- Vacilações pós-golpe podem trazer danos para além de 2018
- Diante
da agressão à democracia consumada em 31 de agosto de 2016, o campo
progressista tem agora o desafio da união em torno de uma política de
frente
por Eduardo Maretti para Rede Brasil Atual- Sociedade e Desafios das Forças Progressistas Brasileiras
MARCIA MINILLO/RBA
Paulista, 4 de setembro de 2016: mais de 100 mil por 'Fora, Temer' e 'Diretas Já'
As
forças progressistas e democráticas do país têm diante de si uma tarefa
que pode ser associada metaforicamente ao mito grego conhecido como Os Doze Trabalhos de Hércules.
As dificuldades são imensas, em decorrência tanto de conhecidos erros
políticos cometidos pelo PT no governo, quanto da sofisticação do golpe
parlamentar consumado em 31 de agosto de 2016. Ainda é cedo para
previsões confiáveis num cenário ainda nebuloso. "O horizonte de análise
do cenário político ainda está muito curto. É como dirigir sob neblina,
você não enxerga muito bem o que está à frente", diz o cientista
político Leonardo Barreto, da Universidade de Brasília (UnB).
Nesse
horizonte, uma das certezas é a necessidade de compreensão – por parte
de democratas, movimentos sociais, partidos políticos progressistas,
centrais sindicais populares e empresários preocupados com o futuro do
Brasil – de que é urgente a união em torno do que o cientista político
Roberto Amaral, um dos coordenadores da Frente Brasil Popular, vem
defendendo muito antes do impeachment: uma "política de frente".
Essa
união deve necessariamente incluir forças liberais progressistas, como
afirmou o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira em várias ocasiões
durante o processo político, para muitos, iniciado em 2013. Perdida a
luta contra o impeachment, a reorganização não apenas da esquerda, mas
de um espectro mais amplo, é condição necessária para o enfrentamento do
que vem por aí. Porque, como diriam os mineiros, 2018 "está logo ali", e
as hesitações decorrentes da perplexidade instaurada com a vitória do
golpe parlamentar podem custar muito mais caro, a partir de 2019, do que
parece hoje.
"Construir
uma aliança contra a fascistização e o caos deve ser, daqui pra frente,
a primeira missão dos que têm um mínimo de lucidez e informação – neste
país assolado por ódio, mentira, hipocrisia e ignorância", diz Mauro
Santayana, em artigo nesta edição (leia na página 12).
"É preciso costurar uma ampla aliança nacional, que parta,
primeiramente, do centro nacionalista (se não existir, é preciso
criar-se um)." Isso porque o alcance da vitória ultraconservadora que
levou Michel Temer a assumir definitivamente o governo do Brasil é
amplo, considerando que a grande derrotada é uma entidade que não se
pode fulanizar, nem partidarizar: a Constituição Federal de 1988, que
Ulysses Guimarães (1916-1992) ajudou a construir com sua extrema
habilidade política após os anos de obscurantismo pós-1964.
Fatura é cobrada
A
afirmação de que o impeachment sem crime de responsabilidade "rasgou" a
Constituição Cidadã não é mera retórica, usada por opositores de Temer.
Com iniciativas emblematizadas pela Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) 241, que congela gastos públicos em todas as esferas de governo
por 20 anos, e suspende as vinculações constitucionais orçamentárias em
educação e saúde, o governo "eleito" indiretamente pelo Congresso
Nacional busca suprimir em nome do ajuste fiscal todo tipo de direitos
conquistados pela cidadania, instituídos pela Carta de 1988.
A
proposta viola o inciso IV, parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição,
que proíbe emenda constitucional "tendente a abolir os direitos e
garantias individuais". Demole o artigo 5°, "Dos Direitos e Garantias
Fundamentais", cujo caput é o abrangente "todos são iguais perante a
lei". Afronta os artigos 194 e 195 (que tratam da Seguridade Social), os
artigos que tratam do Sistema Único de Saúde (SUS), de
seguro-desemprego e da assistência social. "Essa PEC simplesmente
enterra a Constituição de 1988 no que diz respeito aos direitos sociais.
É simples assim", afirma o economista Eduardo Fagnani, professor da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Além
disso, estão na iminência de se concretizar ameaças a direitos
trabalhistas inscritos na Consolidação das Leis do Trabalho, o que nem
mesmo Fernando Henrique Cardoso, que governou por oito anos (1995-2002),
conseguiu fazer. E as entidades empresarias que patrocinaram a
destituição da presidenta eleita já começam a cobrar a fatura.
"Junto
com a Frente Parlamentar da Indústria de Máquinas e Equipamentos, nós
apoiamos a votação, o mais rápido possível, da PEC 241, da limitação dos
gastos públicos, e incentivamos as reformas da Previdência e
trabalhista", afirmou em nota o presidente executivo da Associação
Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), José
Velloso, no próprio dia 31. "É urgente fazermos a reforma da Previdência
Social e modernizar a legislação trabalhista", ecoou o presidente da
Confederação Nacional da Indústria, Robson Braga de Andrade.
As
ameaças à Petrobras e às riquezas nacionais, não apenas o petróleo, mas
também a água, entre outras, além dos direitos já mencionados, nunca
estiveram tão perto de se concretizar. E é por isso que, segundo Roberto
Amaral, o projeto de Temer "vai requerer repressão do movimento
sindical em geral, em particular dos petroleiros, e dos movimentos do
campo".
É
nesse contexto, considerando a amplitude da derrota, que se insere a
urgente necessidade de as forças democráticas, para além do PT,
entenderem o tamanho da tarefa. "A derrota não é só da Dilma, nem do
Lula, nem do PT. Não é nem da esquerda. É de todas as forças
progressistas. A regressão do tipo que se abateu no país é uma derrota
inclusive dos liberais e democratas. A corrupção venceu", disse o
sociólogo Laymert Garcia dos Santos no dia 31 de agosto.
O papel do ex-presidente Lula
O
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva dá sinais de compreender a
importância de seu partido abandonar o apego a uma espécie de
egocentrismo partidário e abraçar a causa de uma frente ampla e
democrática. Inclusive porque, como observa André Singer no livro Os Sentidos do Lulismo,
o ex-presidente não liderou um governo de oito anos propriamente de
esquerda, mas de centro-esquerda. Reformista em alguns aspectos, e não
de rompimento. Daí a perplexidade de muitos diante da ferocidade das
forças retrógradas perante um grupo que, no poder, passou longe de
propor qualquer solução mais radical, do tipo da implementada por Hugo
Chávez (1954-2013) na Venezuela.
Durante
os anos em que governou, o PT sempre considerou oportunos os acordos e
alianças, desde que ele próprio fosse sempre o cabeça de chapa. Com sua
reconhecida capacidade política e de articulação, Lula continua sendo a
principal força aglutinadora da centro-esquerda brasileira. Ele estaria
considerando a possibilidade de que um candidato de outra legenda tenha o
apoio de seu partido em 2018.
Em
resolução divulgada no dia 2 de setembro, com a presença de Lula, o PT
demonstrou entender parcialmente a necessidade de uma frente ampla. O
partido apontou para a necessidade de se "construir uma ação conjunta e
iniciativas práticas com partidos e entidades populares, capazes de
mobilizar e dar efetividade a este objetivo rumo à normalização
democrática, como a Diretas Já". Mencionou as frentes Brasil Popular e
Povo sem Medo.
Mas
o entendimento soa parcial porque, embora tenha mencionado as Diretas
Já na resolução, o partido parece se esquecer de que aquele movimento de
1984 era formado por uma frente muito mais ampla e envolvia mais do que
partidos e movimentos de esquerda. Em dezembro de 2015, Roberto Amaral
já afirmava o que considerava então a estratégia para evitar o golpe: "O
problema é ampliar nosso campo, atraindo para a defesa da legalidade os
liberais e democratas".
Nesse
sentido, movimentos de esquerda precisam compreender e ter humildade
para aceitar dentro dessa frente ampla figuras do perfil dos senadores
Kátia Abreu (PMDB-TO) e Armando Monteiro (PTB-PE), ex-ministros de Dilma
Rousseff, ligados ao agronegócio e à indústria, respectivamente, mas
fiéis à ex-presidente até o fim. Apesar da fidelidade a Dilma e de seu
papel contundente na defesa da democracia, Kátia chegou a ser
hostilizada em manifestações de esquerda.
ROBERTO PARIZOTTI/CUT (SÃO PAULO – 04/09/2016)- Quando
as “autoridades” acham que a manifestação foi longe e tem de acabar, a
PM parte pra cima com
- cassetetes, balas de borracha e bombas de efeito
moral
Resistência
Por
outro lado, lideranças como o presidente da CUT, Vagner Freitas, e o
coordenador da Frente Povo sem Medo, Guilherme Boulos, assumem de
imediato a tarefa da resistência. "O golpe na democracia afetará
profundamente a vida dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e da
cidade e dos brasileiros e brasileiras que mais precisam da manutenção e
ampliação dos direitos e das políticas públicas, tanto hoje quanto no
futuro. Não se trata de uma simples troca de comando e, sim, da
usurpação dos destinos do Brasil por uma parcela da classe política, do
judiciário e da imprensa que quer o poder a qualquer preço", alertou o
dirigente da CUT logo após a votação do impeachment.
"Exerceremos
resistência diária e aguerrida contra os inimigos da pátria. Não
estamos sós, ocuparemos todos os espaços e, da mesma maneira que já
fizemos antes, combateremos o arbítrio e a tirania, sempre em defesa da
democracia, da participação popular, da distribuição de renda, justiça
social e direitos da classe trabalhadora", afirmou Vagner.
Porém,
dentro do ambiente obscuro que se instalou no país, ainda é possível
destacar pontos positivos. O principal talvez seja traduzido por uma
metáfora: a semente. Existe expectativa de que as sementes plantadas
durante os 13 anos de governo petista frutifiquem, apesar das
justificadas críticas de lideranças e movimentos sociais aos governos de
Lula e Dilma, de que não implementaram reformas estruturais, como a
tributária, do sistema político, de comunicação e da educação, quando
tinham apoio popular, e um Congresso menos hostil, para executá-las pelo
menos em parte.
No
médio prazo, a ameaça concreta ou mesmo a confirmação da perda de
direitos deve despertar parte da população paralisada pela guerra
midiática para a compreensão do que realmente estava em jogo em 2016. "A
gente tinha um projeto de ir mais longe, mas não fomos. Mas o pouco que
se andou foi uma caminhada. E essa possibilidade de ir à universidade,
apesar das condições em que ela está, da possibilidade do sonho da casa
própria apesar de todos os problemas do Minha Casa Minha Vida, a gente
experimentou uma vitória, tímida, da ideia de que a gente também tem
direitos", disse no dia 31 de agosto a ativista Jurema Werneck, da
coordenação técnica da organização Criola, que defende e promove os
direitos das mulheres negras.
"Vamos
sinalizar que, perdendo ou ganhando, eles não são donos. Eles estão em
vantagem nesse momento, é verdade. Mas a luta para eleger Lula e Dilma é
uma luta de décadas, em que vínhamos produzindo esse clima de
insurgência e indignação, de necessidade de mudanças. Isso fica porque
não acabou. A gente não desiste porque os fascistas, racistas,
homofóbicos e sexistas estão vencendo neste momento", acentua Jurema.
Junto
às necessidades de se construir uma frente unificadora das forças
democráticas, progressistas e liberais, e de resistir à supressão de
direitos, há finalmente outras exigências. A de que a esquerda, como um
todo, e o PT, em particular, reavaliem seu papel, seus erros e acertos,
no processo que levou ao golpe parlamentar de 2016, enquanto aos
movimentos caberá lutar pela sua superação.
http://www.redebrasilatual. com.br/revistas/121/a-vida- apos-o-golpe-6131.html