O Alberico, da Globo.” Justamente quem tinha feito a montagem do
debate, conforme os jornais haviam noticiado. Fiquei calado e o Lula
prosseguiu: “Jantei com eles ontem. Derrubamos três litros de uísque”. Aquilo
doeu. Enquanto colocávamos oito mil militantes na porta da Globo, a nossa maior
liderança jantava e bebia com a direção da emissora. Ele se justificou: “Não vou
brigar com a Globo, não é, Cesinha?” Ali me acendeu uma luz amarela: algo
estava muito errado. O Brizola estava se expondo publicamente, contestando a
Globo e defendendo o Lula, enquanto o Lula jantava com a direção da Globo,
escondido. Hoje compreendo que, naquele momento, o Brizola começou a ser
destruído definitivamente, e o Lula, demonstrando uma espinha muito flexível,
começou a desbloquear sua carreira política. Eu não exigiria que ele
hostilizasse a Globo, poderia fazer qualquer coisa, mas não derrubar três
litros de uísque com eles naqueles dias. Isso me pareceu falta de dignidade
pessoal.
ZUENIR VENTURA – Você tem uma explicação para isso?
ZUENIR VENTURA – Você tem uma explicação para isso?
CÉSAR BENJAMIN – Hoje eu compreendo o que
aconteceu. A partir de 89, o Lula passou a ter uma difícil equação política
para resolver. Queria ser presidente, e para isso precisava ter um partido
político suficientemente forte para sustentar essa pretensão. Mas esse partido
não podia ser aquele que havíamos construído, um partido vivo e militante. Com
aquele PT, ele seria sempre vetado pela elite do país, como foi em 89. Se
queria chegar à presidência, demonstrando-se confiável, precisava transformar o
partido em outra coisa. O Zé Dirceu ganhou importância porque se tornou o
grande operador dessa transformação. O Lula não é um operador. A dobradinha que
se formou atendia aos dois: ao Lula, porque a destruição do PT militante
pavimentaria o seu caminho à presidência, já na condição de um candidato dos de
cima, o que ele sempre quis ser; e ao Zé Dirceu, pois, se tudo desse certo, ele
seria o sucessor natural do Lula. Houve uma combinação de interesses. Isso
exigia um processo de desmontagem do PT, de transformação do partido numa
máquina eleitoral poderosa, mas inofensiva. Foi nessa operação que os dois se
lançaram, conjuntamente. Mas a luta política é algo vivo. Em 93 o PT fez um
congresso e a nossa chapa ganhou, contra a Articulação. Foi então que eles se
deram conta – isso é uma interpretação minha – de que o projeto não podia ficar
ao sabor do debate de idéias, sempre sujeito a tantas incertezas. Eles teriam
que ter algo mais poderoso do que o convencimento. Introduziram no PT uma arma
nova: dinheiro. Quem, numa disputa ou numa guerra, introduz uma arma nova,
desconhecida, adquire uma superioridade monumental sobre o adversário. É por
isso que os chamados “operadores” ganharam importância: nessa época, Delúbio
Soares, por exemplo, era o obscuro representante da CUT no FAT, que é uma
enorme fonte de dinheiro. Nenhum de nós pôde perceber, em tempo real, a
dimensão da mudança que estava acontecendo, até porque tudo se passava nas
sombras. O fato é que a Articulação começou a manejar recursos crescentes. Isso
absorveu muitas prefeituras do PT – Santo André, Ribeirão Preto, muitas outras.
Os esquemas foram se multiplicando. Marx tem uma frase em que ele fala no
“poder dissolvente” do dinheiro. Onde o dinheiro domina, as qualidades se
dissolvem. Lula e Zé Dirceu foram dissolvendo o PT em um banho de dinheiro,
cooptando todos os que podiam cooptar. Patrocinaram uma seleção negativa, que
favorecia os piores.
ZUENIR VENTURA – Você não pensou em denunciar ao Lula?
ZUENIR VENTURA – Você não pensou em denunciar ao Lula?
CÉSAR BENJAMIN – Quando comecei a ver gente
lombrosiana ganhando cada vez mais importância, procurei o Lula e ele disse
para eu não me meter. Foi quando decidi debater na direção nacional o que
estava acontecendo: era muito grave! Mas, naquele momento, ninguém mais se
propunha a enfrentar o Lula e o Zé Dirceu.
ZUENIR VENTURA – Você tinha provas?
ZUENIR VENTURA – Você tinha provas?
CÉSAR BENJAMIN – Àquela altura, isso não era mais
novidade. Na medida em que os esquemas se tornam grandes e influentes, deixam
sinais, seus efeitos são percebidos, mesmo por quem não tem provas materiais.
As notícias começam a circular nos corredores. Decidi então que o gesto que me
restava, em nome de 16 anos de militância no PT e em nome da história da
esquerda, era fazer um alerta na instância máxima do partido, o Encontro
Nacional. Lá, em Vitória, comecei a tratar do assunto da tribuna, de onde eu
avistava o plenário e a mesa. Quando comecei a falar, vi o Zé Dirceu se levantar,
ficar de costas para a mesa e de frente para o plenário. Enquanto eu falava,
ele fazia sinais para a turma de Santo André. De repente, meu pronunciamento
foi interrompido de maneira violentíssima. Vieram para me espancar, diante de
todo mundo. O meu discurso foi interrompido e instaurou-se o caos. Depois,
alguns me contaram por que eles agiram com tanta violência: acharam que eu ia
abrir os esquemas. Não ia, simplesmente porque não os conhecia. Mas, como
levantei o assunto, eles se apavoraram e partiram para a porrada. Ali foi meu
último momento no PT. Como não consegui da direção nacional nenhum debate,
escrevi uma carta de desfiliação e saí do partido. Eu nunca me profissionalizei
na política, sempre trabalhei como qualquer cidadão e vivi do meu trabalho.
Isso garantiu minha autonomia diante da máquina burocrática. Muitos não tiveram
essa possibilidade.
ZUENIR VENTURA – Como você está vendo o Brasil?
ZUENIR VENTURA – Como você está vendo o Brasil?
CÉSAR BENJAMIN – Com pessimismo. Tive uma forte
ligação intelectual e afetiva com uma geração de grandes brasileiros, que vem
dos anos 30, mais ou menos de Gilberto Freyre até Darcy Ribeiro. Entre eles,
temos Sérgio Buarque, Caio Prado, Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier, que eu
não conheci; Celso Furtado, Inácio Rangel e Darcy, que foram meus amigos. São
uns 10 ou 12 intelectuais de grande estatura, trabalhando com diferentes
perspectivas, freqüentemente divergindo entre si, mas com algo em comum: todos
gostavam muito do Brasil e tentavam decifrar o nosso enigma. O horizonte de
Furtado era transformar o Brasil em uma economia industrial desenvolvida. O do
Caio Prado era completar a transição do Brasil-colônia ao Brasil-nação,
processo que ele chamava de revolução brasileira. O do Gilberto Freyre era a
potencialidade da cultura de síntese que se formara aqui. O do Darcy, o mais
utópico de todos, era o do Brasil como um novo projeto civilizatório para
substituir a civilização fria e triste dos países desenvolvidos, que está
chegando ao fim.
ZUENIR VENTURA – Era uma geração de otimistas, não?
CÉSAR BENJAMIN – Mas não era um otimismo bobo. Decorria de um enorme trabalho intelectual e de uma inteireza moral. Era um otimismo construído pelo esforço de decifrar o enigma brasileiro e sinalizar caminhos. Até os anos 20 acreditava-se que o Brasil não teria futuro. Havia uma série de argumentos para mostrar isso. A construção da idéia de que somos um país viável, com futuro, é uma reviravolta importante em nossa história. Hoje, estamos perdendo o contato com essa herança. O que me manteve nessa longa militância, dos meus longínquos 13 anos até os meus 53 atuais, foi a crença de que o Brasil vai dar certo. O Darcy dizia: “Quando o Brasil der certo, vai dar muito certo. Isso aqui vai ser a nova Roma.” Exageros à parte, ele tinha certa razão, porque basta conseguirmos meia dúzia de coisas mais ou menos fáceis e triviais para garantir dignidade a todos e, a partir daí, construir um projeto civilizatório novo. Temos sol, alegria, música, sensualidade, sincretismo, coisas que os países lá de cima não têm. O Darcy inverteu todos os argumentos que eram jogados contra nós: “Vocês são mestiços, tropicais, resultado da reunião de gente desgarrada do mundo inteiro. Isso aí não pode dar certo.” Ele respondia: “Isso é que é bom, isso é que vai dar certo!” Eu acho estimulante esse ponto de vista. Mas ele nos incita a buscar caminhos próprios.
ZUENIR VENTURA – Mas pelo jeito, você acha que o Brasil está longe de dar certo, não?
ZUENIR VENTURA – Era uma geração de otimistas, não?
CÉSAR BENJAMIN – Mas não era um otimismo bobo. Decorria de um enorme trabalho intelectual e de uma inteireza moral. Era um otimismo construído pelo esforço de decifrar o enigma brasileiro e sinalizar caminhos. Até os anos 20 acreditava-se que o Brasil não teria futuro. Havia uma série de argumentos para mostrar isso. A construção da idéia de que somos um país viável, com futuro, é uma reviravolta importante em nossa história. Hoje, estamos perdendo o contato com essa herança. O que me manteve nessa longa militância, dos meus longínquos 13 anos até os meus 53 atuais, foi a crença de que o Brasil vai dar certo. O Darcy dizia: “Quando o Brasil der certo, vai dar muito certo. Isso aqui vai ser a nova Roma.” Exageros à parte, ele tinha certa razão, porque basta conseguirmos meia dúzia de coisas mais ou menos fáceis e triviais para garantir dignidade a todos e, a partir daí, construir um projeto civilizatório novo. Temos sol, alegria, música, sensualidade, sincretismo, coisas que os países lá de cima não têm. O Darcy inverteu todos os argumentos que eram jogados contra nós: “Vocês são mestiços, tropicais, resultado da reunião de gente desgarrada do mundo inteiro. Isso aí não pode dar certo.” Ele respondia: “Isso é que é bom, isso é que vai dar certo!” Eu acho estimulante esse ponto de vista. Mas ele nos incita a buscar caminhos próprios.
ZUENIR VENTURA – Mas pelo jeito, você acha que o Brasil está longe de dar certo, não?
CÉSAR BENJAMIN_ A atual crise brasileira é muito
grave. E, lamentavelmente, o sistema político que substituiu o regime militar
falhou, pois não é capaz de gestar alternativas nacionais consistentes. É
comandado, de um lado, por forças supranacionais, que controlam a formulação e
a execução da política econômica; de outro, por forças subnacionais, que formam
bancadas no Congresso Nacional – a bancada do agronegócio, da construção civil,
das escolas privadas – e recebem pedaços do Estado em concessão. Fazer
política, no Brasil, é gerenciar esse arranjo. Não há nenhuma instância
pensando a dimensão nacional e o longo prazo. Não ouvimos falar mais na
esperança-Brasil, mas sim no custo-Brasil. Estamos saindo da história. Isso me
dói.
ZUENIR VENTURA – Mas e o Bolsa Família e o PAC?
ZUENIR VENTURA – Mas e o Bolsa Família e o PAC?
CÉSAR BENJAMIN – Ô, Zuenir! O Bolsa Família é uma
migalha: transfere 0,3% do PIB. Dá 60 reais a cada família, em média. Isso
representa 15 reais por mês por pessoa, 50 centavos por dia, um pãozinho! Se o
nosso horizonte de expectativas passou a ser esse, se consideramos isso uma
grande conquista, então nos tornamos um povo de quinta categoria. O sistema
distributivo relevante no Brasil é a Previdência Social, nascida na
Constituição de 88, que transfere 8,2% do PIB na forma de direitos, não de
favores. Ela está sendo desmontada, gradativamente substituída por esse programa
baratinho, que nega direitos e distribui favores, sob aplausos do Banco
Mundial. Isso é uma merda. Você fala do PAC. Muitas críticas se podem fazer ao
plano de metas do Juscelino ou ao II PND do Geisel, mas eles mudaram o Brasil.
Traduziam um esforço intelectual sério, buscavam levar a economia brasileira a
novos patamares. O PAC é intelectualmente indigente, é uma reunião de projetos
que já estão aí rolando há anos. Juntaram os projetos numa apostila e chamaram
de plano. Mas ele não tem visão de futuro, não propõe nenhuma mutação, não tem
qualidade. Serve para o Lula viajar, inaugurando insignificâncias e promessas.
O aspecto mais relevante, no Brasil contemporâneo, é a ascensão da mediocridade
como valor. Não me refiro apenas ao governo, mas à sociedade. Pensamos pequeno,
fazemos tudo malfeito e compensamos isso com doses cavalares de marketing. Nem
sempre foi assim. No início da década de 1950, o Brasil contratou uma equipe de
geólogos, chefiada por um norte-americano, para descobrir petróleo aqui. Eles escreveram
um parecer, dizendo que não tínhamos petróleo. O país ficou indignado. Getúlio
respondeu, criando a Petrobrás. Hoje sabemos que o laudo não era uma sacanagem,
como na época se pensou, pois o Brasil tem petróleo no mar. O laudo estava
certo, para os padrões técnicos da época. Mesmo assim, nós reagimos com base na
nossa auto-estima, em uma visão de futuro, na crença de que éramos capazes de
fazer, e acertamos na mosca. Achamos petróleo inverossímil, a dois mil metros
abaixo do nível do mar. O país criou a Petrobrás em 53, quando não tinha
técnica, não tinha quadros, era uma economia fraquíssima. Mas ousava. Eu
poderia dar muitos exemplos assim. Quando terminou a Segunda Guerra Mundial
houve a expectativa de um Plano Marshall para a América Latina, que não veio.
Sabe o que o Brasil fez? Criou o BNDES! Havia uma idéia de Brasil que nos
permitia reagir ativamente aos desafios vindos do sistema internacional. Nosso
lugar natural é muito periférico, Zuenir. Sempre que deixamos o sistema-mundo
definir o nosso lugar, fomos para o fim da fila. Só evitamos isso, no século
XX, com um grande esforço endógeno. O que perdemos nos últimos vinte anos foi
justamente a capacidade de sustentar esse esforço, até mesmo de concebê-lo ou
simplesmente imaginálo. Estamos indo para o nosso lugar natural.
ZUENIR VENTURA – O que seria hoje uma visão de longo prazo?
ZUENIR VENTURA – O que seria hoje uma visão de longo prazo?
CÉSAR BENJAMIN – Deixe-me dar um exemplo. Estamos
vivendo o fim do ciclo do petróleo, que no século XX se associou às técnicas
metal-mecânicas. Há uma nova família de técnicas que será decisiva no século
XXI: as biotecnologias. A grande matéria-prima das biotecnologias é a
diversidade genética, e o Brasil dispõe de 60% da diversidade genética do
mundo. Não precisamos procurá-la sob a terra ou o mar. Ela está, basicamente,
na Amazônia, expondo-se de modo exuberante. Hoje, porém, não somos capazes de
fazer, em relação às biotecnologias, o que o Getúlio fez em relação ao
petróleo. Por que a Petrobrás é poderosa? Porque reúne um núcleo de mais ou
menos sete mil brasileiros de alto nível técnico _ especialistas em robótica,
em eletrônica, em química, em geologia, em todas as engenharias _ organizados
numa estrutura que tem uma sinergia de saberes. O Brasil precisaria criar hoje
uma “Petrobrás” da biotecnologia, para, daqui a dez ou quinze anos, ter sete
mil zoólogos, geneticistas, meteorologistas, biólogos, bioquímicos trabalhando
juntos, tendo em vista assumirmos a vanguarda em um setor novo, de ponta. Mas o
sistema político brasileiro sequer percebe que esse tipo de questão existe. Nos
limitamos a medir, a cada ano, quanto destruímos da floresta para extrair
madeira e plantar soja ou pastagem, atividades que são do período Neolítico. É
desesperador. Eu poderia te dar inúmeros exemplos do que seria um projeto
nacional para o século XXI, mas me sinto falando sozinho. Os partidos estão
preocupados em costurar alianças para as eleições de 2018. O horizonte deles
termina aí.
ZUENIR VENTURA – Que passa por um projeto de educação, não?
ZUENIR VENTURA – Que passa por um projeto de educação, não?
CÉSAR BENJAMIN – Todos sabem que a educação
brasileira é um desastre. A cada ano, jogamos na rua multidões de analfabetos
funcionais. Aprendem a soletrar o nome, a ler o letreiro de um ônibus, mas não
são capazes de escrever uma carta dizendo: “Prezada mãe, estou aqui”. Há
tempos, uma notícia chamou minha atenção. Um rapaz de 20 anos foi preso em São
Paulo por furto. Ele estava na escola desde os oito anos, e na delegacia mandou
um bilhete para a mãe. O jornal publicou uma foto do que ele escreveu. O
bilhete era quase indecifrável, parecia escrito em língua estrangeira. Estava
na escola há doze anos e não conseguia escrever quatro linhas! Coloque-se na
posição desse rapaz. Que sentido tem a vida dele? Ano após ano numa escola que
não lhe ensina nada, enquanto os meios de comunicação só falam em
competitividade! A vida se transforma numa enorme perda de
tempo. Nesse vazio de possibilidades, tudo é igual, tudo é possível, não há horizontes de crescimento e de transcendência, não há futuro, e o próprio crime se banaliza.
ZUENIR VENTURA – O que de mais urgente precisaria ser feito nesse campo?
tempo. Nesse vazio de possibilidades, tudo é igual, tudo é possível, não há horizontes de crescimento e de transcendência, não há futuro, e o próprio crime se banaliza.
ZUENIR VENTURA – O que de mais urgente precisaria ser feito nesse campo?
CÉSAR BENJAMIN – O economista Márcio Pochmann, da
Unicamp, fez um cálculo interessante: que esforço o Brasil teria que fazer para
atingir, em dez anos, o nível que o Chile tem hoje na escola de segundo grau? O
resultado é o seguinte: teríamos que criar cinco milhões e 700 mil novas vagas
no ensino médio, formar 120 mil professores, criar 100 mil novas turmas,
construir 50 mil salas de aula. Se o governo Lula dissesse: “Eu não vou fazer
isso tudo, mas vou começar a fazer, vou começar uma revolução na educação”, eu
o apoiaria. Bastaria isso. Mas o que ele faz? Faz o Pro-Uni, um engodo. Como as
faculdades privadas cresceram muito no governo Fernando Henrique e ficaram com
capacidade ociosa, o governo Lula compra vagas nessas escolas de péssima
qualidade e as oferece para cursos à noite. Isso é brincar com o Brasil. A
estrutura do ensino superior brasileiro não é adequada às necessidades do país,
pois as faculdades privadas se multiplicaram sem controle, sempre oferecendo os
cursos que têm menos custos. Seria preciso alterar a estrutura do ensino
superior, mas enfrentar isso exige uma grandeza que perdermos. Estamos sempre
em busca das soluções mais fáceis, que invariavelmente desembocam no marketing.
Enquanto oferecemos cursos ruins e de baixo custo, com professores
desestimulados, a China está formando 80 mil doutores em Física, a Finlândia
assumiu a ponta em telecomunicações, a Índia é o novo pólo mundial da
informática.
ZUENIR VENTURA – Qual a sua maior crítica ao governo Lula?
ZUENIR VENTURA – Qual a sua maior crítica ao governo Lula?
CÉSAR BENJAMIN – É ter rebaixado os horizontes de
expectativa da nação. Um povo não se define tanto pelo que é, mas pelo que quer
vir a ser. Nosso horizonte está muito rebaixado, ficou pequenininho. Os
políticos se apresentam como campeões da caridade, e não como portadores de
projetos para o país. O Lula disseminou isso, com sua enorme capacidade de
nivelar por baixo e cooptar. O MST tem convênios com o Incra, o PC do B tem o
Ministério dos Esportes, o banqueiro tem o juro, o pobre tem o Bolsa Família.
Todo mundo se dá um pouquinho bem, enquanto o Brasil caminha alegremente para o
cu do mundo. Estamos virando um país em que tudo é malfeitinho: o professor não
dá uma aula decente, passa trabalho; o aluno não aprende, faz trabalho para
ganhar a nota; o Congresso Nacional vira uma casa de despachantes; a polícia
arma o bandido. As instituições estão deixando de funcionar, substituídas por
uma enorme farsa. Taí outra coisa que me faria apoiar o governo: “Eu vou
convocar a sociedade para, juntos, fazermos as coisas funcionarem. Professor
vai dar aula de boa qualidade, congressista vai debater questões relevantes e
fazer leis, juiz vai julgar e polícia vai combater o crime.” Já seria um bom
programa de governo… Mas o exemplo teria que vir, é claro, do próprio governo.
ZUENIR VENTURA – Otimista por natureza, você parece ter feito a opção pelo pessimismo.
ZUENIR VENTURA – Otimista por natureza, você parece ter feito a opção pelo pessimismo.
CÉSAR BENJAMIN – Não sou pessimista. Mas também não
quero aderir ao otimismo idiota do marketing. Com todas as minhas imensas limitações,
quero ajudar a reconstruir um otimismo que decorra de um pensamento robusto e
de uma vontade vigorosa. Eu não acho que o Brasil não vai dar certo. Mas, para
que dê certo, precisamos fazer um imenso esforço intelectual, político e moral.
Precisamos pensar e trabalhar seriamente. Sinto-me mais próximo da geração a
que me referi e mais afastado da esquerda atual. Nosso povo não tem motivos
para seguir a esquerda que está aí. Ela não se mostrou à altura da sua própria
utopia, mergulhou no terreno da hipocrisia. E a política institucional
brasileira faliu. Estamos vivendo o fim do impulso que a sociedade teve
nos anos 80, com o fim do regime militar e a redemocratização, que construiu
atores, esperanças e instrumentos novos, como a Constituição de 88, o Ministério
Público, as eleições diretas, movimentos sociais, PT, MST, CUT, etc. Esse
processo deu, à minha geração, a esperança de conseguir fundir democracia e
justiça social. O Lula de 89 representava esse impulso renovador, que sofreu um
baque com a eleição de Collor. Mas o impulso permaneceu vivo enquanto existiu
uma oposição pulsante ao projeto de desconstrução de Collor e Fernando
Henrique. Permaneceu existindo uma esperança, a idéia de que um dia isso ia
chegar lá! Quando o Lula ganha em 2002 e, junto com o PT, rasga a fantasia,
integrando-se ao sistema tradicional de poder, o impulso reformador dos anos 80
realmente se esgota. Começa a anomia. Hoje, os partidos só discutem o
loteamento de cargos, muitos dos quais, aliás, perfeitamente medíocres.
ZUENIR VENTURA – Por que há tanto interesse em nomear um diretor do DNER?
ZUENIR VENTURA – Por que há tanto interesse em nomear um diretor do DNER?
CÉSAR BENJAMIN – Porque cada órgão, cada diretoria,
gerencia orçamentos, organiza licitações, faz compras, atende ou deixa de
atender pedidos, e é isso que interessa. A democracia recente brasileira – o
governo Lula acelerou esse processo – criou lobbies que pilham sistematicamente
o Estado nacional. O Estado deixou de ser um espaço organizador de um projeto e
se transformou em um terreno aberto à acumulação primitiva. O presidente do
Brasil tem 25 mil cargos para nomear, enquanto o presidente da França tem 300.
Com isso, ele quebra a espinha do Congresso, que se apequena e passa a viver em
torno dessas negociatas. Tem gente boa lá, mas a banda podre é que se sente
prestigiada e cresce. Estabelecem-se relações cínicas, que contaminam toda a
nação.
ZUENIR VENTURA – Você ainda acredita no estado nacional?
ZUENIR VENTURA – Você ainda acredita no estado nacional?
CÉSAR BENJAMIN – Tempos atrás, li no jornal que
dona Marisa tinha feito uma viagem de Brasília por terra e, ao voltar, disse
para o marido: “Luiz Inácio, as estradas estão muito esburacadas!” Aí o
presidente da República foi pessoalmente lançar a operação tapa buraco. Disse
publicamente que dona Marisa o alertara para o problema. Isso foi notícia
durante semanas. Fiquei deprimido. Você consegue imaginar o presidente da
França cuidando de tapar buracos? O presidente da China? O dos Estados Unidos?
O primeiroministro da Alemanha? Isso é uma atividade rotineira do oitavo
escalão. Aqui, para minha surpresa, ninguém gargalhou quando o presidente foi
cuidar de buracos! Não há mais Estado, Zuenir, estamos em vôo cego. Povos sem
estado se lascam.
ZUENIR VENTURA – Você acha que estamos nos lascando?
ZUENIR VENTURA – Você acha que estamos nos lascando?
CÉSAR BENJAMIN – Isso só não é ainda claro porque a
conjuntura internacional está muito favorável. Nossa economia é muito sensível
aos choques internacionais, e vivemos atualmente um choque positivo. Mas, em
algum momento, o ciclo se reverterá. Aí os capitais voláteis irão embora. Vamos
descobrir que somos exportadores de soja e minério de ferro e que 96% dos
empregos que criamos nos últimos seis anos foram de empregada doméstica,
balconista, vigilante e moto-boy. Nossa população está virando a massa
trabalhadora desqualificada do século XXI. O governo Lula anuncia um saldo
comercial de US$ 149 bilhões em quatro anos, magnífico para o padrão
brasileiro. Agora, pegue o balanço de pagamentos como um todo. Você vai ver que
US$ 149 bilhões entraram pelo saldo comercial, mas US$ 119 bilhões saíram como
remessas de serviços e rendas. Não fica quase nada aqui. É uma pilhagem. O
Brasil é um ótimo lugar para se ganhar dinheiro e um péssimo lugar para se
investir. O que as multinacionais fazem? Aplicam aqui na produção de
commodities, nas quais temos grandes vantagens comparativas, ou nos mercados
financeiros. Depois tiram o dinheiro e investem na China. Esse processo está
mascarado pelo marketing, pelos pequenos favores e pela melhor conjuntura
internacional dos últimos 50 anos.
ZUENIR VENTURA – Quer dizer que o sucesso de Lula no exterior também é marketing?
ZUENIR VENTURA – Quer dizer que o sucesso de Lula no exterior também é marketing?
CÉSAR BENJAMIN – Fico espantado quando ouço dizer
que o Brasil está promovendo a integração sul-americana. Do ponto de vista
econômico, o Brasil está desagregando a América do Sul. Ele tem superávit com
todos os países do continente, isto é, drena recursos deles. Como a conta
financeira do nosso balanço de pagamentos foi desregulamentada, esses recursos
saem daqui com extrema facilidade, sem controle. Ou seja, nós somos a grande
porta de saída dos recursos da América do Sul para o mundo. Quem quer integrar
e é o mais forte não pode agir assim, tem que fazer déficit com o mais fraco,
ou pelo menos buscar formas de compensação com ele. A China tem superávit com
os Estados Unidos e déficit com seus vizinhos, para ligá-los a ela em torno de
um projeto regional. Para constituir um bloco sólido depois da Segunda Guerra
Mundial, os Estados Unidos se esforçaram para criar déficit com os aliados (o
Plano Marshall e a construção de bases militares faziam parte dessa política),
irrigaram seus parceiros e conseguiram integrá-los ao seu projeto geopolítico.
O Brasil faz o contrário: drena recursos de todo o continente, joga para fora e
diz que tem uma política integradora. A esquerda fica repetindo isso.
ZUENIR VENTURA – Voltando a 68, qual foi o maior legado político do movimento?
ZUENIR VENTURA – Voltando a 68, qual foi o maior legado político do movimento?
CÉSAR BENJAMIN – Não consigo ver nenhum legado,
digamos, orgânico por causa da própria natureza do movimento. Mas em algumas
áreas ou frentes houve um legado significativo, sim. Por exemplo, a mudança de
condição da mulher. A geração das nossas mães é completamente diferente da de
nossas amigas e dos nossos filhos. Minha filha, como você viu, acaba de entrar
com o namorado em casa e vai para o quarto com ele. Acho que houve um
questionamento de estruturas que estavam esclerosadas, não só no mundo
capitalista, mas também no bloco soviético. Foi uma fissura. Houve em 68 a
explosão de uma energia que disse ao poder que o poder não podia tudo.
ZUENIR VENTURA – Você acha que os governos de FH e Lula levaram valores de 68 ao poder?
ZUENIR VENTURA – Você acha que os governos de FH e Lula levaram valores de 68 ao poder?
CÉSAR BENJAMIN – O Fernando Henrique está muito
longe de ter a estatura intelectual que lhe dão. Quando se tornou presidente,
fui reler seus textos, como um dever de ofício. São uma fraseologia que não diz
nada, um sociologuês que não leva a lugar nenhum. Quanto ao Lula, ele se
destacou como sindicalista no melhor momento para se fazer política sindical:
uma ditadura fraca, caminhando para o fim, uma economia crescendo em altas
taxas, com pleno emprego, salário muito achatado e com as multinacionais
prontas para dar aumento salarial. As filiais brasileiras estavam assumindo
papéis importantes nas estratégias internacionais dessas empresas, e o trabalho
no Brasil era baratíssimo. As multinacionais do ABC paulista tinham muita folga
para negociar. O Lula teve méritos, senão não teria aproveitado esse bom
momento. Mas também deu a sorte de pegar uma conjuntura sindical extremamente
favorável. Quando ele surgiu no cenário nacional, encontrou uma oposição
crescente, porém ainda dispersa, que precisava de um pólo de aglutinação.
Dentro dessa oposição havia setores marxistas que sonhavam com a revolução
operária. O Lula foi a chegada do Messias. Era o que a esquerda esperava: a
idéia de um operário metalúrgico liderando uma revolução socialista se
encaixava direitinho na doutrina.
ZUENIR VENTURA – Sem falar nos intelectuais, não é?
ZUENIR VENTURA – Sem falar nos intelectuais, não é?
CÉSAR BENJAMIN – A junção de pessoas e movimentos,
que estavam relativamente dispersos, gerou o PT e criou um impulso que durou
até, pelo menos, 89. Um partido jovem, militante, aglutinando católicos,
marxistas, sindicalistas. Foi um sonho que eu sonhei. Hoje eu vejo que foi um
grande erro.
ZUENIR VENTURA – Você acha? Por quê?
ZUENIR VENTURA – Você acha? Por quê?
CÉSAR BENJAMIN – O PT nasceu querendo reinventar a
história, dizendo que ela começava com ele. O que acontecera para trás não
tinha valor. Renegou a mais brilhante geração de intelectuais brasileiros e não
compreendeu o movimento endógeno do Brasil. Tudo era impuro e ele era puro.
Como não foi capaz de construir uma doutrina em bases sólidas, acabou
facilmente cooptado pelo que há de pior. Não se constituiu nem mesmo como um
partido reformista sério, o que já estaria de bom tamanho. Num partido
arrogante e frágil, sem história, Lula e Zé Dirceu encontraram um campo fértil
para implantar a estratégia desagregadora que conceberam.
ZUENIR VENTURA – Em 98, você escreveu que “se continuamos interessados em 1968 é porque o que então ocorreu ainda nos tem a dizer sobre o futuro”. Afinal, 68 terminou ou não terminou?
ZUENIR VENTURA – Em 98, você escreveu que “se continuamos interessados em 1968 é porque o que então ocorreu ainda nos tem a dizer sobre o futuro”. Afinal, 68 terminou ou não terminou?
CÉSAR BENJAMIN – 68 não gerou um projeto político.
Teve um aspecto, porém, que me marcou muito, o da vontade. Íamos para o centro
da cidade, vinha a polícia e corríamos dela, até que dissemos: “Não vamos
correr mais; agora a gente vai para cima deles.” Começamos a dispersar a polícia,
que nunca tinha sido confrontada. Passamos a espalhar bolinhas de gude pelo
chão, e os cavalos escorregavam; soltávamos rojão, e os cavalos se assustavam.
Descobrimos então que podíamos ganhar. Sessenta e oito, para mim, foi a
rebeldia associada à vontade. Isso é maior do que todos os erros que cometemos.
Tenho buscado viver de forma coerente com os valores que assumi naquela época,
que foi a da minha juventude, sempre aberto a reaprender e a repensar.
César de Queiroz Benjamin é um cientista
político, jornalista, editor e político. Durante a ditadura militar
(1964-1985), participou da luta armada contra o regime, foi perseguido, preso e
exilado. Cofundador do PT, foi também filiado ao PSOL, tendo se desligado dos
dois partidos. Atualmente é o editor da Contraponto Editora, colunista da Folha
de S. Paulo e secretário da Educação na cidade do Rio de Janeiro.
Direto da Redação é um fórum de debates editado
pelo jornalista Rui
Martins.
http://www.correiodobrasil.com.br/cesar-benjamin-crise-lula-e-o-pt/